Para reduzir a pressão sobre a cotação do dólar e a curva de juros futura, aliviando a tensão sobre a atividade econômica, A Faria Lima quer que o governo faça um corte de gastos de pelo menos R$ 60 bilhões. É o volume considerado necessário para frear uma trajetória explosiva da dívida pública e evitar a quebra do arcabouço fiscal recém-aprovado pelo governo Lula logo ali em 2026.
Não entram nesse movimento, contudo, pressões para que sejam reduzidas as perdas de receitas com os subsídios e as desonerações concedidas pelo governo a setores e grupos econômicos.
Isenções e desonerações bilionárias
Números divulgados nesta quarta-feira pela Receita Federal, mostram que 55 mil empresas privadas informaram terem usufruído, em 2024, até fins de outubro, de pouco menos de R$ 100 bilhões de recursos que o governo deixou de arrecadar em impostos para incentivar atividades econômicas. Só esse montante, se arrecadado, mudaria completamente, para melhor, o quadro fiscal.
Os cortes de gastos exigidos, que inevitavelmente atingirão áreas de atendimento social, não passam de 60% do total que deixou de ser destinado aos cofres públicos com as isenções e desonerações declaradas pelas empresas. Na verdade, o volume de receita que deixou de ser recolhido entre janeiro e outubro equivale a menos de 15% de todas as renúncias fiscais previstas para 2024 — grande parte delas sem que se saiba bem os critérios de concessão e, mais do que isso, sem avaliação do que realmente trazem em contrapartida para a economia e a sociedade.
Subsídios, isenções, desonerações, abatimentos e outras renúncias fiscais que se traduzem em perda de receita pública, nas esferas federal e estadual, somarão pelo menos R$ 750 bilhões, neste ano, segundo projeções do inédito “Relatório Nacional sobre Gastos Tributários”, divulgado nesta quarta-feira (13). No jargão da área fiscal, essas renúncias recebem o nome de gastos tributários.
É uma montanha de dinheiro, que equivale a quase 7% do PIB, e que não engloba todas as possíveis renúncias fiscais. Segundo os autores do documento, o volume de recursos envolvidos deve ser maior.
Conta incompleta
Há gastos tributários que não são classificados como tal, embora expressem renúncias fiscais. Além disso, a coleta de informações sobre gastos tributários nos estados, onde os critérios de classificação são ainda menos padronizados do que no âmbito federal, permanece incompleta, e não há dados sobre o que é destinado por municípios como incentivo fiscal a setores e grupos econômicos.
O relatório brasileiro sobre gastos tributários faz parte de um esforço internacional para ampliar a transparência na concessão e, em consequência, a própria capacidade de avaliação das contrapartidas oferecidas pelos benefícios concedidos.
Conduzido por pesquisadores da FGV-RJ (Fundação Getúlio Vargas, do Rio de Janeiro), o trabalho teve o apoio da ONG Samambaia.org e faz parte de um projeto internacional de estudos conjuntos e trocas de experiências no campo dos gastos tributários. O problema da falta de transparência e da ausência da devida avaliação de resultados envolvendo renúncias fiscais não é só brasileiro, mas global.
No caso do Brasil, em lugar de apontarem restrição à concessão desses benefícios que, quando não apresentam contrapartidas sociais e econômicas, deveriam ser classificados como privilégios concedidos pelo poder público ao setor privado, o conjunto das renúncias fiscais mostram uma trajetória ascendente ao longo dos anos.
Escalada de privilégios
Nas últimas duas décadas, os gastos tributários subiram de 2% do PIB ao ano, em 2002, para 7% do PIB anuais, de 2022 a 2024. No meio do caminho, avançaram para 3% do PIB em 2007 e dobraram de ritmo, escalando para 6% do PIB ao ano, até 2021.
De acordo com a lógica econômica, os gastos tributários, com tempo determinado de validade, são um instrumento válido de incentivo a setores econômicos e empresas, desde que ofereçam contrapartidas — manutenção ou aumento de empregos, ampliação de compra de insumos, colaborando para fazer rodar a atividade, resultando, no fim do roteiro, em elevação do recolhimento de tributos.
Não é isso, porém, o que acontece. Para começar, a concessão dos benefícios depende mais do poder de pressão dos setores e grupos econômicos junto ao governo e ao Congresso. Também o tempo de validade do benefício é incerto, e as prorrogações indefinidas são a regra. Pior de tudo, não há critérios ou inexiste sistema de avaliação de resultados e contrapartidas.
A escalada dos gastos tributários ocorreu a partir do segundo mandato do presidente Lula, avançou ainda mais na gestão encurtada de Dilma Rousseff, e foi mantida em nível elevado nos governo Temer e Bolsonaro. Lula está provando do próprio veneno quando, com razão, reclama desses benefícios que, não em todos, mas em muitos casos, não trazem benefícios ao país.
Um exemplo que ilustra bem o escândalo em que se transformaram os gastos tributários, ainda mais quando cresce a pressão por cortes de gastos sociais, é o da desoneração da contribuição ao INSS da folha de pagamentos de 17 setores econômicos.
Criado por Dilma em 2012, para valer por três anos, o benefício vem sendo prorrogado nesses últimos 12 anos e agora vai valer até 2027. Nesse período, de acordo com levantamento de pesquisadores do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), estes setores não só não criaram mais empregos como alguns deles estão entre os que reduziram o contingente de mão de obra.
Reação agressiva
Na busca de recursos para equilibrar as contas públicas, Lula editou, em junho, MP (Medida Provisória) para estancar a sangria da desoneração da folha de pagamentos, que consome por volta de R$ 20 bilhões anuais em renúncias fiscais. A reação dos setores econômicos e do Congresso foi agressivamente contrária.
A MP foi devolvida pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Devolução de uma MP é fato raríssimo, que, depois da redemocratização, só ocorre, em média, a cada sete anos. Negociações posteriores resultaram na prorrogação do benefício por mais três anos.
Para a Unafisco, associação nacional dos auditores fiscais da Receita Federal, a não existência de tributação sobre lucros e dividendos, assim como no caso de grandes fortunas, constitui gasto tributário classificável como privilégio. Sem considerar tributos ainda não existentes, os maiores gastos tributários se destinam ao Simples Nacional, à Zona Franca de Manaus e à agricultura (incluídas as desonerações da cesta básica).
No conjunto, a Unafisco considera que 60% dos gastos tributários não apresentam contrapartidas ou, simplesmente, não são avaliados, representando, portanto, privilégios tributários. O valor corresponde a algo como R$ 300 bilhões anuais.
Revertido ao erário, esse volume de recursos seria suficiente não só para equilibrar as contas públicas, mas para obter superávits fiscais robustos, ainda que com aumento de gastos. Mas todas as tentativas de pelo menos mitigar a sangria de recursos têm esbarrado em muralhas políticas intransponíveis.
Para um país com manchas imensas de pobreza e exércitos de cidadãos vulneráveis, a manutenção de gastos tributários neste volume sem o devido controle e avaliação só tem um nome possível: é crime social.