“Desculpa, Paulinho. Eu quando ouvi uma parte do encontro acima, já tinha bebido um vinho verde encorpado. E à medida que fui ouvindo os participantes, comecei a ver o humor das coisas.” Assim uma pessoa do campo de humanas, em Portugal, acompanhando a palestra na qual eu estava presente na São Clemente, concluiu um fluxo de comentários.
Respondo: “Fez você muito bem em ver o humor da coisa. Por vezes, foi patético.”
“Sim, infelizmente, pensei o mesmo. Não sou expert de nada, observei que há uma preocupação talvez em mostrar que têm conhecimento ou que têm um nível intelectual arrojado.”
O mais importante da palestra era a presença do (ex?)ministro Celso Amorim, nosso diplomata maior deste século (ou deste momento), contando suas histórias e, naquele momento, esclarecendo (se é que o termo cabe no discurso de um bom diplomata rs), a posição do governo Lula em alguns pontos. Quando ele sentou à mesa havia uma cadeira sobrando. Comentei com um casal de amigos ao lado que aquela cadeira era para o Samuel Pinheiro Guimarães. Mas tiraram a cadeira assim que o Amorim começou, talvez por piedade com os espíritos.
Não deixe a imagem da senhora com um kufyia que aparece no início iludir você sobre o desenrolar do evento: praticamente nada se discutiu sobre o genocídio em curso. Houve ali uma celebração da tradicional neutralidade diplomática brasileira, houve uma discussão que didaticamente não chegou a ser problemática de geopolítica, houve genuína preocupação democrática. Além do Amorim, a presença do Gelson Fonseca acrescentou um simpático entendimento de como nossa diplomacia opera, entende o mundo.
Mas duas semanas depois, o empresário criador do Telegram preso em Paris, um comentário de Alexander Dugin coloca um grande problema que a tradição de neutralidade brasileira carrega: “Essa é a prova final de que ninguém será capaz de manter a neutralidade durante uma guerra mundial total.” O ponto é: somos tão neutros assim?
Num belo artigo citado por um dos professores no evento, Maria Regina Soares de Lima (que foi minha professora/orientadora de curso nos anos que antecederam minha entrada no Banco) e Diogo Ives discutem a posição do Brasil até aquele momento e os problemas relacionados à coalizão do Governo Lula de se ter essa coalizão. A conclusão:
“Ao insistir na mediação, a diplomacia brasileira evitou este mal maior, porque tornou mais custosa a intervenção de grandes potências extrarregionais. Por outro lado, há sinais de que, se a mediação não der resultado, o Brasil pretende esfriar suas relações com a Venezuela de Maduro ainda que sem excluí-la do convívio regional, em uma clara manifestação da importância dada à democracia na região. Perdemos de um lado, mas ganhamos de outro, na medida em que autonomia e democracia se afirmaram como princípios basilares da política externa de Lula 3.”
Democracia. O que quer dizer isso? “A democracia morre na escuridão”, assim diz o lema do principal jornal da capital americana. Curiosamente adotado assim que assumiu um governo ao qual ele fez claramente oposição durante quatro anos. O texto da Maria Regina tem esta reveladora passagem: “Por outro lado, a conjuntura política marcada pela força da extrema-direita, no país e no mundo, e pela acentuação da rivalidade entre EUA e China, ao redor do globo e inclusive no entorno brasileiro, abre espaço para a reivindicação de uma defesa mais enfática de valores democráticos pelo governo.”
Democracia. Lembram que houve uma eleição na França antes da olimpíada? A proibida extrema-direita foi a mais votada, a frente de esquerda foi quem elegeu mais parlamentares, mas Macron se recusa a aceitar qualquer deles como primeiro-ministro. Democracia ao que parece, se restringe a um campo aceitável de ideias.
Democracia. O “Durov” da Meta, Zuckerberg, assumiu oficialmente essa semana as manipulações que foram feitas pela sua empresa para censurar a circulação de informações e ideias que iam contra a posição do governo Biden na Covid. Mas não fez só isso: também assumiu a censura às informações sobre o envolvimento do filho de Biden em negócios com estrangeiros. Sem esta censura, sem ele ter seletivamente custeado vários processos para facilitar a votação em meio à Covid, possivelmente não teria havido governo Biden. Democracia, ao que parece, requer o sacrifício de muito dinheiro e transparência.
Democracia. Luciano Huck foi entrevistar Zelensky. A maldição que acontece com os que tiram foto com o Huck vai derrubar Zelensky, presidente com data de validade vencida da Ucrânia? A maldição que acontece com os que tiram foto com Zelensky vai derrubar Huck antes mesmo que este entre na política, realizando talvez a única coisa em que ele se iguale ao fabuloso, falecido Sílvio Santos? Democracia, ao que parece, não mais morrem só os jovens por ela.
Se democracia, assim definida, é esse valor que ilumina nossa política externa, para que serve mesmo nossa presença nos BRICS? Tirando a África do Sul, qual outro país dos BRICS não é uma ditadura ou uma democracia sob a dúvida de um governo autoritário, com variantes sobre quem se encaixa numa dessas duas caixas?
Esta entrevista do Fabiano Mielniczuk, um professor da inundada UFRGS, que um amigo me mandou um mês atrás enquanto discutíamos um evento no Banco para o C20, é extremamente elucidativa. Num certo sentido ela toca no problema da coalizão Lula, mas por um outro lado. A contradição desse princípio de democracia com os BRICS é nítida. Um projeto multipolar, de fato, existe na não interferência com os mecanismos institucionais locais. Mesmo articulações como a da sociedade civil no C20 deveriam acontecer mediadas pela aceitação das formas como essas sociedades se articulam – e não sob uma definição do Ocidente do que é aceitável.
A defesa da Democracia acaba sendo entendida como um determinado conjunto de elites e instituições que se coordena a nível global, e essa preocupação com uma articulação da extrema-direita a nível global acaba sendo uma forma de naturalizar, invisibilizar o que são as instituições de propagação e reforço do neoliberalismo que tomaram o que se entende por esquerda no Ocidente.
O que nos traz ao candente problema político de São Paulo. Em 22 o Partido Militar (aqui eu me alinho a Piero Leiner, Romulus Maia, Marcelo Pimentel) garantiu a grande vitória para sua perpetuação: tomar o governo de São Paulo do grupo oriundo do MDB que o controlou por quarenta anos. A guinada à direita que representou Bolsonaro ajudou. Bolsonaro que foi criado como nome nacional por esse conjunto de atores.
O Capitão Bolsonaro foi a culminação de uma extrema-direita construída a partir desse “heroísmo” das instituições de segurança do estado, os militares e os policiais. A tomada de poder pelo conjunto de generais que ocupou o governo desta transformada criatura do baixo clero que era Jair, que criou esse nome civil apresentável que é Tarcísio, se fez com a premissa que esse eleitorado era cativo. Ou, pelo menos, bastava uma pequena coalizão de comuns pastores para o ser.
Não mais!
O assombroso crescimento de Pablo Marçal é uma sinalização de que a direita no Brasil não obedece mais às amarras institucionais que a mantinha num devido curral. Pablo Marçal não é a tosqueira pedante do Novo, a como sempre fracassada tentativa de se fazer um partido essencialmente libertário. Pablo Marçal não é o empresariado tradicional se articulando para uma tomada de um estado praticando socialismo.
Marçal é o empreendedorismo no mais caricato do termo que você possa pensar, tanto quanto prática quanto como ideologia. É fruto da desordem sob o céu, e sob sua candidatura algum empresariado vai entender que não precisa pagar o pedágio dessas forças tradicionais, que novos caminhos e pedágios estão em construção.
Vivemos tempos interessantes.
………………………………………………
Originalmente publicado na Vínculo