Agora seria um grande momento para estar discutindo a guerra que acontece no Líbano, a queda das últimas posições fortificadas no Donbas, a revisão da doutrina nuclear russa ou o fato de que o único navio-tanque que os EUA dispunham ali pela região do Golfo Pérsico está com uns pequenos problemas operacionais.
Mas de vez em quando me lembro que sou economista. E de vez em quando tem aquele momento em que um texto devocional, que passa por texto político disfarçado de projeto econômico, é objeto de um monte de discussões e análises neste campo do conhecimento do qual participo tem mais de quatro décadas.
O texto em questão é o Relatório sobre o Futuro da Competitividade Europeia, conduzido por Mario Draghi, um simpático tecnocrata italiano a dois graus de separação deste que lhes escreve. É um texto que deve iluminar uma série de decisões de política econômica europeia nos próximos anos se não houver uma guerra mundial que envolva a Europa, ou uma hecatombe política causada por populistas não melonificados, eventos que forçariam uma série de ajustes emergenciais.
Piketty gostou do texto. Ele destacou como virtude principal a proposta escapar dos modelos de austeridade que levaram ao fracasso as iniciativas europeias sabe-se lá desde quando. Segundo Piketty:
“Na verdade, este dogma da austeridade baseia-se em disparates econômicos. Em primeiro lugar, porque as taxas de juro reais (líquidas de inflação) caíram para níveis historicamente baixos na Europa e nos Estados Unidos nos últimos vinte anos: menos de 1% ou 2%, e por vezes até níveis negativos. Isto reflete uma situação em que existe um enorme maná de poupanças, pouco ou mal utilizado na Europa e em escala mundial, pronto para entrar nos sistemas financeiros ocidentais praticamente sem retorno.
Nesta situação, cabe aos poderes públicos mobilizar esses montantes e investi-los na educação, saúde, pesquisa, etc. (…)”
Como devoto de MMT, agradeço a deus não estar sequer com uma bala na boca nesse momento. Teria ido parar engasgado no hospital. A proposta do Draghi envolve a Europa, enquanto coletivo, captar no mercado algo que permita 800 bilhões de euros anuais de financiamento a essa modernização. Mais à frente, Piketty faz uma crítica ao que é prioridade de Draghi, que segundo ele “apoia-se numa abordagem tecnófila, mercantil e consumista bem tradicional”. Leitora, leia o artigo do Piketty.
Martin Wolf, o principal comentarista econômico do Financial Times, já não é tão otimista assim quanto à exequibilidade da proposta:
“A UE não pode mudar o mundo. Mas pode — e deve — mudar a si mesma, para lidar com ele. O que mais claramente emerge deste relatório são os fios comuns que conectam essas várias doenças. Os mais importantes são fragmentação, regulamentação excessiva, regulamentação inadequada, gastos insuficientes e conservadorismo indevido. Destes, a fragmentação é o mais prejudicial.”
“Infelizmente, as explicações para muitos dos problemas descritos por Draghi, notadamente a fragmentação e o conservadorismo, também são as razões pelas quais suas soluções radicais são improváveis de serem adotadas.”
O que pega, na minha opinião, em como ele e Draghi veem o mundo?
“Esses males emergem repetidamente no relatório. Draghi observa que “a Europa está presa em uma estrutura industrial estática, com poucas novas empresas surgindo para perturbar indústrias existentes ou desenvolver novos motores de crescimento. Na verdade, não há nenhuma empresa da UE com uma capitalização de mercado superior a 100 bilhões de euros que tenha sido criada do zero nos últimos 50 anos, enquanto todas as seis empresas dos EUA com uma avaliação acima de 1 trilhão de euros foram criadas nesse período.””
Capitalização de mercado é um daqueles conceitos que, concretamente, não é tão preditivo assim. Por exemplo, em 2000 uma empresa chamada Nokia constava entre as 10 mais valiosas do mundo. Lembra dela? Era uma empresa europeia. A medição do Draghi feita em 2000 poria empresas como a Nokia e a Deutsche Telekom na primeira divisão dessa gloriosa lista. Por vezes o mercado realmente antevê a dominância de uma empresa: a ação da Tesla disparou bem antes dela fazer o carro mais vendido do mundo. Quem será a Nvidia assim que os chineses começarem a produzir chips mais avançados, a Tesla ou a Nokia?
O ponto é: capitalização de mercado (e a riqueza que decorre disso) não tem relação estritamente direta com o patrimônio da empresa sendo liquidada (vulgo investimento), com o faturamento da empresa, com a rentabilidade da empresa. Não expressa sua fragilidade. Nada mais irritante do que ver a discussão do aumento de riqueza de um multibilionário como se ela viesse de renda, de acumulação, de algum desses conceitos “capitalistas”. Essa flutuação de riqueza vem do controle de uma posição. (Considere isso um pequeno canapé que estou servindo para consumirmos o livro do Varoufakis em algum momento mais adiante… rs)
Falando no Varoufakis, basicamente ele resgata como o 5% de investimento verde/tecnológico, que concretamente é o que Draghi propõe, era uma proposta progressista (e do próprio Iannis) desde o início da década passada… mas já era. Ele conclui: “His report reads like a swansong and a renunciation of personal blame for Europe’s degeneration into a museum of bygone industries and excellent reports that were praised to the skies before being shelved.” Varoufakis entende que, no meio da estagnação onde a Europa andou praticando seu quantitative easing, o Banco Central Europeu poderia ter comprado os títulos do Banco Europeu de Investimento e permitido, na década passada, que a indústria europeia se mantivesse competitiva e a infraestrutura tivesse sido modernizada. Agora, o trem da história foi em frente, e os trens alemães ficaram para trás.
Uma análise longa, que apresenta uma série de gráficos interessantes do relatório, está em dois posts no substack do Adam Tooze. O primeiro introduz o problema da queda da produtividade/investimento relativo aos EUA, de como eles são mais baixos do que se esperaria. O segundo entra na discussão de alguns dos problemas, como nos setores automobilístico, indústria de defesa, telecomunicações etc. Embora a interpretação do problema siga muitas vezes na linha dos problemas de fragmentação e escala, Tooze conclui no que seria uma disfuncionalidade central ao problema europeu, sua própria macroeconomia:
“Since the Eurozone crisis it has been clear that relations between big business and EU governance are profoundly dysfunctional. In the 2010s conservative strategies of macroeconomic governance backfired disastrously. The Draghi report rams home the point that the EU for all the sophistication of its governance no longer provides European capital with the platform to face global competition at the scale of the US or China. The answer is not to be found in domestic deflation strategies at the expense of European workers, or crimping public spending. What is needed are bigger markets, more investment and more innovation. What is needed is a fundamental reorientation of policy towards demand and innovation-led growth. Defending the status quo, as European conservatives advocate both in industrial and fiscal policy, offers no safety, but only a recipe for further relative decline and dependence on technological innovation coming from the US and China.”
Mas outras interpretações são possíveis. Sem acesso ao X/Twitter, não tenho como trazer fragmentos do que o Pilkington tratou sobre a questão. Mas há a conversa dele sobre o assunto no Multipolarity podcast. Pilkington é a interessante mistura de um macroeconomista algo conservador com um antineoliberal convicto. Pró-China, pró-Hungria. A crítica que ele faz basicamente trata dos saltos e contradições entre o que é afirmado e os dados que são usados para justificar. Como, por exemplo, o fato de que a superioridade de produtividade americana em “tech” acontece nos setores de Serviços Profissionais e de Finanças e Seguros. Aliás, produtividade é uma daquelas coisas que as pessoas têm uma imaginação do que seja na cabeça que não propriamente bate com a forma como o índice é calculado. É como custos, outra coisa que, sem um entendimento da estrutura de um negócio, escapa ao olhar leigo.
Mas o centro do argumento do Pilkington é que o problema principal da Europa é o custo energético, um problema insolúvel se não se encarar o equívoco que é o envolvimento europeu na guerra da Ucrânia. Sem a energia barata do gás russo que chegava por gasoduto à Alemanha, não há como a indústria alemã – e a europeia por extensão – ser competitiva. Escondido no meio do relatório do Draghi está esse ponto.
Já ultrapassei o que é o tamanho de uma crônica normal. Semana que vem eu retorno com minhas considerações sobre o relatório. Até lá, feliz primavera e bom Cosme e Damião.