O ex-deputado José Genoino, fundador do PT, avalia que é preciso esperar os resultados das cidades onde vai haver segundo turno — especialmente São Paulo –, para fazer um balanço mais fiel das eleições de 2024.
Essas votações, acredita, podem mudar consideravelmente a correlação de forças. Reconhece, porém, o domínio político da direita e da extrema direita.
Em meio a esse cenário negativo, Genoíno, de 78 anos, vê sinais de algum avanço da esquerda.
“Considerando que as eleições de 2016 e 2020 foram o fundo do poço, estas eleições significaram uma retomada política”, diz. O PT conquistou 248 prefeituras, 65 a mais que no último pleito municipal.
Genoino é o quinto participante da série de entrevistas que o ICL Notícias faz para refletir sobre o avanço da direita no mapa eleitoral desta votação e debater sobre os caminhos que a esquerda deve tomar para recuperar o espaço perdido.
Na lista de problemas a serem resolvidos pelas forças progressistas, o ex-deputado cita em primeiro lugar a “institucionalização exagerada” que causou um afastamento das ruas, dos movimentos sociais.
Entre as providências a tomar, ele aposta em uma postura antissistema capitalista, algo que parece contrastante com a postura do governo Lula até aqui, marcado pelo signo da frente ampla que o ajudou a se eleger.
“Eu acho que governar nas condições do neoliberalismo é lutar, é brigar, é enfrentar. Isso que eu acho que é fundamental”, sugere.
ICL Notícias: Como você viu e como avalia os resultados dessas eleições municipais de 2024?
José Genoino: A nossa avaliação ainda não tem que ser definitiva porque estamos no meio de uma batalha política e vai ter segundo turno.
E o resultado do segundo turno, no caso do PT em 13 cidades, e particularmente em São Paulo, pode alterar o quadro geral e a correlação de força do desempenho do partido e da esquerda nessa eleição.
De um modo geral, eu acho que essa eleição refletiu o domínio político da direita e da extrema direita.
Ao mesmo tempo, representou um potencial de crescimento para as forças de esquerda, tanto em relação ao número de prefeituras como em relação ao número de vereadores.
Considerando que as últimas eleições de 2016 e 2020 foram o fundo do poço, estas eleições significaram uma retomada política do papel das forças de esquerda nesse tabuleiro.
Uma eleição municipal geralmente acaba privilegiando as forças mais conservadoras que são muito vinculadas ao poder local, às obras de orçamento, à relação com os interesses paroquiais.
De uma certa maneira, a disputa nas capitais e nas cidades grandes demonstraram potencial, particularmente a ida do Boulos para o segundo turno em São Paulo, com chance de ganhar.
É uma grande vitória política, porque a eleição do São Paulo tem um sentido estratégico. Tanto para a cidade de São Paulo, quanto para o país, para as esquerdas e para o governo Lula.
Portanto, nem sou pessimista, nem sou oba-oba sem analisar. Eu acho que tem que ter um otimismo militante na análise em relação ao processo político que demonstra que a as esquerdas podem construir um polo de frente, algo que foi que sinalizado nessa eleição: onde a gente conseguiu [construir uma frente] se saiu bem.
Onde não conseguimos, como Belo Horizonte, como Salvador ou Curitiba, a gente não se saiu tão bem.
Os resultados dessas eleições reforçaram as críticas de que a esquerda não tem renovação, que não vai onde o povo está e não consegue mobilizar as massas. Você concorda que a esquerda está em crise no Brasil?
Eu acho que precisamos examinar com mais cuidado. Temos que sair dos clichês, sair dos slogans e tirar a poeira dos olhos pra examinar melhor.
Primeiro que a esquerda, particularmente o PT, vem de uma época em que foi duramente combatida, criminalizada, em que a direita e a extrema direita jogaram para acabar com o PT. E o partido está demonstrando uma vitalidade política.
Em segundo lugar, existem questões novas para a esquerda encarar na disputa política.
A questão mais importante é assumir o protagonismo de uma postura antissistema capilarista, antineoliberal.
Para combater a extrema direita, que é um fenômeno novo no Brasil, particularmente do golpe de 2016 para cá, é fundamental a esquerda assumir um programa, uma tática mais combativa.
Isso vai exigir uma mistura da luta institucional com a luta social. Vai exigir uma combinação dos palácios com as ruas. E vai exigir também uma mudança dos métodos de trabalho.
Acredito que a institucionalização exagerada tirou a esquerda da relação com a sociedade, das ruas, dos movimentos sociais. A gente tem que fazer esse retorno.
Agora, a questão mais importante se dá no programa político, na estratégia política. Porque nós atravessamos no Brasil e no mundo uma situação desfavorável pois há uma hegemonia da direita e da extrema direita.
Veja a Europa, veja própria América do Sul, veja os estados Unidos. Então nós temos que reconstruir a ideia da esperança, a ideia do futuro, a ideia da de que outra sociedade é possível. Acho que esse é o grande dilema que nós temos que enfrentar.
A própria experiência do governo Lula, que foi eleito em 2022 numa frente amplíssima está indicando que é necessário a gente construir um polo à esquerda, dentro e fora do governo.
Para fiscalizar, para pressionar, para exigir, para disputar este enfrentamento político que está em curso no Brasil e no mundo. Nós estamos atravessando uma crise sistêmica ampla, profunda e múltipla.
Uma crise desse porte — a crise da guerra, a crise climática, a crise social, a crise cultural, a crise das pandemias –, vai exigir um trabalho mais claro para que a gente possa desmascarar essa ideia de que a extrema direita é antissistema. A extrema direita é a favor do que há de pior no sistema capitalista, monopolista, imperialista.
Temos que fazer esse trabalho de disputa de corações e mentes.
Como criar uma frente antissistema dentro do governo com essa formatação de frente ampla e com o Congresso acuando o Executivo como está fazendo?
Primeiro, governar é também enfrentar, é também polarizar. Governar é também dialogar com a sociedade.
Em segundo lugar, eu acho que nós temos que discutir a pauta do país. Eu entendo que o governo Lula podia criar um núcleo à esquerda junto à frente ampla — é o que eu defendo desde 2022, quando o Lula foi eleito.
E é necessário a gente fazer um debate profundo com a sociedade, com os movimentos políticos, com os movimentos sociais, com a intelectualidade, com a academia, sobre uma reforma constitucional profunda, porque essa eleição revelou que nós temos uma institucionalidade capenga, uma institucionalidade oligárquica e autoritária, com orçamento secreto, com o surgimento dessas figuras que manipulam com competência a internet .
Uma institucionalidade que estabelece uma política de constrangimento em relação ao governo. Eu acho que governar nas condições do neoliberalismo é lutar, é brigar, é enfrentar. Isso que eu acho que é fundamental.
Mas o risco de uma reforma constitucional com esse Congresso é piorar a situação.
Com esse Congresso, não. Falo enquanto perspectiva política. Por exemplo, o nosso sistema político eleitoral vai proteger sempre o Congresso conservador.
Porque você tem uma representação dos estados que é diferente da representação para a Presidência da República. Para presidente, cada eleitor é um voto. Para o Congresso não é.
Aí você tem emendas individuais, orçamento secreto, você tem a falta de fidelidade partidária. Há uma relação promíscua.
Eu defendo que o governo incentive que o meu partido, o PT, constitua dentro do Congresso um polo de esquerda. Não é majoritário, nem será. Mas é necessário ter um polo à esquerda dentro da disputa parlamentar, coisa que a gente sempre teve na Constituinte, na oposição ao governo Fernando Henrique Cardoso.
Eu acho que a gente não pode ficar diminuído nessa frente amplíssima que descaracteriza o programa.
E quando eu falo lutar por pautas transformadoras não é só aquilo que vai passar, nós também temos que lutar por pautas para marcar posição, para sinalizar para a sociedade, para dialogar com os movimentos e, principalmente, indicar que o nosso futuro é outro.
Eu acho que o país está precisando de um projeto de futuro e a esquerda tem que ser protagonista desse projeto.
Você fala de um núcleo antissistema fora do governo, mas hoje as condições de mobilização popular são muito diferentes dos tempos mais combativos do PT. De onde viria essa fagulha?
As dificuldades são grandes, até porque temos a hegemonia neoliberal, a criminalização da política, a mercantilização da sociedade, o processo de hegemonia autoritária conservadora.
Em primeiro lugar, nós temos que fazer uma conjugação das forças de esquerda, não só o PT, com o que há de organizado nos movimentos sociais.
Segundo, juntar com as bandeiras da luta das mulheres, da luta do povo negro, da luta da comunidade LGBTQIA+, da luta dos povos originários.
Em terceiro lugar, nós estabelecemos um processo de unidade processual. Ninguém vai querer comandar, ninguém vai querer hegemonizar, mas nós vamos construir um processo de resgatar a confiança, a autoestima da frente política e da frente social, da frente cultural, da frente ideológica.
Porque essa eleição mostrou também que há uma militância de esquerda espalhada pelo país.
Eu acompanhei essa eleição no Brasil inteiro e há uma militância de esquerda. Tem muitos movimentos de base que estão dispersos e atomizados.
Por último, eu acho que o PT, como principal partido de esquerda, deve passar por uma reforma mais ampla, tanto na sua linha política como nos seus métodos de direção.
Eu defendo que a gente execute um processo de plenárias para poder fazer um amplo debate dessas questões, antes de mudar a direção do partido.
Desesperança é a palavra do momento, não só quanto à política partidária, mas também em relação à participação popular. O que você tem a dizer às pessoas que estão com esse sentimento?
A esperança é vermelha, a esperança é transformadora, a esperança é a gente discutir um caminho, um objetivo para enfrentar esse sistema.
Esse sistema, além de esgarçar as relações sociais, intensificar a exploração, tenta ganhar corações e mentes para um projeto individualista, um projeto excludente, um projeto baseado no mercado, na propriedade, num conceito reacionário e antiquado de família.
Nós temos que fazer o encantamento político além da plataforma econômica, social, cultural, política de inclusão, também de uma plataforma de direitos afirmativos amplos e irrestritos.
Essa plataforma tem que estar vinculada a uma rebeldia social, à ideia de transformações radicais, transformações estruturais.
Nós não podemos ficar apenas fazendo curativos, colocando esparadrapo na ferida do sistema neoliberal. Nós temos que fazer cirurgias.
Acho que nós temos que fazer um trabalho, ainda numa situação contra hegemônica, ainda numa situação defensiva estratégica, mas com muita ousadia, com muita capacidade.
A gente tem que sair da moderação e da acomodação.
Chico Alves, do ICL Notícias