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A história econômica antiga fornece um modelo para evitar a tirania da dívida?

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Michael Hudson é um economista muito bom, trouxe muitos conceitos históricos interessantes e o que ele diz funciona muito bem em relação a dívida dos cidadãos para com os oligarcas financistas. Mas (exceto no Brasil) a dívida pública em moeda nacional (em moeda estrangeira sim, ele está certo) não serve para explicar esse fenômeno, porque a dívida pública em moeda nacional é um instrumento muito importante para o Estado gerir o comportamento da sociedade em prol do bem coletivo. Inclusive a dívida pública nada tem a ver com má distribuição de renda (exceto talvez no Brasil).

É muito simples demonstrar isso, basta ver que a taxa de juros média da dívida pública nos países desenvolvidos ou pro industrializantes foram em média significativamente menores do que a taxa de inflação, portanto, nos últimos 50 anos, os detentores de dívida pública não aumentaram sua participação na riqueza em razão dos juros. O problema como sabemos é os juros que cobram dos cidadãos, que são acima da taxa de inflação.

Além disso, a dívida pública alta não leva necessariamente ao aumento dos impostos, porque o déficit público é sempre uma possibilidade, além disso, quando vc quiser aumentar os impostos, não precisa fazê-lo sobre os pobres, mas sobre os ricos e além disso, a dívida pública pode ser consequência de investimentos públicos em saúde, educação e assistência social para os pobres portanto, ela pode ter crescido exatamente para distribuir renda. portanto, essa história do jubileu é ótima em relação a dívida da oligarquia contra os pobres, mas não com a dívida pública.

Não é a toa que países como China tem dívida pública e tem juros. Não se ouve alguém mostrando que o governo chinês seja burro ou pró banqueiros (que lá estão estatais), O texto abaixo é a parte final de uma entrevista do professor Michael Hudson publicada no Naked Capitalism e traduzida pelo Saker Latam. Recomendamos muito a leitura completa, mas o trecho publicado dá-nos uma boa ideia do conteúdo.

Desde o início das práticas econômicas e dos empreendimentos no antigo Oriente Próximo, passando pela antiguidade clássica e pela Europa medieval, até os dias de hoje, as classes ricas sempre quiseram se transformar em uma oligarquia no controle do governo e da religião para proteger, legitimar e aumentar sua riqueza, especialmente seus privilégios de extração de renda como credores, monopolistas ou proprietários.

Esse deve ser o contexto no qual se analisa a visão econômica do mundo de cada época, principalmente sua perspectiva sobre o quão “livre” um mercado deve ser e de quem é a liberdade que está sendo endossada. Essa tem sido a grande questão ao longo de toda a história da civilização, desde a Idade do Bronze no Oriente Próximo, quando os governantes proclamavam regularmente “Tábuas Rasas” para restaurar a ordem econômica e controlar as oligarquias incipientes, passando pelos cinco séculos de guerra civil na República Romana e pela luta de Jesus contra a oligarquia judaica emergente, até a luta civilizacional de hoje entre o Ocidente da OTAN, dominado por oligarquias rentistas orientadas pelos EUA, e a maioria global, agora centrada nos BRICS.

Vemos a mesma luta ao longo dos tempos por parte das elites financeiras que se opõem a qualquer poder governamental capaz de restringir seu poder de busca de renda e de credores em detrimento da sociedade. Vemos isso hoje nas políticas econômicas pró-credor do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial e da ideologia “libertária”, que buscam centralizar o poder de alocar recursos e planejar economias no setor financeiro em vez de no governo democrático. A ideia neoliberal de hoje é livrar-se da autoridade governamental (exceto quando ela é controlada pelos setores rentistas) e deixar que os bancos do setor financeiro privatizado controlem o dinheiro e o crédito, que é a utilidade pública mais importante.

O governo da China financiou sua notável decolagem industrial sem ter que pedir empréstimos a credores privados. Havia pouco dinheiro para tomar emprestado de sua população doméstica, então o Banco da China imprimiu seu próprio dinheiro. Diferentemente da prática financeira típica, ele não exigiu que o patrimônio pessoal fosse dado como garantia, pois ainda não existiam ações e títulos ou imóveis substanciais. O governo não precisou recorrer aos detentores de títulos para aumentar seus gastos públicos e, de qualquer forma, não havia detentores de títulos nacionais para pedir empréstimos após a Revolução. A China fez o que qualquer governo nacional soberano pode fazer – o que Abraham Lincoln fez na Guerra Civil. Ela simplesmente imprimiu o dinheiro. Todo governo que lutou em uma guerra importante teve que fazer isso. No entanto, a ideia de que essa opção não estava disponível para os governos estava tão arraigada que, quando a Primeira Guerra Mundial estourou em 1914, a maioria dos economistas e outros observadores insistiram que a guerra teria de terminar em apenas alguns meses, porque não havia dinheiro ou crédito disponível para continuar a luta. Mas os governos simplesmente fizeram o que os credores privados abominavam: Imprimiram seu próprio dinheiro para suas necessidades domésticas. Seus empréstimos eram para a importação de armas e outros produtos denominados em moeda estrangeira, deixando um resíduo de dívidas intergovernamentais que se tornou a fonte do desastre econômico da Europa no pós-guerra.

Após o retorno à paz, a classe financeira exigiu que os governos voltassem a depender de detentores de títulos privados. Pouco antes da guerra, a luta para controlar a política de crédito – e, portanto, a alocação de recursos e o controle sobre os fins para os quais o dinheiro é gasto – chegou ao ápice nos Estados Unidos em 1913, com a criação do Sistema da Reserva Federal (Federal Reserve – Fed) e sua aquisição das funções do Tesouro dos EUA. Até aquele momento, o Tesouro dos EUA havia organizado o fornecimento de crédito nos Estados Unidos e estabelecido as taxas de juros. Ele tinha 12 distritos locais para coordenar o fornecimento de crédito, especialmente para movimentar as colheitas no outono.

Mas J.P. Morgan organizou um grupo de banqueiros para impedir que a administração monetária fosse um serviço de utilidade pública. Seu objetivo era centralizar a política monetária nas mãos dos principais centros financeiros. Era necessário haver alguma forma de tesouraria, mas o Federal Reserve também tinha a maior parte de seus poderes, e os bancos privados estabeleceram um controle rígido sobre o Fed. Eles chegaram ao ponto de excluir qualquer funcionário do Tesouro ou de outro órgão de Washington como membro do conselho do Federal Reserve. E, em vez de estar centralizado em Washington, a principal filial era o Fed de Nova York, com filiais importantes em Boston, Chicago, para o comércio de grãos, e Filadélfia.

Esse golpe financeiro transferiu o controle do dinheiro e do crédito para os banqueiros, permitindo que eles decidissem a quem fornecer crédito e para quais fins. E, como estamos vendo hoje, os banqueiros não estão financiando a formação de capital industrial. Ganhos financeiros muito maiores podem ser obtidos com a desindustrialização da economia dos EUA e com os ganhos de preço de ativos de “capital” provenientes do aumento dos preços de imóveis, títulos e ações. Os bancos emprestam principalmente para a compra desses ativos, que é o que eleva seu preço – a crédito.

Esse foco em obter ganhos financeiros, emprestando contra propriedades e ativos financeiros já existentes, é resultado do foco do sistema bancário em empréstimos baseados em garantias. Os bancos fazem um empréstimo quando há uma garantia para cobri-lo. No setor público, o empréstimo geralmente é para comprar um ativo. Muitas vezes, o ativo que está sendo comprado é a garantia que é dada ao banco em troca do financiamento da compra. Cerca de 80% dos empréstimos bancários nos Estados Unidos são para imóveis. Os empréstimos também são feitos contra ações e títulos. As empresas de capital privado podem tomar empréstimos para assumir o controle de uma empresa (geralmente fazendo uma oferta para comprar todas as suas ações dos detentores existentes), dando a própria empresa como garantia. O resultado desse empréstimo baseado em garantias é direcionar o crédito bancário para os mercados imobiliário e financeiro.

Essa é a essência das bolhas financeiras. Quanto mais empréstimos são concedidos, mais os preços sobem. Foi isso que aconteceu com o setor imobiliário dos EUA desde 1945 e com os preços das ações desde o advento das aquisições alavancadas na década de 1980. Pode-se dizer que a atual desindustrialização dos Estados Unidos e de outras economias ocidentais, sobrecarregada de dívidas, é o resíduo de uma economia de bolha financeirizada de 80 anos.

Não precisava ser assim. Conforme observado acima, a China financiou sua decolagem industrial criando crédito público para financiar o investimento de capital tangível e a construção de imóveis ainda não existentes. A ideia era criar uma nova formação de capital e construir novos edifícios, e não obter um ganho financeiro com o aumento dos preços desses ativos. A política ocidental atual de financeirização das economias é algo bem diferente do que foi imaginado pelo capitalismo industrial do século XIX. Pelo menos a ideia dos bancos alemães e da Europa Central até a Primeira Guerra Mundial era industrializar o sistema financeiro para fornecer crédito para a formação de novo capital, em grande parte em uma parceria entre bancos, governo e indústria pesada. Mas o Ocidente de hoje financeirizou o setor, e não o contrário.

Tudo isso está muito distante de como o crédito levou, no antigo Oriente Próximo, à instituição do dinheiro como meio de denominar as dívidas contraídas pela população, principalmente com as grandes instituições palacianas e templos, para dívidas agrárias de cevada, ou para o adiantamento de dinheiro ou remessas de mercadorias a comerciantes, com sua avaliação (e o pagamento devido) denominada em prata. Tracei como o sistema monetário e de crédito evoluiu para um sistema financeiro completo desde o antigo Oriente Próximo, passando pela Grécia e Roma, as Cruzadas e a criação de estados fiscais nos séculos XVII e XVIII. A linha geral da evolução foi desde o dinheiro criado pelo Estado até o Estado fiscal moderno, que foi criado principalmente com o objetivo de minimizar o risco para os credores que faziam empréstimos de guerra.

Na antiguidade, os governos eram credores, não devedores. O endividamento real ocorreu somente com a tentativa da Igreja Romana de colocar os outros reinos cristãos sob o controle do papado. Isso exigia força armada, e os exércitos precisavam de financiamento. As Cruzadas e as várias outras guerras travadas pelo papado foram dirigidas principalmente contra outros cristãos na Alemanha, na França (os cátaros), na Sicília, nos Bálcãs e no Império Bizantino. A obtenção de financiamento para que os feudos dos senhores da guerra de Roma lutassem nessas guerras deu início à financeirização do Ocidente. Esses empréstimos eram feitos a juros, dando origem a uma classe de banqueiros comerciais internacionais, além de reverter a oposição cristã à usura/juros.

Desde o início das Cruzadas, em 1095, até o século XVI, a Igreja Romana foi o poder organizador unipolar da Europa Ocidental. Os papas tratavam os reis seculares como seus vassalos e se propuseram a obter o controle dos outros quatro patriarcados da cristandade: Constantinopla, Antioquia, Alexandria e Jerusalém, conhecidos coletivamente como a Igreja Ortodoxa Oriental.

No final do primeiro milênio, Constantinopla era de longe a potência dominante, a Nova Roma e, portanto, seu imperador era o “verdadeiro” imperador romano. A antiga Roma e seu papado pareciam ser meros vestígios do cristianismo primitivo, tendo caído a um nível tão baixo no século X que até mesmo os historiadores católicos se referem ao papado como a Pornocracia (Governo das Meretrizes) sob o controle das principais famílias de Tusculum (nas colinas suburbanas de Roma) que o tratavam como sua propriedade pessoal local sem muita dimensão religiosa.

Esse declínio levou a um movimento de reforma, em grande parte pelos alemães, que logo evoluiu para um plano imperial não apenas para cristianizar o papado, mas para obter o controle de toda a cristandade como parte de uma grande transformação unipolar, começando com o Grande Cisma de 1054, que separou o cristianismo romano da Igreja Ortodoxa Oriental. Os Ditames Papais de 1075 explicaram detalhadamente as táticas dessa tomada de poder.

O problema com esse plano imperial era como obter essa autoridade inerentemente adversária sem um exército ou dinheiro para contratar mercenários. As terras da igreja eram maiores do que as propriedades reais em toda a Europa, mas elas e suas receitas estavam sob controle local para apoiar a caridade e outras atividades sociais. O que Roma tinha era a autoridade para nomear e santificar os reis de sua escolha e excomungar os oponentes das exigências romanas de apoio militar e financeiro.

Mercenários e invasores normandos estavam se deslocando do sul da França para a Itália durante o século XI. Em 1061, o Papa Nicolau II recrutou o senhor da guerra Robert Guiscard, concordando em torná-lo rei se ele conquistasse a Sicília e o sul da Itália e os tornasse um feudo do papado. Um acordo semelhante foi feito com Guilherme, o Conquistador, em 1066, para liderar um exército da Normandia para a Inglaterra e jurar fidelidade a Roma. Esses dois feudos dos papas concordaram em pagar tributos e permitir que Roma nomeasse os bispos em seus reinos, dando a Roma o controle sobre suas receitas.

Os reis da Alemanha não eram senhores da guerra instalados por Roma. Eles eram eleitos pelos príncipes alemães e tinham o título de Sacro Imperador Romano e Rei da Itália. Tendo tentado reformar o papado no final do século X e início do século XI, eles resistiram ao controle papal de seus bispados e finanças. Eles nomearam seus próprios bispos e tentaram absorver a igreja alemã na administração civil em vez de permitir sua independência teocrática.

A questão do controle papal sobre a nomeação dos bispos encarregados das receitas das igrejas locais levou a uma luta pela investidura entre Roma e os reis estrangeiros e, internamente, entre os reis e sua nobreza, em resposta às exigências romanas de impostos reais para financiar o papado imperial. Quando os barões da Inglaterra redigiram a Magna Carta em 1215 para dar-lhes o direito de impedir que o rei João impusesse impostos sem seu consentimento, o rei pediu ao Papa Inocêncio III que excomungasse esses barões por se oporem ao seu governo divino. Inocêncio assim o fez, emitindo uma bula anulando a Magna Carta e apoiando o direito divino dos reis de não permitir que sua nobreza limitasse sua capacidade de impor impostos para financiar as guerras de Roma contra outros países cristãos. Mas isso teve pouco efeito para impedir a resistência interna à tributação real.

As guerras precisavam de financiamento estrangeiro, pois a capacidade dos reis de tributar era de fato limitada por essa resistência interna. Os cronistas da época descreveram como os emissários papais apresentaram ao filho de João, Henrique III, bulas papais assinadas em branco que serviam como notas promissórias, comprometendo-o a tomar empréstimos de banqueiros italianos que Roma estava patrocinando para fornecer o dinheiro para pagar as tropas que atacariam os alemães e lutariam contra outros cristãos, especialmente contra as terras que aderiam ao cristianismo ortodoxo oriental.

Para ser mais específico, em 1227, Inocêncio IV excomungou Frederico II da Alemanha e, em 1245, ordenou que Henrique III tomasse empréstimos de banqueiros mercantes em Florença, a serem pagos por meio de impostos ao seu país para financiar uma guerra contra o controle alemão do sul da Itália. Esse foi o início do apoio papal aos bancos italianos e levou à guerra civil na Inglaterra depois que o Parlamento tentou fortalecer a Carta Magna elaborando as Provisões de Oxford. O Papa Alexandre IV anulou essas provisões e emitiu uma bula excomungando seus apoiadores. Roma venceu a guerra civil e impediu que o Parlamento desenvolvesse o poder de bloquear as dívidas de guerra que os reis seculares foram orientados a assumir.

Como mencionado acima, havia cinco patriarcados da cristandade, e Roma era o menos importante às vésperas do século XI. O centro era Constantinopla. Roma excomungou seus patriarcas repetidamente em seu esforço para assumi-los, juntamente com suas finanças. As Cruzadas foram travadas principalmente contra a maioria dos cristãos, e seu objetivo era impor o controle romano sobre todo o cristianismo.

Os papas reconheceram que, se fossem entrar em guerra, precisariam organizar o financiamento da guerra (conforme explicado acima), e isso exigia a reversão do ensinamento mais básico de Jesus e de seus primeiros seguidores cristãos. Roma teve de mudar a oposição cristã à usura porque as famílias de comerciantes que se tornaram banqueiros que financiavam as guerras do papado insistiam em cobrá-la. Os escolásticos, acadêmicos cristãos, criaram uma diferença escolástica entre juros e usura. A usura foi redefinida como “juros” quando os cristãos os cobravam, pelo menos para fins abençoados por Roma, encabeçados por empréstimos de guerra. Esse foi o mesmo espírito com que o presidente Nixon disse que “quando o presidente faz isso, não é crime”.

O efeito foi legitimar o crescimento de grandes famílias de banqueiros que enriqueceram constantemente emprestando aos reis para fazer guerra. Após o fim das Cruzadas em 1291, o poder do papado começou seu longo declínio. Mas ele havia criado uma classe financeira cujo crescimento, com o tempo, acabou ofuscando o de Roma. O principal efeito de longo prazo do movimento de reforma papal e de suas cruzadas foi, portanto, reverter o principal ensinamento moral do cristianismo, que se opunha à usura, no processo de criação de um novo cristianismo imperial e intolerante.

A criação de Estados fiscais parlamentares comprometidos com o pagamento de dívidas de guerra

No início do século XIV, o rei Filipe IV da França rompeu com a Igreja, patrocinou o que se tornou uma série de papas de Avignon e confiscou a riqueza da ordem bancária dos Cavaleiros Templários da Igreja (bem como a dos judeus e lombardos na França). Durante os dois séculos seguintes, os reis seculares se tornaram clientes ainda maiores dos banqueiros, fazendo empréstimos para combater suas próprias guerras seculares. E, no final do século XVI e início do século XVII, os banqueiros e reis europeus tiveram o mesmo problema que a América Latina teve na década de 1980 e novamente hoje: Eles não podiam pagar as dívidas que cresciam a juros compostos, pois as dívidas vencidas eram simplesmente roladas, com juros adicionados ao principal. A única maneira que os banqueiros tinham para mantê-los à tona era continuar emprestando-lhes o dinheiro para pagar pelo menos os juros que estavam sendo acumulados.

O problema para os banqueiros era que, se eles não emprestassem aos reis o dinheiro para pagar, os reis seriam obrigados a não pagar. Isso teria impedido os Fuggers e outros banqueiros de pagar seus próprios depositantes. Assim, eles emprestaram aos reis da Espanha e da França novos empréstimos de guerra, na esperança de algum tipo de milagre. Isso é o que se chama de fada da confiança.

A única propriedade da qual os reis podiam se valer para pagar suas dívidas era o domínio real, que era a propriedade particular do rei. Mas as outras rendas e ativos do reino não podiam ser penhorados unilateralmente pelo rei. As dívidas reais não eram realmente de caráter “público”; eram apenas as do setor do palácio. Não havia realmente um “Estado” ou “dívidas do governo” em termos modernos. Os reis tinham o direito de cobrar impostos somente se a nobreza concordasse, embora pudessem impor impostos especiais sobre o comércio exterior. Portanto, seus credores os ajudavam a organizar monopólios comerciais para pagar as dívidas reais, mas ainda não havia dinheiro suficiente para se manterem solventes.

As grandes casas bancárias perceberam que estavam fadadas a perder o dinheiro que emprestavam aos reis que não tinham recursos para pagar. Olhando pela Europa, descobriram que havia outro modelo para os devedores nas pequenas cidades italianas autônomas. Eram as comunas, como Florença e Gênova, e as cidades holandesas. Essas comunas eram administradas coletivamente por uma liderança eleita. Eles deram poder a esses líderes para que prometessem a riqueza dos membros da comuna coletivamente como garantia para pagar as dívidas de guerra que precisavam assumir para se defender contra os franceses e outros reis católicos que estavam tentando conquistá-los.

Ao ver esse novo tipo de arranjo, os banqueiros perceberam que o que precisavam para minimizar o risco de seus empréstimos era o tipo de estado que pudesse fazer em nível nacional o que essas comunas autônomas italianas e holandesas estavam fazendo. A Holanda respondeu adequadamente tornando-se uma confederação dessas comunas, e os holandeses foram convidados a ir à Inglaterra para criar o tipo de estado fiscal parlamentar que tinha o poder de fazer o que os reis não podiam fazer, ou seja, garantir todo o poder fiscal nacional para pagar as dívidas que assumissem.

Essa foi a origem do estado fiscal moderno. Ele atendia aos termos exigidos pela classe bancária internacional. Os domínios reais do feudalismo não eram Estados reais, mas feudos reais. Os estados fiscais modernos têm o poder de cobrar impostos nacionais, muito além do poder fiscal dos reis de penhorar suas próprias propriedades. O Estado moderno foi criado, acima de tudo, como uma organização fiscal à qual os credores estariam dispostos a emprestar o dinheiro para se defender. Foi assim que os estados protestantes do norte da Europa obtiveram o dinheiro para lutar para se tornarem independentes das monarquias católicas da Europa. Suas estruturas políticas para obter responsabilidade coletiva por dívidas evoluíram para democracias. O resultado foi mais do que apenas um novo tipo de estado; surgiu um sistema financeiro supranacional, acima dos estados-nação, que foram obrigados a adotar sistemas fiscais e jurídicos pró-credores para obter os empréstimos de que precisavam para sobreviver ou lutar em suas guerras de conquista.

A Inglaterra assumiu a liderança no desenvolvimento do setor bancário em nível nacional, com a grande inovação monetária de usar a dívida do governo como ativo dos bancos para apoiar empréstimos comerciais para expandir sua economia.

Tudo isso significa que foi realmente o setor financeiro que politizou seu poder econômico para criar o tipo de estado sob as regras pró-credor que temos hoje. O Oriente Próximo da Idade do Bronze tinha uma realeza capaz de cancelar dívidas, fazer guerras e impedir o desenvolvimento de uma oligarquia. Os novos estados nacionais da Holanda, Inglaterra, norte da Europa e todos os estados ocidentais atuais têm poder fiscal, mas não a capacidade política de impedir o desenvolvimento de oligarquias. Eles apóiam uma oligarquia financeira cosmopolita cujas reivindicações de credores e ideologia limitam o poder dos Estados modernos. Esses novos estados são fortes. Quando libertários como Ronald Reagan dizem que são contra o Estado, eles querem um Estado forte o suficiente para esmagar os devedores, não forte o suficiente para proteger o bem-estar público das reivindicações dos credores.

Os credores querem que os Estados sejam fortes o suficiente para impor o pagamento a eles; fortes o suficiente para colocar o interesse das alianças de credores nacionais e estrangeiros acima do crescimento da economia nacional. Portanto, você ainda tem a mesma eterna luta sobre o que terá prioridade: A economia crescerá e será livre, ou os credores terão o “direito” ou o poder de reduzi-la à dependência da dívida?

Os artigos acadêmicos que escrevi sobre posse de terra, dinheiro e as origens do empreendimento e da cobrança de juros traçam esse denominador comum de como a civilização lidou com o crédito e a dívida. Quando você vê a civilização como a expressão política do crédito e da dívida ou dos relacionamentos, reconhece que isso é tão importante para a história da civilização quanto o sexo foi para Freud.

PARTE IV

A inovação do dinheiro e dos juros na Idade do Bronze e a resiliência de sua ordem econômica

Robinson: Tenho todo tipo de perguntas. Há muitas coisas sobre a mesa que são ortogonais aos nossos propósitos, mas essa me chamou a atenção. Você disse anteriormente que as primeiras traduções dos textos da Mesopotâmia eram bem diferentes. Recentemente, conversei com Joyce Carol Oates, a poeta romancista de Princeton, e comentei com ela que alguns de meus poemas e poetas favoritos não escrevem em inglês. Posso ler um poema de um autor em uma tradução e ele ser completamente diferente. Em uma versão, eu o odeio, mas em outra, é um dos meus favoritos. A tradução é uma arte e é muito importante para o trabalho que você está fazendo. Isso nos leva de volta a esses textos antigos, porque acho que uma das lições interessantes que podem resultar do que estamos falando hoje é o que podemos aprender com o colapso dessas civilizações da Idade do Bronze e de outras civilizações da antiguidade até hoje. No início de nossa conversa, você mencionou Hamurabi na Babilônia e o ano do Jubileu bíblico. Para nossos ouvintes que não sabem quem foi Hamurabi ou o que é um jubileu, o que são e como contribuíram para o florescimento dessas civilizações antigas antes de sua queda?

Michael: Vou responder à sua pergunta de uma forma indireta. Por acaso, comecei hoje cedo a lidar com alguns problemas de tradução. Um dos livros mais importantes sobre as origens do dinheiro e seus efeitos sociais foi escrito em 1898 por um antropólogo alemão, Heinrich Schurtz. Ele escreveu The Origins of Money (As origens do dinheiro), examinando as comunidades indígenas nas possessões alemãs no Pacífico Sul e na África.

Ele descreveu como o que se desenvolveu ali não era dinheiro como o conhecemos. Era uma forma de propriedade, um ativo em vez de um meio de troca, embora, é claro, tivesse um valor, e um valor alto. E ele descobriu que o que foi chamado de “dinheiro primitivo” não era o mesmo que o dinheiro da Mesopotâmia. Ele assumia a forma de objetos de valor que conferiam status, em sua maioria importados em vez de produzidos no país. Portanto, a maneira de obter esses objetos de status de vertu nas comunidades que ele estudou era por meio do comércio exterior – principalmente materiais exóticos, não prata ou ouro. Eles podiam ser joias, conchas ou qualquer troféu exótico. Ou podiam ser itens de vestuário ou móveis de prestígio que pertenciam à família de um chefe. Mas eles não tinham valor padronizado como o dinheiro “real” e não eram usados pela população como um todo para troca ou pagamento de dívidas.

A Mesopotâmia importava prata junto com os grãos, que era a principal forma de pagamento monetário – e denominação de dívidas – para a população agrária. O ouro não desempenhava um papel muito importante, mas tinha principalmente um valor de prestígio, especialmente para os novos ricos estrangeiros que mais tarde conquistaram a região. A prata era valorizada como um sinal para a lua, associada ao ouro para o sol, e ambos eram valorizados como doações de prestígio aos templos. A Mesopotâmia precisava negociar a prata para obter matérias-primas, como o cobre e o estanho, que produziam o bronze que deu nome à Idade do Bronze. Pedras, madeira de lei e pedras preciosas precisavam ser importadas e eram avaliadas em prata.

A prata e o ouro eram de extração estrangeira, não apenas para a Babilônia, mas para a maioria dos países até a nossa era. A Índia foi descrita por muito tempo como o Sumidouro do Ouro, desde a antiguidade até os tempos modernos. A China e o Japão queriam prata. Schurtz descreveu a origem dessa demanda nas comunidades indígenas que ele estudou. Os editores de sua tradução para o inglês me pediram para escrever a introdução de sua tradução, que só agora está sendo impressa. Recebi a tradução deles há meio ano. Mas ontem eles me enviaram as provas da editora. A introdução que eu havia escrito mencionava citações do livro de Schurtz, mas agora descobri que eles haviam mudado quase todos os parágrafos da tradução inicial que eu havia citado.

Uma palavra que eles mudaram foi “governo”. Eles me explicaram que não podiam usar essa palavra porque não havia realmente um governo nas comunidades indígenas no sentido em que usamos o termo hoje. Eles queriam fazer a tradução antropológica correta. Seu objetivo era evitar ser anacrônico. Levei quatro horas para escrever as novas traduções em minha nova versão da introdução a ser digitada.

O que Schurtz descobriu foi que o influxo de dinheiro primitivo – ou seja, itens de status, bens altamente valorizados e de prestígio – tornou-se uma fonte de polarização nas comunidades indígenas. Mas o papel dos chefes era semelhante ao dos governantes da Mesopotâmia e, de fato, quase universal. Era impedir a polarização da economia. Se eles deixassem que isso acontecesse, suas comunidades acabariam se parecendo com a Roma tardia, com uma pequena proporção da população detendo a maior parte da riqueza em suas próprias mãos.

A Babilônia e outras comunidades da Idade do Bronze tentaram evitar isso, assim como as comunidades de todo o mundo. Mas os tradutores descobriram que, assim como as comunidades indígenas estudadas por Schurtz, não havia palavras modernas adequadas para descrever o tipo de sociedade que elas tinham. Por muitas décadas, a palavra “estado” foi usada para descrever esses reinos. Mas eles não eram realmente estados no sentido moderno do termo. Os setores do palácio e do templo eram separados da economia em geral. Atualmente, eles são chamados de “as grandes instituições”, não o Estado.

As leis de Hamurabi estavam relacionadas principalmente a transações que envolviam o setor palaciano, incluindo os templos. As comunidades familiares na terra continuaram sendo regidas principalmente pela lei comum tradicional. Os danos pessoais, por exemplo, eram resolvidos por uma dívida do tipo wergild como compensação. Mas algumas pessoas, como viúvas, órfãos e enfermos (que dependiam do palácio para seu bem-estar, e não da comunidade na terra) não tinham famílias para pagar essa indenização. Assim, Hamurabi determinou que, nesses casos, a retaliação em espécie era apropriada: literalmente “dente por dente”. Os assiriologistas traduziram muitos casos jurídicos que envolviam esse tipo de lesão pessoal e, em nenhum deles, essa retaliação foi realmente encontrada. Em vez disso, as multas eram pagas, como era típico na Europa “primitiva”. Então, o que era o “governo”? A economia era dividida em setores distintos, não apenas em um setor uniforme. Mas os assiriologistas não os chamam de “público” e “privado”, porque esses são termos modernistas para grandes instituições e para a comunidade familiar em geral, o primeiro baseado em grande parte no comércio exterior e na produção de artesanato de exportação em troca principalmente de prata, e o setor agrário na terra, basicamente doméstico, com suas transações denominadas em unidades de grãos.

O setor palaciano da Idade do Bronze no Oriente Médio não tinha interesse em escravizar toda a economia. Justamente o contrário: Assim como nas comunidades indígenas, a desigualdade era vista como uma fonte de desordem. Mas os ricos procuravam ganhar status explorando os devedores e adquirindo o controle da terra. Esse também é o objetivo das oligarquias clássicas, e isso se tornou uma característica distintiva dos estados ocidentais subsequentes – poderíamos dizer da civilização ocidental. Uma dinâmica semelhante ocorreu nas comunidades indígenas que tiveram contato com o Ocidente no século XIX, assim como aconteceu na antiguidade clássica e está acontecendo hoje.

Era principalmente a dívida externa que estava empobrecendo as economias europeias antes do século 18, porque o dinheiro devido para pagá-la era controlado por banqueiros internacionais, não por governos nacionais. A dívida em uma moeda não produzida pelos devedores tornou-se uma constante na civilização. Os governantes da Mesopotâmia resolveram esse problema fazendo com que as dívidas de prata fossem pagas em grãos a uma taxa de câmbio fixa e estável. Mas as dívidas romanas devidas à oligarquia eram em dinheiro vivo, além da capacidade da maioria dos devedores de produzir por conta própria. A dependência do crédito externo criou uma tendência crescente de polarização das economias se elas colocarem a obrigação de pagar os credores acima de sua própria necessidade interna de crescimento. Atualmente, essa dependência externa transformou o poder governamental mais poderoso em uma classe credora cosmopolita que governa acima dos Estados. Na verdade, os “estados” modernos foram criados nos séculos XVII e XVIII como veículos para tributar suas populações a fim de extrair o serviço da dívida para pagar esses credores supraestatais, que têm absorvido cada vez mais o excedente econômico do Ocidente, especialmente desde que a Segunda Guerra Mundial levou à economia capitalista-financeira dolarizada baseada nos EUA.

O império persa conquistou o império babilônico, mas a maioria dos impérios, desde a antiguidade até o papado imperial criado durante as Cruzadas, estava disposta a permitir que os residentes dos países conquistados seguissem a religião que quisessem, vivessem à sua maneira e continuassem com suas próprias práticas, desde que pagassem tributos e impostos. Até mesmo os Impérios Mongol e Otomano eram tolerantes. O que importava para eles era o tributo. Assim, quando os persas conquistaram a Babilônia e depois a Palestina, eles levaram as famílias mais ricas de volta para a Babilônia como reféns, mas deixaram o restante do povo na terra da Judeia para os líderes locais administrarem.

Os judeus da Babilônia foram assimilados. Temos suas cartas, testamentos e contratos de casamento, escritos por escribas babilônicos, ainda com muitas práticas que estavam na raiz da decolagem do Oriente Médio, onde se desenvolveram todos os elementos de empreendimento e administração pública.

A Mesopotâmia e o Egito tinham terras agrícolas ricas ao longo do Eufrates e do Nilo, depositadas ao longo de muitos milênios por rios com sedimentos ricos que formavam um solo maravilhoso. Mas esse solo não tinha metal, porque era solo até o fundo. Não havia rochas ou pedras para construir paredes. A maior parte da construção era feita com tijolos de barro para fazer paredes, templos e casas.

Para sobreviver, a Mesopotâmia teve de obter os elementos que produziam o bronze, a liga que deu nome à Idade do Bronze, como já mencionei. Eles tiveram de desenvolver o comércio exterior e isso exigiu uma organização empresarial, que foi centralizada no setor palaciano e confiada aos comerciantes. Todas as práticas básicas da empresa – contabilidade, dinheiro, pesos e medidas (não é possível fazer trocas sem pesos e medidas padronizados), taxas de juros e acordos de participação nos lucros foram desenvolvidos. Toda a produção e o comércio eram organizados com base no crédito. Um palácio sumério ou babilônico, ou talvez famílias ricas ligadas a ele, podiam consignar têxteis como roupas, tapetes ou outros tecidos a comerciantes empreendedores que iam para o norte ou para o oeste, como o Afeganistão e o Paquistão, para trocar têxteis por prata e outras matérias-primas. Em cinco anos, eles teriam que pagar o dobro do valor do adiantamento original feito por seus consignatários. Esse tempo de duplicação de cinco anos corresponde a 20% de juros anuais decimalizados, um quinto por ano.

Qualquer taxa de juros implica um tempo de duplicação. Temos os exercícios de livros didáticos que os babilônios usavam para ensinar aos escribas. Eles perguntavam quanto tempo levava para uma dívida dobrar a uma taxa de um shekel por mês. (60 siclos formavam um peso mínimo.) A resposta era cinco anos. Quanto tempo para quadruplicar? (Dez anos.) Quanto para multiplicar 64 vezes? (30 anos) Gostaria que as universidades americanas que ensinam economia fizessem essa pergunta. As taxas de juros modernas são muito mais baixas (exceto para cartões de crédito pessoais), mas o princípio do crescimento exponencial é o mesmo. Se você fizer uma hipoteca de 30 anos para comprar uma casa e pagar juros de 7% ao ano, o que o banco acaba recebendo? Em apenas 10 anos, com juros de 7%, o credor receberá o mesmo valor que o vendedor da casa recebeu. E tudo o que o banco precisou fazer foi criar o crédito para financiar a transferência da propriedade. Em 20 anos, o retorno de juros do banco dobrou e, em 30 anos, quadruplicou.

Assim, você vê a rapidez com que o aumento do serviço da dívida se acumula. Mas as economias não crescem tão rapidamente. Os babilônios reconheceram esse fato universal. Além de ensinar os escribas a calcular a velocidade de crescimento de uma dívida à taxa de um shekel por mês, eles fizeram exercícios para calcular a velocidade de crescimento de um rebanho de gado.

Um rebanho de gado cresce de forma muito parecida com o crescimento das economias modernas, em uma curva em S que se afunila. Quando os primeiros assiriólogos começaram a traduzir esses exercícios, eles pensaram que não poderia ser um exercício matemático. Devia ser um relatório sobre como um rebanho específico estava crescendo. Mas os sumérios já tinham equações quadráticas, e seus escribas precisavam aprender mais matemática do que um típico aluno do ensino médio aprende hoje nos Estados Unidos. Eles previam relações astronômicas e faziam muitos tipos de cálculos. Eles sabiam que havia a curva S do crescimento dos rebanhos e conheciam o crescimento exponencial das dívidas. A diferença marcante era a rapidez com que as dívidas cresciam em relação à economia rural endividada.

Só por isso, eles sabiam que era óbvio que as dívidas não poderiam ser pagas. Se você não as cancelar, terá uma oligarquia doméstica crescendo. Agora, todo curso introdutório de Economia 101 deveria ter esse modelo. Os modelos matemáticos que os sumérios tinham eram superiores a qualquer modelo econômico que o National Bureau of Economic Research [Agencia Nacional de Pesquisa Econômica – nota do tradutor] tem hoje ou que qualquer banco central econômico tem, porque eles não querem admitir e reconhecer essa simples realidade matemática dos juros compostos.

A eterna guerra dos credores contra os devedores

Diz-se que a grande vitória do diabo é convencer o mundo de que ele não existe. Os lobistas ideológicos da classe bancária e credora tentam convencer o mundo de que a dívida não importa porque “devemos isso a nós mesmos”. Mas quem são os “nós” e quem são os “nós mesmos”? O “nós” são os 99% endividados e pagadores de impostos. Na verdade, não devemos a dívida a nós mesmos, mas ao 1%, o setor financeiro e suas classes rentistas aliadas (imóveis, seguros e outros monopólios). No entanto, os modelos econômicos normalmente ignoram a dívida porque os ativos são iguais aos passivos. (Mas de quem são os passivos e de quem são os ativos?) Ao observar a distribuição da riqueza e ver sua polarização – quem deve o quê a quem – e ao rastrear o crescimento da dívida em relação à expansão mais lenta da renda e do produto real da economia, você percebe que esse crescimento da dívida é um esquema Ponzi insustentável. No entanto, isso não está sendo ensinado como o núcleo do currículo econômico atual.

Como se mantém um esquema Ponzi funcionando? Bem, se os bancos continuarem a emprestar cada vez mais crédito para a compra de imóveis, os mutuários usarão esse dinheiro para fazer lances contra mutuários rivais para comprar casas ou prédios comerciais de escritórios cujo preço é construído com base na expansão do crédito, ou seja, da dívida. Essas casas e prédios comerciais com preços mais altos e cheios de dívidas são então penhorados aos bancos para que novos compradores assumam ainda mais dívidas. Isso inflaciona os preços dos imóveis, mas deixa as novas gerações de compradores mais endividados, com cada vez menos patrimônio líquido de suas propriedades.

Se estivermos analisando a trajetória de uma economia, os preços mais importantes não são os preços ao consumidor que são monitorados pelo Índice de Preços ao Consumidor oficial, mas os preços dos ativos para imóveis, ações e títulos financiados por dívidas. E é contra isso que os bancos emprestam. Apenas uma pequena parte do crédito bancário é para a compra de bens e serviços por meio de dívidas de cartão de crédito, empréstimos para automóveis e outras dívidas do consumidor. A grande maioria do crédito que os bancos criam não é usada para inflar os preços ao consumidor, mas sim os preços dos ativos – preços de imóveis e preços de ações e títulos.

O socorro de Obama aos bancos com hipotecas de alto risco em 2009 e a flexibilização quantitativa para inundar os mercados com crédito a fim de reduzir as taxas de juros criaram a maior recuperação do mercado de títulos da história, enriquecendo e fortalecendo a classe financeira que detém a maioria dos títulos, ações e imóveis. Os 10% mais ricos da população e, especialmente, o 1%, viram os preços dos ativos alavancados por dívidas financiadas por bancos “criarem riqueza” para si mesmos no topo da pirâmide econômica, mas a riqueza para os 50% mais pobres praticamente não mudou, enquanto os 20% mais pobres foram levados a se endividar cada vez mais apenas para sobreviver.

Essa polarização cada vez maior entre a maioria endividada da população e a minoria credora é o que deveria ser a essência da economia. Foi sobre isso que David Ricardo alertou com sua teoria do valor e da renda, mostrando que o aumento da renda dos rentistas absorveria todo o excedente econômico, não deixando espaço para a obtenção de lucros industriais. Ele estava escrevendo sobre a renda da terra que excluía todas as outras rendas, mas suas advertências se aplicam a todas as formas de renda econômica, principalmente à renda financeira dos rentistas.

Estamos lidando com dois tipos de trajetórias de preços: preços ao consumidor pagos por assalariados forçados a trabalhar cada vez mais para sobreviver, e preços de ativos que aumentam a riqueza da classe rentista “enquanto dormem”. A elite rica está se tornando hereditária. Eles não se importam com o que pagam no supermercado. Eles se preocupam com os preços das ações e dos títulos, bem como com o preço de mercado de seus imóveis. Para eles, tudo se resume à riqueza.

Qual é a utilidade dos Anos do Jubileu no mundo de hoje e da política de perdão de dívidas que o senhor argumenta que pode ser um guia? Acho que devemos comparar a experiência e a implementação dos Anos do Jubileu na Idade do Bronze com o que aconteceu na Grécia e em Roma.

O que tornou a civilização ocidental diferente no início foi o fato de as terras mediterrâneas não terem reis. Você disse anteriormente que houve um colapso dos micênicos. Não foi realmente um colapso. Houve um clima muito ruim por volta de 1200 a.C.. Houve uma seca que colocou populações inteiras em movimento. Elas não conseguiam sobreviver onde estavam. A mesma coisa aconteceu na Índia cerca de 600 anos antes. A maior civilização da Idade do Bronze, a civilização do Indo, secou. Foi quando os falantes de indo-europeu chegaram via Pérsia. Os arqueólogos descrevem que eles adotaram as práticas locais do Indo, inclusive a ioga e o sistema de castas.

Um colapso geralmente envolve a ocorrência de algo errado como resultado da forma como uma sociedade está estruturada, levando-a ao colapso. As visões de um colapso geralmente são moldadas para fornecer uma lição para os dias de hoje, para alertar sobre o que podemos estar fazendo de errado ou de forma autodestrutiva. Mas a mudança climática e a seca são algo externo a isso. O século XIII a.C. foi um período cosmopolita próspero, com comércio e crescimento ativos. Os micênicos e os habitantes do Oriente Médio da Idade do Bronze não tinham organizações sociais autodestrutivas, e mantinham sua resiliência. Mas a sociedade micênica de língua grega chegou ao fim. A população despencou quando as colheitas fracassaram, o governo do palácio acabou e seus administradores locais mantiveram o controle da terra em seus próprios nomes – algo parecido com as privatizações pós-soviéticas da Rússia sob Boris Yeltsin.

Os arqueólogos chamam esse período após 1200 a.C. na Grécia e no Oriente Próximo de Idade das Trevas, com as populações em movimento buscando sobreviver. Os séculos seguintes foram sombrios no sentido de que a escrita desapareceu. A escrita silábica Linear B do grego micênico caiu em desuso, pois era usada principalmente para a administração de palácios que não existiam mais.

Por volta do século VIII a.C., a escrita alfabética foi desenvolvida e usada para fins muito mais amplos do que a administração palaciana centralizada. Os comerciantes fenícios e sírios começaram a reavivar o comércio e os contatos para o oeste, para a Grécia e para a Itália, onde o crescimento populacional havia começado a se recuperar. E, assim como os comerciantes da Mesopotâmia haviam feito, esses comerciantes estabeleceram templos nas terras onde estavam negociando, uma espécie de câmara de comércio local como uma associação pública para organizar suas negociações e resolver disputas.

O comércio geralmente era mantido em alto-mar, onde era independente das regras das comunidades locais. Na tradição mesopotâmica, grande parte do comércio era realizada nas áreas de cais ao longo do rio, fora dos muros da cidade. Nas cidades, você teria a regra da lei local, mas fora das muralhas era tudo “livre”, além do alcance da regra local por consentimento mútuo. O comércio com a civilização do Indo por meio da ilha de Bahrein (chamada Dilmun de 2500 a 300 a.C.) era uma extensão dessa ideia. Na Itália, uma importante ilha comercial ficava no mar, na ilha de Ischia. Para o comércio grego, foram estabelecidos centros comerciais em ilhas.

Os comerciantes do Oriente Médio introduziram a prática de cobrar juros no Ocidente. Os chefes locais gregos e italianos adotaram essa prática em suas transações com o resto da sociedade. Mas o Ocidente não tinha governantes palacianos para cancelar as dívidas, de modo que a dinâmica da dívida com juros acabou levando a uma aristocracia proprietária de terras e mantendo a população endividada. Esse problema só foi resolvido pelos tiranos que discutimos anteriormente, que derrubaram as famílias aristocráticas predadoras, cancelaram as dívidas e redistribuíram as terras que haviam sido monopolizadas.

Os comerciantes sírios e fenícios também introduziram pesos e medidas do Oriente Médio como um elemento necessário para a cobrança de juros. Mas as frações aritméticas e a denominação eram diferentes no Ocidente e variavam muito. As da Mesopotâmia (minas para peso e gur-bushels para volume) eram baseadas em 60 avos porque esse sistema havia sido desenvolvido nos templos para distribuir alimentos mensalmente à força de trabalho dependente de viúvas e órfãos de guerra. O ano administrativo era dividido em meses de 30 dias, portanto, a cada dia, dois 60 avos da ração mensal (um “bushel”) eram consumidos – duas xícaras por dia. No mês seguinte, seria dado outro bushel.

As taxas de juros baseavam-se inicialmente na facilidade de cálculo: um shekel por mina por mês no sistema sexagesimal de divisões fracionárias da Mesopotâmia. A Grécia tinha um sistema diferente. Ela estava na órbita de Creta e do Egito, que usavam o sistema decimal baseado em 10. Portanto, sua taxa era de 1% ao mês (12% em um ano) ou, às vezes, 10%. Roma usava um sistema de medição fracionário baseado na divisão normal de um ano em 12 meses. Assim, os pesos romanos mediam 12 onças em uma libra. Sua taxa de juros era fixada em 1/12 anual (8 1/3 por cento). Essa comparação mostra que as taxas de juros não eram definidas pela taxa de lucro ou produtividade, como supõe a teoria moderna, mas simplesmente para facilitar o cálculo no sistema local de contabilidade fracionária.

O mito da origem da livre iniciativa de que as taxas de juros são definidas pelas “forças do mercado” de lucro, produtividade física ou necessidade do consumidor não tem espaço para a ideia de pesos e medidas organizados pelo governo. Sua explicação “baseada no lucro” das taxas de juros supunha que a alta taxa da Mesopotâmia, a taxa decimalizada de 20% ao ano, refletia o risco que o comércio devia ter na Idade do Bronze. A Grécia supostamente era mais estável e, portanto, tinha uma taxa de juros mais baixa, de 10% ou 12%. Em seguida, Roma, apesar de sua oligarquia perversa (que os economistas amigos dos oligarcas chamam de estabilidade), tinha a taxa de juros relativamente baixa de 8,33%. Não há nenhuma pista nessa visão “baseada no mercado” de que a taxa de juros não tinha base no risco ou na capacidade de pagamento do devedor, mas simplesmente refletia a facilidade do cálculo matemático.

Quando enviei minha explicação pela primeira vez ao Journal of Economic and Social History of the Orient, seus editores questionaram se realmente poderia ser tão simples. Levou seis anos para que eles concordassem em publicar meu artigo em 2000. Minhas descobertas como alguém de fora agora são aceitas pelos assiriólogos. Mas elas são ignoradas fora desse campo.

Essa experiência ajuda a explicar por que consegui obter o consentimento dos assiriólogos e de outros pré-historiadores que participaram de meus colóquios em Harvard durante 20 anos. Desde a década de 1920, os assiriólogos se recusavam a lidar com economistas ou não assiriólogos porque havia muito preconceito ideológico sobre como a civilização começou. Todos queriam projetar sua própria ideologia no passado. Os escritores do Vaticano que traduziam os documentos sumérios chamavam-na de estado-templo. Os austríacos ignoraram completamente a função organizacional dos palácios e templos. Os socialistas pensavam em termos de “realeza divina”. Em todo o espectro econômico e político, todos tinham sua própria ideia academicamente sectária de como o antigo Oriente Próximo havia evoluído.

Alguns economistas malucos chegaram a insistir que havia keynesianos da Idade do Bronze que construíram as pirâmides egípcias para investir dinheiro na economia e criar demanda de consumo. A mentalidade geral é pensar no que o escritor moderno faria ou aconselharia se pudesse entrar em uma máquina do tempo e viajar cinco mil anos atrás e dizer aos governantes sumérios e babilônios qual a melhor maneira de administrar suas economias.

Eu era um estranho para a Assiriologia, mas também para a economia convencional. Eu sabia que não sabia como as sociedades arcaicas eram organizadas. Mas sabia que o que era importante para mim descobrir era como as diferentes sociedades tratavam o dinheiro e as relações de dívida. Eu estava procurando as leis do movimento financeiro, a dinâmica sobre a qual você e eu temos falado.

Os assiriologistas estavam dispostos a trabalhar comigo e a fazer parte da minha pesquisa porque eu simplesmente perguntei o que eles poderiam me dizer sobre a documentação de seu período sobre dívidas, posse de terras, contabilidade e seus pesos e medidas, e dinheiro, incluindo as taxas de juros em contratos e em inscrições reais. Como as primeiras sociedades documentadas organizaram a construção de suas pirâmides, palácios e muralhas?

Consegui levantar fundos para cobrir suas despesas com nossas reuniões de Nova York a São Petersburgo, na Rússia, em Londres e na Alemanha. Descobriu-se que um enorme progresso havia sido feito desde a explosão da pesquisa cuneiforme na década de 1920 e até mesmo na geração anterior. Mas havia pouco foco em tópicos financeiros. Esses tópicos não apareciam nos índices dos livros, mas eram mencionados apenas de forma an passan. O principal problema era que a maneira como o antigo Oriente Próximo lidava com as dívidas e administrava sua economia em geral era muito diferente dos preconceitos modernos, que iam desde a livre iniciativa individualista e os mercados até um governo fortemente centralizado.

A maior resistência às descobertas resultantes de minha pesquisa veio do preconceito ideológico contra a ideia de que os governantes da Idade do Bronze precisavam evitar o surgimento de oligarquias financeiras. Toda a história, desde o antigo Oriente Médio até a Grécia e Roma clássicas, é ofensiva à ideologia econômica e política moderna que é ensinada aos alunos e que Hollywood romantiza no cinema. O currículo universitário evita tratar da evolução real das práticas econômicas da civilização até aproximadamente 1700 d.C.. É deixado para a fantasia de poltrona. A disciplina de antropologia, na qual grande parte dessa teorização se baseia, lida principalmente com grupos indígenas sobreviventes modernos que não criaram a civilização moderna e seus valores orientados para o mercado pró-credor.

De qualquer forma, não há acadêmicos suficientes para ensinar essa história não moderna. Seria necessário um tempo enorme para criar esse currículo. Como lhe disse, comecei a formar o grupo de Harvard em 1984, mas foram necessários dez anos, até 1994, para que eu me familiarizasse o suficiente com a leitura da literatura relevante para que pudesse conversar com assiriólogos sem parecer bobo. É como se eu tivesse que começar do zero e fazer um novo doutorado em história do antigo Oriente Próximo. Mas os historiadores não têm muito a dizer sobre a dinâmica econômica, e os economistas não têm quase nada de relevante a dizer sobre a história.

Agora posso ver como a dinâmica financeira da economia mundial polarizada de hoje remonta aos tempos arcaicos. O que os governantes da Idade do Bronze perceberam que a sociedade moderna não percebeu é que, se você não cancelar as dívidas, grande parte da população cairá na peonagem da dívida – escravidão a uma oligarquia credora que acaba ficando com a terra e o dinheiro. O controle sobre o trabalho não é mais obtido levando-o à servidão por dívida da antiguidade clássica ou vinculando-o à terra, como ocorreu quando a posse da terra romana se transformou em servidão. Você pode viver onde quiser e, ao contrário da servidão, geralmente pode trabalhar onde quiser. Mas onde quer que viva e para quem quer que trabalhe, você se verá obrigado a contrair dívidas. Cada geração será obrigada a usar mais de sua renda, além da sobrevivência básica de subsistência, para pagar os credores e os proprietários ausentes e monopolistas que eles financiam e protegem para transformar seus aluguéis de terra e de monopólio em pagamentos de juros. Isso é essencialmente o que é escravidão. É o que é a peonagem da dívida. Essa antítese entre a dinâmica financeira e a liberdade é o denominador comum que tem sido uma constante nos últimos cinco mil anos.

Se analisarmos a história da civilização em termos desse denominador comum, veremos a evolução na forma como a sociedade resolveu a questão fundamental de qual deveria ser sua principal preocupação: Ela santifica o pagamento das reivindicações dos credores sobre os devedores, mesmo que isso polarize e empobreça a economia, ou reduz as reivindicações dos credores para permitir que a economia cresça e evite a polarização e a corrosão da qualidade de vida? Essa escolha define a dinâmica da civilização.

Essa dinâmica está levando a atual Maioria Global e os BRICS a se afastarem do “jardim” ocidental, como o chefe da UE, Josep Borrell, o chamou. Para ele e para grande parte do Ocidente, a “selva” é o impulso para a independência e a multipolaridade, afastando-se do neoliberalismo e da dependência comercial e da dívida do Sul Global que os impede de alcançar a prosperidade para seu próprio povo. O presidente israelense Netanyahu fez um discurso para o Congresso dos EUA ontem (25 de julho de 2024) e definiu a questão em uma frase: “Este não é um choque de civilizações. É um choque entre a barbárie e a civilização”. Isso soa notavelmente semelhante ao que Rosa Luxemburgo disse há um século, exceto pelo fato de que ela justapôs a barbárie ao socialismo. A questão é: qual lado da fratura global de hoje representa os bárbaros e qual lado representa o futuro curso da civilização?

O mais notável é que há fortes defensores e interesses particulares para cada lado. Até mesmo os bárbaros afirmam ser a civilização do futuro e estão dispostos a lutar até a morte para defender sua causa e seus interesses.

Isso é fascinante. Acho que todo mundo hoje tem a ideia de que a civilização está avançando inexoravelmente, só porque vemos o progresso da física e da matemática, da tecnologia e da medicina. Há uma ilusão de que em todos os campos de atuação estamos avançando. Mas você está me dizendo que parece que há grupos de interesses especiais patrocinando a falta de vontade de olhar criticamente para o passado. No caso da economia, houve entendimentos cruciais há milhares de anos que as pessoas estão negligenciando hoje e isso está impedindo o progresso.

Aqui está o problema. Não se trata simplesmente de seguir em frente, mas de uma transformação civilizacional em outra coisa, uma metamorfose. Fiz minha reputação na década de 1970 como futurista, trabalhando com Herman Kahn no Hudson Institute por quatro anos e depois com Alvin Toffler, no Futurist Institute e outros. Eu não me considerava mais um economista, porque um economista diria aos países que, se quiserem ficar mais ricos, terão de reduzir seus salários e padrões de vida para se tornarem mais competitivos. Isso significa ser pobre. Esse certamente não era o futuro que eu queria ver.

Para mim, era muito fácil prever as taxas de juros e as taxas de câmbio. Eu percorria o mundo fazendo isso. Mas o que acabou sendo muito mais difícil foi tentar entender por que a antiguidade e a civilização ocidental seguiram o curso que seguiram. Isso foi muito mais difícil do que ser um futurista, porque as sociedades arcaicas e a antiguidade eram muito diferentes das atuais, com valores sociais diferentes. Para mim, era difícil entender a polarização do Ocidente em oligarquias credoras, porque eu não conseguia imaginar como era diferente o final da Idade da Pedra, a Idade do Bronze e até mesmo a antiguidade clássica. Seus sistemas sociais e políticos eram tão fundamentalmente diferentes, não apenas avançando, mas se transformando, em grande parte como resultado das tensões financeiras que aumentaram entre a riqueza privada e os valores e a autoridade administrativa tradicional da sociedade.

E, no entanto, apesar dessa transformação, havia um denominador comum: a escolha entre permitir o surgimento de uma oligarquia financeira ou ter um poder governamental forte o suficiente para impedir isso, como a “realeza divina” do Oriente Próximo ou os chamados tiranos gregos que cancelaram as dívidas pessoais e redistribuíram a terra para liderar a decolagem grega, ou os governos socialistas modernos. É como se essa transformação tivesse evoluído de uma espécie ou gênero de um sistema econômico para outro.

A visão ocidental dominante pensa no passado como sendo igual ao mundo de hoje, descrevendo-nos como herdeiros da Grécia e de Roma. Se essa for realmente a nossa herança genética política e social, o Ocidente manterá a mesma dinâmica que levou ao declínio e à queda de Roma. O que aconteceu foi que a Grécia e Roma – ou seja, a civilização ocidental – tiraram as inovações financeiras do Oriente Próximo de seu contexto, sem que os governantes tivessem poderes para cancelar as dívidas pessoais e impedir que as oligarquias tomassem conta da terra e a monopolizassem, dando início à Idade das Trevas.

A maioria das pessoas pensa que os gregos e os romanos eram democracias. No entanto, eles tiveram apenas pequenos movimentos em direção a algumas formas de votação democráticas transitórias. Quando Aristóteles conduziu um estudo sobre as várias constituições gregas, ele disse que todas elas se autodenominavam democracias, mas na verdade eram oligarquias. A retórica e o vocabulário eufemístico que usavam mudaram fundamentalmente. É preciso observar esse processo de transformação. O desafio de hoje não é simplesmente seguir em frente ao longo de nossa trajetória atual, mas perceber a necessidade de autotransformação para uma nova trajetória de evolução social e econômica.

A alternativa é a autodestruição. Que tipo de mundo vamos criar? Esse não é um futuro que possa ser previsto com certeza. O Ocidente se deixará polarizar e acabará como o Império Romano? Ou a Europa perceberá que cometeu um erro e se unirá novamente ao restante da Eurásia? E a Ásia realmente se libertará do neoliberalismo patrocinado pelo Ocidente que desindustrializou o mundo da OTAN? Os BRICS e a maioria global progredirão com o socialismo ou regredirão com as características libertárias de livre mercado do Ocidente?

Quando você privatiza a infraestrutura pública ou o suprimento de necessidades básicas, você aumenta muito o custo de vida. No século 19, o primeiro-ministro conservador da Grã-Bretanha, Benjamin Disraeli, proclamou que a saúde, a saúde pública, era a essência das reformas de seu partido. Eram os conservadores que queriam essa política. E nos Estados Unidos, foi Simon Patten, o primeiro professor de economia da primeira escola de negócios, a Wharton School, que descreveu a infraestrutura pública como um fator de produção distinto. A reivindicação de propriedade do locador pelo aluguel não é um fator de produção, mas uma reivindicação extrativista do locador. E, ao contrário dos salários dos trabalhadores ou do capital industrial, o investimento em infraestrutura pública e a prestação de serviços sociais essenciais não têm como objetivo a obtenção de lucro. O papel da infraestrutura pública e do bem-estar social é semelhante ao do Canal Erie e de outras infraestruturas americanas. O objetivo é reduzir o custo de vida e de fazer negócios.

Portanto, se pudermos ter uma infraestrutura pública que atenda às necessidades básicas – serviços de saúde, educação, comunicação e transporte -, se pudermos ter os correios, os sistemas de água e esgoto como funções públicas fornecidas gratuitamente ou a preços subsidiados, a economia poderá funcionar a um custo muito menor do que se esses serviços forem privatizados, monopolizados como oportunidades de extração de renda e devidamente financeirizados. O negócio do governo não é obter lucro. Ele deve suprir as necessidades básicas como um direito econômico.

Patten descreveu o objetivo da infraestrutura pública como sendo o de reduzir o custo de vida geral da economia e fazer negócios para que os industriais não precisassem pagar aos seus funcionários salários altos o suficiente para, por exemplo, permitir que eles pagassem sua própria educação – hoje, US$ 50.000 por ano – ou seu próprio sistema de saúde, que corresponde a 18% do PIB. Eles teriam subsidiado o transporte em vez de deixá-lo ser monopolizado e financeirizado, como ocorreu na Grã-Bretanha sob Margaret Thatcher e Tony Blair e Gordon Brown, do Partido Trabalhista.

A privatização desses serviços, até então públicos, fez com que eles passassem a ser administrados com fins lucrativos (em grande parte, por meio de aluguéis de monopólio) e, mais ainda, por ganhos de capital para suas ações e taxas de administração. Tudo isso aumenta o custo de vida e de fazer negócios. Evitar esse destino tem sido a grande vantagem das economias socialistas. No século XIX, todos consideravam essa infraestrutura pública como sendo socialismo, não apenas os marxistas. Havia os socialistas cristãos, os socialistas libertários de Henry George e todos os tipos de socialistas. O que eles tinham em comum era que viam o futuro do capitalismo industrial como uma economia cada vez mais pública, com investimento público ativo subsidiando a capacidade dos industriais e da mão de obra da nação de competir com a de outros países, reduzindo os custos indiretos.

O objetivo da privatização e do capital financeiro é ganhar dinheiro aumentando o custo de vida por meio da extração de renda econômica. Isso aumenta o custo de fazer negócios, extraindo renda econômica. Portanto, se você tem uma economia de saúde, educação, água e outras necessidades básicas privatizadas, com operadores cobrando o máximo que um mercado não regulamentado pode suportar (eufemizando isso como “a mágica do mercado”), como os americanos ou os europeus ocidentais que se tornaram neoliberais podem esperar competir com países que se dizem socialistas e reinventam a roda da política redescobrindo, em linhas pragmáticas, exatamente o que os capitalistas industriais americanos e alemães fizeram no século XIX?”

A entrevista completa original pode ser lida AQUI ou assistida AQUI.

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