Conheci o General Ernesto Geisel nos últimos meses de 1973.
Na época, respondia pelo setor econômico do Escritório do Itamaraty no Rio de Janeiro.(ERERIO). Devia ser por volta das 18 horas, pouco mais, pouco menos quando me telefonaram de Brasília. Pensei que boa coisa não poderia ser…
O Itamaraty era, e ainda é , um oásis no centro ofegante do Rio de Janeiro.
Naquele entardecer, os dois cisnes brancos deslizavam serenos, como suaves patinadores enamorados, na lâmina esverdeada do lago que fazia dele, Itamaraty ,um ponto raro de paz quase monástica.
E anteparo ao burburinho que nos vinha da Avenida Presidente Vargas na altura do Ministério da Guerra ( podem mudar o nome, mas este é o que sempre fica) e debaixo dos ponteiros iluminados da Central do Brasil.
Convenhamos: um privilégio trabalhar naquele cenário. Só nos faltava uma Igreja – quem sabe, uma das tantas a enriquecer a Rua Primeiro de Março- com os sinos a badalar a Ave-Maria às seis da tarde.
Mas, experiência desta natureza só vim a ter muitos anos depois, na Piazza Navona, onde terminei meus anos no Itamaraty, como Embaixador do Brasil na Itália.
De onde, no fim do século XIX, minha avó materna, ainda menina, embarcara como imigrante para o Brasil. Não teve a alegria de ver seu neto representar o país que a acolheu em seu país de nascimento. Voltas que a vida dá…
Até hoje, me recordo do telefonema direto do gabinete do então Chanceler Gibson Barbosa :
“fale apenas o essencial, retransmita inclusive o que possa parecer-lhe desnecessário. Imediatamente”.
Encontrei-me com o visitante ainda na porta do edifício onde Geisel, já desligado da Petrobras, se preparava para assumir suas funções de Presidente da República, segredo de polichinelo àquela altura.
O representante da Embaixada do visitante, apresentou-me seu superior e vi logo, pelas mesuras e um certo nervosismo de meu colega estrangeiro, que estava diante de um figurão de um país árabe produtor de petróleo.
Mal esperamos poucos minutos antes de sermos recebidos por Geisel. Figura marcial, empertigado, sem afetação, o General apertou a mão do visitante e a minha, nos convidou a sentar num pequeno sofá . Postou-se em frente e ,sem maiores delongas, convidou o visitante a falar. Não houve nem conversinha preliminar nem cafezinho. Um assessor dele, Geisel, nos assistia discretamente meio distanciado de onde estávamos.
Não devo, por dever de sigilo, revelar aqui o teor da conversa entre o então futuro Presidente do Brasil e seu interlocutor que – depois soube- era um emissário da casa Real de seu pais.
Lembro que o interlocutor de Geisel desfiou um rosário de comentários sobre o que considerava indícios de um afastamento progressivo do Brasil diante das reivindicações dos países árabes na Nações Unidas e aduziu que seu governo fazia um apelo para que o futuro Presidente “pudesse dedicar um pouco de sua atenção “ antes que o problema se aprofundasse.
Geisel não se fez de rogado. Como não se sentia confortável em falar em francês, língua que o visitante claramente dominava, virou-se para mim e gentilmente pediu-me que traduzisse o que ia dizer.
O que ele falou, poucos meses depois, virou política de Estado, é de conhecimento público e não me cabe aqui repetir. O que registrei ,desde logo, é que estava assistindo a uma prévia do que seria a política de Geisel, juntamente com Silveirinha, no Itamaraty.
E de imediato, percebi que Geisel iria mudar a rota de nossa política externa de forma profunda, que acabaria de vez com a timidez de nossa diplomacia diante do “Bifrontismo”,que nos havia tornado inseguros diante das abusivas reivindicações americanas orquestradas pelo famoso destino manifesto.
Geisel, como veremos no próximo artigo, fez renascer uma Diplomacia a que se denominou de “Pragmatismo Responsável”, mas que na realidade retomava nossa defesa da soberania nacional, soltava a voz de nossos diplomatas na ONU e nos órgãos econômicos internacionais.
Em contrapartida, a serpente agasalhava seu ovo e Nixon começava a modificar os acordos de Bretton Woods em especial a convertibilidade do dólar e armava a cama de gato que iria desembocar nas graves crises trazidas pelo Consenso de Washington e na armadilha da dívida externa que bombardeou a política econômica de Geisel.
De qualquer maneira, domingo que vem, contarei os tempos do renascimento diplomático, tal como os vivi em Genebra, onde não só se jogava fora a bacia da Unctad, como se reverenciava a chegada do belzebu de ouro dos acordos leoninos da OMC ( Organização Mundial do Comércio) .