Muito se disse – e muito há ainda a dizer – a respeito de Getúlio.
Tem o Getúlio objetivo, o Getúlio dos fatos incontroversos, que seus inimigos de ontem e de hoje fingem não conhecer para não reconhecer. O Getúlio que dotou o Brasil dos fundamentos materiais e institucionais para o seu desenvolvimento. O Getúlio do DASP, da legislação social trabalhista e previdenciária, do voto da mulher, da Justiça Eleitoral, da Companhia Siderúrgica Nacional, da Companhia Vale do Rio Doce, da Petrobrás, do BNDES, da descriminalização da capoeira e seu reconhecimento como joia cultural brasileira.
Tem o Getúlio amigo do presidente Roosevelt – que lhe reconheceu a primazia da política econômica e social que inspirou o estadunidense New Deal. Tem o Getúlio estratega que piscava para a Alemanha enquanto extraía dos EUA o que o Brasil necessitava: siderurgia para industrializar o país.
Tem o Getúlio gênio da política, que uniu o Brasil não entreguista (os entreguistas se aboletavam na União Democrática “Nacional”, a UDN), em torno de dois partidos, ambos instituídos em 1945, quando já se antevia a vitória dos Aliados e a hegemonia dos EUA. Um por ele formalmente criado e do qual foi presidente, o Partido Social Democrático (PSD), para que as oligarquias regionais, que antes da Revolução de 30 – a matriz do Brasil moderno – fragmentavam o poder nacional em querelas paroquiais sem fim e sem norte. Outro, por ele inspirado e apoiado por meio da máquina do Ministério do Trabalho, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), para que as massas trabalhadoras urbanas e rurais recentemente egressas do anonimato e da escuridão da não-cidadania para o protagonismo da luta política institucional tivessem uma voz audível e respeitada, que não fosse o Partido Comunista do Brasil (embora PTB e PCB, em movimentos autônomos, viessem a apoiar a permanência de Getúlio no poder, por meio do movimento queremista, mas isso é uma outra e mesma história, a história da genialidade política do velho caudilho).
Tem o Getúlio da coragem de dar a vida pelo Brasil, oferecendo-se em holocausto como forma única e última de livrar a Nação das garras da demagogia lacerdista que clamava contra o “mar de lama” a soldo dos interesses do Império, e acordar massas hipnotizadas pela máquina de manipulação do magnata das comunicações Assis Chateaubriand que clamava contra o “mar de lama”. Ele, o poderoso Chatô, que uma semana antes do ato extremo ofereceu a Getúlio uma saída “honrosa”: tiraria os microfones de Lacerda e daria a quem o presidente escolhesse. A “bondade” tinha um preço: o abandono da criação da Petrobrás. Getúlio disse não. É de nãos, mais do que sins, que se constroem as biografias eternas. A de Getúlio está registrada em diamante na Carta Testamento.
Tem esse Getúlio, enfim, que é de todos os brasileiros, o Guia Eterno dessa Gente, louvado pelo inesquecível Jackson do Pandeiro, na insuperável “Ele Disse”.
Mas eu tenho o meu Getúlio. Que é o mesmo Getúlio de toda a gente, mas é meu próprio. O meu Getúlio é Vargas, como a minha avó, a gaúcha Cecília Vargas, nascida em Gravataí, em 1903, quando o são-borjense Getúlio tinha 20 anos. Ciloca, como viria a ser conhecida por toda a vida, casou-se em 1920 com o meu avô Alfredo Gomes, gaúcho de Vacaria, nascido em 1891, quando Getúlio era menino de nove anos.
O meu Getúlio pacificou e uniu o Rio Grande, mas só em 1928, depois do muito sangue derramado na Revolução de 1923, na qual meu bisavô, Arthur, e meu avô, Alfredo, maragatos de quatro costados, lutaram nas mesmas fileiras que José Brizola, o pai do menino Leonel, bebê ainda. O pai de Leonel foi assassinado pelos ximangos de Borges de Medeiros. O Pacto de Pedras Altas pôs fim à guerra fraticida e pretendeu pavimentar a reunião dos irmãos gaúchos, mas no chão quente dos grotões as escaramuças continuavam aqui e acolá. A Revolução de 1923 foi a última em que se praticou a degola dos inimigos. Viver por ali era perigoso. Meus antepassados fizeram então o que os seus antepassados nunca imaginaram fazer. Para sobreviver, deixaram o Rio Grande.
Foi assim. 1925. Lagoa Vermelha, Rio Grande do Sul. Um grupo de gaúchos, das famílias Vargas e Gomes, percorrem a cavalo o Caminho do Viamão em direção a Santa Catarina. Para alcançar o território do estado vizinho terão que atravessar o Rio Pelotas. Uma travessia perigosa, que exige conhecimento do leito do rio. Precisarão contar com a orientação de batedores ribeirinhos que com seus cavalos seguem à frente dos tropeiros mostrando o caminho exato em que o rio é menos fundo.
No grupo de viajantes, uma cena se destaca. Uma jovem leva um bebê no ventre. O bebê era Janira, minha mãe, em sua viagem inaugural neste Vale de Lágrimas. A necessidade fez os Vargas e os Gomes submeterem Cecilia, grávida de Janira, à tormentosa viagem em lombo de cavalo pelos Caminhos das Tropas. Era preciso chegar rápido em Santa Catarina.
Exaustos de tensão e chão, os Vargas Gomes finalmente alcançaram a outra margem do rio que separa os dois estados. E Janira nasceu catarinense em Lages, juntando-se aos gauchinhos Hery, nascida em 1922, mesmo ano que Leonel, filho do maragato José Brizola, e Darci, que veio ao mundo no conturbado 1923, ano em que espocou a Revolução.
Tem mais história dentro desta história, mas é outra (embora a mesma) história. Por ora, é dizer que o meu Getúlio era Vargas, como a minha avó Cecilia, e que da luta por terra, trabalho e pão no chão quente do Rio Grande veio a herança que trago no peito, menino nascido no bairro operário do Capão Raso, na fria Curitiba, filho da bela mulher em que se transformou aquele bebê que balangandava no ventre de Ciloca em terras gaúchas a caminho das pacíficas terras catarinenses. Nasci do encontro da catarinense de Lages com o carpinteiro Antônio, catarinense de Guaramirim, que, embora (ou porque) iletrado, fabricou uns banquinhos de madeira para que eu e os filhos dos vizinhos tomássemos de Janira as primeiras letras. Daí que quando comecei a estudar no Grupo Escolar Professor João Loyola já estava alfabetizado.
Vamos terminando por aqui. Não sem antes dizer que o legado dos meus antepassados fez brilhar de intensa curiosidade (e intuitiva indignação) os meus olhinhos de menino de sete anos quando, em 1968, fazia eu o segundo ano do então curso primário, uma professora (de vaguíssima lembrança, gordinha, baixinha, nada mais), na sua mesinha ao lado de um janelão, fria e ensolarada manhã curitibana, soltou uma frase que movimentou minhas placas tectônicas: “Quando o presidente renunciou, o vice estava vendendo o Brasil na China!”. Eram os inimigos do destino do Brasil, os mesmos que Vargas derrotou com o ato extremo de 24 de agosto de 1954, voltando à carga pela cartilha da inocente professorinha num bairro operário de Curitiba para vilipendiar a memória de Jango. Mas a perfídia veiculada naquela gélida manhã de inverno curitibano encontrou olhos alertas e ouvidos atentos de um ígneo descendente político de Getúlio. O meu Getúlio. No pasarán!
Samuel Gomes
Neto de Alfredo Gomes e Cecilia Vargas Gomes