Não satisfeito com a virada recente na política de juros, em grande parte resultante de manobras arquitetadas pelo próprio, Roberto Campos Neto, ainda na presidência do Banco Central (BC), escancarou a liderança que exerce também na “esquadrilha austericida” numa entrevista concedida a um jornalão paulista e publicada no dia 14, quinta-feira, véspera de feriado. Sem o menor rubor nas faces e nenhuma consideração de caráter ético, exercitando um nível de cinismo típico de figuras que circulam nas vertentes mais à direita do espectro político e do pensamento econômico, Campos Neto decretou que, sem cortar despesas “na carne” e realizar um “ choque fiscal”, sem truques que produzam apenas aumento de receitas, a economia vai soçobrar e a “percepção de risco” do Brasil, evidentemente, vai piorar.
Já seria estranho um presidente de banco central, em qualquer outro país, disparar críticas à política econômica. Pior ainda quando argumenta que, mesmo diante da queda da inflação, o “choque fiscal” não pode ser adiado. O episódio, que se tornou rotineiro numa fase mais recente, ganha maior gravidade quando a autoridade monetária se encarrega de manipular dados, escondendo-se atrás das tais expectativas dos mercados para expressar opiniões com as quais não apenas concorda, mas tem dado suporte em encontros reservados e, muito frequentemente, em manifestações públicas.
“Olhando as pesquisas que a gente recebe de mercado”, responde ele ao jornalão, “tenho escutado [a defesa de cortes de despesas] entre R$ 30 bilhões e R$ 50 bilhões no ano de 2025 e alguma coisa estrutural. No estrutural, não é uma opinião do Banco Central, o que a gente tem visto os economistas falando é que enderecem o ponto da indexação e da vinculação”. Para deixar mais claro, o que Campos Neto está defendendo é o fim da correção anual do salário mínimo, tomando a inflação como base, e a extinção dos pisos constitucionais definidos para as despesas com saúde e educação, de forma a permitir seu achatamento já na sequência.
Como não poderia deixar mais claro, a entrevista reforça que o Estado brasileiro continua sob ataque ferrenho da “esquadrilha austericida”, num momento em que a equipe econômica discute alguma forma de “ajuste” nas despesas, supostamente para “tranquilizar” os mercados. A ofensiva continuada, amplamente reproduzida por dez a cada dez analistas e comentaristas econômicos abrigados na Faria Lima, centro financeiro paulistano, e na grande imprensa corporativa, certamente tem sob mira os gastos com as faixas da população que mais necessitam e utilizam os serviços prestados pelo setor público.
Propositadamente, como faz Campos Neto, os ataques deixam de fora a segunda maior rubrica na lista de despesas consolidadas do governo central, na soma dos gastos da União, da Previdência e do Banco Central (BC). Nos nove meses iniciais deste ano, a conta dos juros respondeu por 46,5% do aumento geral dos gastos, mas isso não gera temores entre os que se alinham ao “esquadrão austericida” – muito ao contrário.
Ainda sem acrescentar a conta dos juros, o governo central realizou gastos de quase R$ 1,672 trilhão entre janeiro e setembro deste ano, frente a R$ 1,570 trilhão nos mesmos nove meses do ano passado, o que representou um aumento de 6,46%, não muito distante do avanço realizado pelas receitas. Mas, em valores absolutos, o avanço traduziu-se num gasto adicional próximo de R$ 101,441 bilhões (em torno de R$ 7,280 bilhões a mais do que o total de receitas arrecadadas a mais pelo governo no mesmo período). Esse número determinou um aumento real de 7,45% para o resultado primário (a diferença entre receitas e despesas, excluídos os juros), que avançou de R$ 97,730 bilhões para R$ 105,010 bilhões, sempre no acumulado entre janeiro e setembro em cada ano analisado.
Peso maior
Em valores correntes, quer dizer, sem correção pelo IPCA, o déficit primário saiu de R$ 94,330 bilhões para R$ 105,187 bilhões, na série de dados da Secretaria do Tesouro Nacional (STN). Na comparação com o Produto Interno Bruto (PIB) estimado pelo Banco Central (BC) para os nove meses iniciais de cada ano, o resultado negativo saiu de 1,18% para 1,23%, ou seja, uma elevação de “gigantescos” 0,05 pontos percentuais. Não deixa de ser irônico que a “grande batalha” dos austericidas tem se dado em torno dessa variação minúscula, quase desprezível em termos estatísticos. Mesmo porque, o resultado total das contas do governo central, com o acréscimo dos juros, apresentou desempenho muito pior.
Considerados de forma isolada, os gastos com juros subiram 17,68% em termos reais, passando de R$ 498,014 bilhões para pouco menos do que R$ 586,065 bilhões, acrescentando R$ 88,050 bilhões às despesas. Numa contabilidade um tanto fora do figurino adotado pelo governo, por seus críticos e especialistas em contas públicas em geral, na soma entre despesas primárias e juros, os gastos totais experimentaram alta geral de 9,16%, sempre em valores atualizados com base no IPCA.
Neste caso, o governo central desembolsou até setembro deste ano em torno de R$ 2,258 trilhões, em torno de 35,06% acima dos valores anotados quando se consideram apenas os gastos primários. No mesmo intervalo do ano passado, a despesa geral havia alcançado R$ 2,068 trilhões, superando o gasto primário em 31,72%. A comparação entre aqueles dois valores mostra um acréscimo de R$ 189,491 bilhões, dentre os quais, em torno de 46,47% tiveram como origem o aumento nos gastos com juro (aqueles R$ 88,050 bilhões a mais já relacionados acima).
O resultado final foi um salto real de 16,0% no déficit total, que subiu de R$ 595,744 bilhões para R$ 691,075 bilhões, registrando variação de praticamente R$ 95,331 bilhões. Na comparação com o PIB, considerando dados nominais, o rombo avançou de 7,06% para 7,98%, o que significou uma variação de 0,92 pontos percentuais. Nitidamente, faria mais efeito, sob o ponto de vista das contas totais do setor público, algum controle sobre os gastos com juros.
Uma redução de R$ 60,0 bilhões, como os mercados têm defendido (mas escolhendo como alvo exclusivamente as despesas primárias), traria o déficit final para 7,28% do PIB, num ajuste de 0,7 pontos, mais substancial do que o resultado que seria alcançado com o sacrifício de despesas muitas vezes mais essenciais, sob o ponto de vista das contas públicas, mas sobretudo considerando seu impacto para as populações de menor renda.
O perfil das despesas gerais, somando gastos primários e financeiros, mostra participação de 32,25% para o pagamento de benefícios previdenciários nos primeiros nove meses deste ano, somando em torno de R$ 728,049 bilhões, crescendo perto de 3,48% em relação ao igual período do ano passado. Em 2023, os benefícios demandaram R$ 703,585 bilhões, com participação de 34,02% na composição do total das despesas. A despeito dessa participação, a contribuição dos benefícios da Previdência para o aumento das despesas gerais ficou limitada a apenas 12,91%.
“Bolsa juros” supera gastos sociais
Os gastos com juros surgem como a segunda maior despesa do governo central, com sua participação no geral avançando de 24,08% para 25,96%. O governo gastou mais com juros do que a soma das chamadas “despesas sociais”, incluindo abono salarial e seguro desemprego, benefícios de prestação continuada e renda mensal vitalícia, Bolsa Família, saúde e educação (acrescentando aqui a complementação da União ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, o Fundeb).
Nessa conta, os gastos saíram de R$ 449,637 bilhões nos nove primeiros meses de 2023 para R$ 501,687 bilhões neste ano, num avanço real de 11,58% (em torno de R$ 52,050 bilhões). A participação em relação às despesas gerais, já com a inclusão dos juros, flutuou de 21,74% para 22,22% e sua contribuição para o incremento dos gastos totais chegou a 27,47%. Como parece claro, a influência dos juros no avanço geral das despesas foi muito mais relevante, quase 70% maior do que a contribuição dos gastos sociais. Na comparação entre os dois valores, a despesa com juros superou os chamados gastos sociais em 16,8% nos nove primeiros meses deste ano.
*Lauro Veiga Filho – Jornalista, foi secretário de redação do Diário Comércio & Indústria, editor de economia da Visão, repórter da Folha de S.Paulo em Brasília, chefiou o escritório da Gazeta Mercantil em Goiânia e colabora com o jornal Valor Econômico.
Publicação original em https://jornalggn.com.br/opiniao/terrorismo-de-campos-neto-esconde-estrago-dos-juros-nos-gastos-do-tesouro-por-lauro-veiga-filho/