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Gênese e precursores do desenvolvimentismo no Brasil 

Por Pedro Cezar Dutra Fonseca 

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Gênese e precursores do desenvolvimentismo no Brasil 

Pedro Cezar Dutra Fonseca 

Resumo: O artigo aborda as origens do desenvolvimentismo no Brasil, enfocando dois planos: o teórico e o histórico. No primeiro, aponta como suas correntes precursoras: a) os nacionalis tas; b) os defensores da indústria; c) os papelistas; e d) os positivistas. Após analisar a contribuição de cada uma e como elas se mesclam e se adaptam para a constituição de um novo ideário, aponta-se o governo de Getúlio Vargas, ainda na Primeira República, quando assumiu a presidência do Estado do Rio Grande do Sul, em 1928, como a primeira experiência histórica desevolvimentista no país. 

Palavras-chave: economia brasileira, desenvolvimentismo, Vargas, indústria brasileira, nacionalismo, positivismo, papelismo. 

Usualmente o termo “desenvolvimentismo” remete de imediato às teorias cepalinas e, como fenômeno histórico, em geral é associado no Brasil aos governos a partir da década de 1950, como os de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek. Numa análise mais abrangente, de monstra-se que mesmo os militares, com o rompimento político havido em 1964, continuaram implementando políticas desenvolvimentistas. Na falta de uma definição mais precisa, o desenvolvimentismo é mui tas vezes confundido com outros fenômenos associados a ele em expe riências históricas mais típicas: defesa da industrialização e do intervencionismo, que vai desde políticas econômicas expansionistas, pró-crescimento, até o planejamento e a criação de empresas e bancos de fomento estatais, geralmente emoldurados por uma retórica com apelos ideológicos nacionalistas. 

1 Professor Titular do Departamento de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e Pesquisador do CNPq. Agradeço as sugestões de Pedro Paulo Zahluth Bastos e Sérgio Marley Modesto Monteiro, eximindo-os da responsabilidade da versão final. 

Este artigo propõe-se a contribuir para a recuperação, de forma mais sistemática, das origens do desenvolvimentismo no Brasil. Há que se distinguir, de início, dois planos que, do ponto de vista metodológico, a análise precisa abranger para atingir seu propósito. 

O primeiro, o das idéias, indaga quais os precursores do ideário que, na segunda metade do século XX, se associou ao que se convencionou denominar “desenvolvimentismo”. Embora haja con trovérsias sobre seu significado e alcance, este é entendido, numa primeira abstração que servirá como ponto de partida, como possu indo um “núcleo duro” que o caracteriza em suas várias manifesta ções concretas, como a defesa: a) da industrialização; b) do intervencio nismo pró-crescimento; e c) do nacionalismo, embora este deva ser entendido num sentido muito amplo, que vai desde a simples retóri ca ufanista conservadora até propostas radicais de rompimento uni lateral com o capital estrangeiro. Acompanhando-se historicamente a gênese dessas idéias no Brasil, detecta-se sua existência, embora de forma fragmentária, desde a época do Império – e algumas, como as nacionalistas, remontam ao período colonial. 

O segundo plano, conquanto não dissociado do primeiro, enfoca mais diretamente a política econômica, as medidas efetivamente pro postas e/ou implementadas pelos governos. Com isso, convém indagar: quando um governo pode ser considerado “desenvolvimentista”? Qual a primeira experiência histórica no Brasil? Quando efetivamente há o ponto de inflexão em que as idéias e/ou práticas parciais e fragmentárias são ultrapassadas e se chega efetivamente em outro estágio, que com mais rigor se pode detectar o fenômeno histórico do desenvolvimentismo? E, o que é mais difícil precisar metodologicamente: qual seria este ponto de corte, já que a defesa da industrialização, de políticas intervencionistas pró-crescimento e de idéias nacionalistas é muito mais antiga do que normalmente se considera como desenvolvimentismo, um fenômeno tí pico do século XX, principalmente após a ascensão de Vargas ao poder em 1930? 

Assinala-se, desde já, que simples declarações de autoridades em defesa de medidas de política econômica correlatas ao referido “núcleo duro” não permitem, por si sós, que se considere um governo como desenvolvimentista. Nem se precisa apelar para a velha dicotomia entre discurso e prática, ou mesmo para a complexa e sempre polêmica relação entre discurso e práxis cotidiana dos homens, para de fender este ponto de vista. Há uma razão básica de ordem empírica: nem sempre os três elementos do “núcleo duro” aparecem associa dos historicamente; ao contrário, demorou bastante tempo até os mesmos conjugarem-se, com certa coerência, em um ideário comum. Assim, gratia argumentandi, nem sempre a defesa da industrialização associou-se a políticas conscientes e amplas de intervenção estatal; da mesma forma, como se mostrará adiante, o intervencionismo nem sempre foi pró-industrial nem mesmo teve como objetivo central o crescimento (ou o desenvolvimento) da economia. 

Para se falar em desenvolvimentismo, então, um primeiro pré-re quisito se impõe: a associação dos três elementos do “núcleo duro” em um conjunto comum de idéias concatenado e estruturado. Mas não ape nas isto. O desenvolvimentismo, tal como tomou vulto no Brasil e na maior parte dos países latino-americanos, ia além de um simples ideário, mas emergiu como um guia de ação voltado a sugerir ou justificar ações governamentais conscientes. Estabelece-se, portanto, a hipótese de que sem uma política consciente e deliberada não se pode falar em desenvolvimentismo. Este não pode ser reduzido, como fenômeno histó rico, a simples medidas de expansão da demanda agregada a manifes tações nacionalistas ou a reivindicações corporativistas em defesa da indústria. Além da união dos três elementos, o salto maior ocorre quan do o conjunto de idéias, como toda boa ideologia, passa a justificar a si mesmo, ou seja, quando há a defesa explícita de que a principal tarefa do governo consiste na busca do desenvolvimento econômico, que esta é seu principal dever, seu objetivo central, no limite, sua razão de ser. 

Formula-se, portanto, de forma mais precisa, a primeira hipótese a ser trabalhada: quatro são as correntes de idéias que antecedem o desenvolvimentismo, as quais se associam para sua constituição. Além das três antes mencionadas – a dos nacionalistas, a dos defensores da industrialização e a dos intervencionistas pró-crescimento -, o positivismo é a quarta corrente de idéias que veio contribuir para sua formação e, associado às três anteriores, permitiu a construção de um fenômeno his toricamente novo: o desenvolvimentismo. Neste ideário, o desenvolvi mento não é apenas uma palavra de ordem a mais, mas o elo que unifica e dá sentido a toda a ação do governo, ao legitimar a ampliação de sua esfera nos mais diferentes campos, além da economia propriamente dita: educação, saúde, legislação social, cultura, políticas públi cas, etc. Torna-se um fim em si mesmo, porquanto advoga para si a prerrogativa de ser condição para desideratos maiores, como bem-estar social, ou valores simbólicos de vulto, como soberania nacional. As sim, o desenvolvimento assume a configuração de uma utopia, um estágio superior a ser conquistado, com patamar mais elevado de feli cidade. Sem ele a nação permanecerá no atraso, com péssima distri buição de renda, periférica ou subordinada no contexto internacional, com indicadores sociais degradantes. Mas a reversão deste quadro não vem espontaneamente, deve ser construída, exige ação, determi nação, vontade e – em suas versões mais maduras – planejamento. Só através do Estado, como instituição que materializa por excelência a racionalidade burocrática e política, isto pode ser conseguido. Como toda boa ideologia, constrói-se um projeto de sonho que se propõe factível e realizável – e que, portanto, incita a um programa de ação. 

Reconstituir-se-á adiante, em largos traços, a trajetória dessas idéias, bem como se ensaia uma segunda hipótese, a qual diz respeito a quando se pode detectar o ponto de inflexão antes mencionado. Este teria ocorrido ainda na Primeira República, com a ascensão de Vargas ao governo do Rio Grande do Sul, em 1928. 

Isto posto, para fins de exposição, podem-se arrolar como precurso res do desenvolvimentismo: a) os nacionalistas; b) os defensores da in dústria; c) os papelistas; e d) os positivistas. Embora um mesmo perso nagem possa perfilhar-se a mais de uma dessas correntes, a delimitação é um instrumento metodológico útil justamente por permitir demons trar que a relação entre elas não é necessária, e levou um longo tempo para que confluíssem, em meados do século XX, num mesmo corpo de idéias, permitindo a formação mais nítida do que ficou consagrado como desenvolvimentismo. Após abordar cada uma das correntes separada mente, a quinta seção as retoma associando-as à segunda hipótese e, à guisa de conclusão, enfoca a experiência desenvolvimentista do governo gaúcho de Vargas ao final da Primeira República. 

1.Os nacionalistas 

A mais antiga das quatro correntes é, sem dúvida, o nacionalismo, pois remonta ao período colonial. As primeiras manifestações nacionalistas tiveram lugar geralmente como crítica ao exclusivismo metropo litano ou a aspectos pontuais da condição colonial, sem todavia encamparem um projeto de separação. Ficaram consagradas na lite ratura tradicional da história política como “revoltas nativistas”, enaltecidas como os primeiros atos de rebeldia contra Portugal. Ocor reram desde o final do século XVII, como a aclamação de Amador Bueno (São Paulo) e a revolta de Beckman (Maranhão), até as primeiras déca das do século XVIII, como os movimentos dos Emboabas (Minas Ge rais), dos Mascates (Pernambuco) e o Motim do Maneta (Bahia). Embo ra sem encampar uma proposta clara de independência do país, estes movimentos, ao expressarem descontentamento com aspectos parci ais da situação colonial, como o monopólio comercial ou a centraliza ção político-administrativa na metrópole, podem ser considerados como a forma mais embrionária do nacionalismo, ao apontar para a não coincidência de interesses entre brasileiros e portugueses, seja por parte de lideranças mais bem situadas socialmente ou por parte da população livre de estratos intermediários, o “povo”. 

Já a partir do século XVIII, e principalmente da revolta liderada por Felipe dos Santos, em 1720, em Vila Rica, gradualmente o naci onalismo apareceu de forma mais nítida e se associou à defesa da independência. Destacam-se, neste sentido, as conjurações Mineira (1789), Baiana (1798) e Pernambucana (1817). Como participante destas últimas destaca-se, nas primeiras décadas do século XIX, Cipriano Barata, “o homem de todas as revoluções”, nacionalista mais radical e que associava este sentimento ao liberalismo, ao criticar o absolutismo e a centralização monárquica no Rio de Janeiro, mesmo após a Independência. A década de 1820 provavelmente seja o perí odo do século XIX em que o nacionalismo foi mais marcante e exacer bado, polarizando a política entre os partidos “português” e “brasilei ro”, e com a divisão entre os nacionalistas “moderados” e “exaltados”. Caio Prado Jr. (1969:50) chamou a atenção para o “xenofobismo ex tremado dos constituintes” nesse momento em que nacionalismo sig nificava dar os primeiros passos para a construção de uma nova na ção e havia guerra interna em diversas províncias fiéis a Lisboa, como Bahia, Cisplatina e Grão-Pará. 

Importa assinalar que, nesse momento, nacionalismo e liberalismo não se opõem, como ocorrerá mais tarde; antes andam juntos. Afora a questão da escravidão, que dividiu as elites, mas encontrava adeptos até entre os revolucionários mais radicais, o nacionalismo significava não só romper os laços com Portugal, mas expressar o repúdio às leis, regulamentações, concessões monopolistas e outras instituições mercantilistas, do ponto de vista econômico, e a afirmação da sobera nia nacional, no campo político. E esta dependia do estabelecimento da supremacia do parlamento (“representante” dos brasileiros) sobre o imperador, absolutista e herdeiro do trono português, movimento que culminou com a abdicação de d. Pedro I e com a ascensão ao poder, pela primeira vez, de brasileiros, com as regências. 

Esta associação entre nacionalismo e liberalismo aparece de for ma mais nítida quando se traz à baila o desfecho do cenário político, embora, como se mostrou, também abarque matérias de natureza econômica. Tradicionalmente a literatura de história econômica assi nala a tarifa Alves Branco, de 1844, como uma das primeiras mani festações de nacionalismo. Embora seja duvidoso que a mesma te nha resultado em efeito protecionista, pois a alíquota da maior parte dos produtos, 30%, era considerada baixa pelo próprio ministro, não resta dúvida de que a discussão que envolveu a política tarifária permeou-se por forte nacionalismo, tendo Alves Branco assinalado que a Assembléia visava “não só preencher o déficit do Estado, como também proteger os capitais nacionais já empregados dentro do país em alguma indústria fabril, e animar outros a procurarem igual des tino” (Luz, 1975:24). 

Independentemente dos efeitos da tarifa, os pronunciamentos de Alves Branco e do deputado e ministro da Fazenda Joaquim José Rodrigues Torres permitem destacá-los nesse período do início do 2º Império como os representantes de certo nacionalismo não radical, mas já associado à defesa da indústria. A seguinte afirmação de Alves Branco deixar claro seu ponto de vista: a indústria deve ser defendi da, mas ela não se opõe, antes se complementa, com as atividades primárias. Uma alavanca a outra e, como resultante, diminui a vulnerabilidade de depender de mercados externos: 

A indústria fabril interna de qualquer povo é o primeiro, mais seguro e abundante mercado de sua lavoura; a lavoura in terna de qualquer povo é o primeiro, mais seguro e abundante mercado de sua indústria. Os mercados estrangeiros só devem ser considerados auxiliares para uma e outra, e jamais, como principais (Luz, 1975:50). 

Surpreende nesta declaração de Alves Branco o fato de antecipar em quase um século uma das marcas do desenvolvimentismo brasi leiro do século XX: o entendimento de que não há oposição frontal entre os interesses “nacionais” e da indústria, de um lado, e do capi tal estrangeiro, de outro. O centro da economia deve repousar no mercado interno, o “principal”, mas sem rompimento com outros países, considerados mercados “auxiliares” tanto para a indústria como para a agricultura nacional. Ficava estabelecido, também, que 

embora nem todo nacionalismo fosse industrializante, a defesa da indústria tinha no nacionalismo um de seus melhores argumentos, com apelo emocional e ideológico inquestionável. Dos mais moderados aos mais radicais, os defensores da indústria recorreriam, de aí em dian te, ao nacionalismo como ponto importante de seu discurso. 

A próxima seção abordará os mais destacados defensores da in dústria em sua origem, que formam inquestionavelmente uma das vertentes precursoras mais importantes do desenvolvimentismo. Mas antes disso é preciso mencionar, mesmo brevemente, a existência de outra corrente que ajuda a evidenciar como a relação entre naciona lismo e indústria não foi coincidente nem linear em sua história: os nacionalistas agrários. Dentre estes, destacam-se, principalmente no período que vai do final do século XIX às primeiras décadas do século XIX: Américo Werneck, Eduardo Frieiro e Alberto Torres. 

A marca do nacionalismo agrário consistia em enaltecer o setor primário como a vocação da economia brasileira, em associação a certo ufanismo que glorificava a natureza privilegiada do país. Assim, com base na idéia de vantagens comparativas, aconselhava-se a es pecialização primária devido ao fato de os recursos naturais serem fator abundante, enquanto mão-de-obra e capital eram escassos. Américo Werneck, mineiro, autor de diversas obras sobre temas eco nômicos publicadas principalmente na última década do século XIX, na mesma linha de Alves Branco, não via oposição entre agricultura e indústria, mas entendia que o governo deveria concentrar mais atenção na primeira, condenando o crescimento da época do Encilhamento como artificial e responsabilizando o protecionismo como causa da inflação. Werneck não era propriamente liberal: de fendia a intervenção governamental em prol da produção primária e preconizava diminuir a taxação sobre os produtos agrícolas e, em alguns trabalhos, estendia esta defesa à agroindústria. 

Já Eduardo Frieiro e Alberto Torres eram mais radicais. Frieiro possuía um pensamento bastante original, o qual assumia uma exó tica coloração do que se poderia denominar, com certa licenciosida de, de “nacionalismo fisiocrático”. Condenava a vida urbana e a in dústria, ressaltando idilicamente as qualidades da vida rural, criticando a agitação social, o protecionismo e a inflação, os quais associava à sociedade industrial – tida, por sua vez, como um fenô meno europeu que não deveria ser copiado. Nícia Vilela Luz denomi nou sertanismo esta “exaltação e idealização do sertão”, a qual repu diava o capital estrangeiro, em um tom de volta ao passado e mostrando inconformidade com o crescimento industrial em curso (Luz, 1975:92). 

Já Alberto Torres possui obra bastante extensa e foi o autor de mais impacto, não apenas por ser escritor prolífico e articulista, mas por seu espírito militante, sempre voltado a apresentar projetos e novas propostas para o país. É o caso de . O problema nacional brasi leiro, introdução a um programa de organização nacional, de 1914, obra marcada por forte nacionalismo, que acusava o capital estran geiro de dilapidar o país e drenar suas riquezas. Influenciado pelas teses sociobiológicas e evolucionistas da época, recorreu à argumen tação de ordem racial para enaltecer o autóctone e as etnias locais, chegando ao ponto de condenar a imigração. Alberto Torres foi um dos ideólogos mais importantes a influenciar a geração nacionalista das décadas de 1920 e 1930, inclusive do Estado Novo, apesar de seu antiindustrialismo. No momento em que os nacionalistas dividi am-se entre esquerda e direita em consonância à polaridade interna cional entre comunismo e fascismo, ao mesmo tempo em que vários movimentos artísticos eclodiam, todos marcados por nacionalismos de diversos matizes – o modernismo, a antropofagia, o pau-brasil, o anta -, Torres sempre se perfilhou ao lado mais conservador, embora repudiasse também o fascismo: qualquer receita para o Brasil não poderia vir de fora. Ufanista, enaltecia as matas virgens, as riquezas naturais e a superioridade da vida do campo, sugerindo que deveria “regressar o homem ao trabalho da produção – as indústrias da ter ra”, pois o “Brasil tem por destino evidente ser um país agrícola: toda a ação que tenta desviá-lo desse destino é um crime contra sua natu reza e contra os interesses humanos” (Torres, 1938:214). 

Contra este nacionalismo agrário opunha-se outra corrente: a dos defensores da industrialização, menos ufanista e xenófoba e mais pragmática. 

2.Os defensores da indústria 

Além dos precursores já mencionados, pode-se assinalar o perío do entre a última década do Império e as primeiras da República como bastante rico no que tange à profusão das idéias em defesa da indústria. Muitas vezes estas reivindicavam para si a inserção ao “espírito republicano” e à modernização, em um contexto ideológico que associava o Império ao marasmo, à vida rural, ao atraso e à es cravidão. Contribuiu ainda para acirrar o debate o expressivo cresci mento do setor secundário dos primeiros anos da República e a crise do Encilhamento, que dividiram opiniões sobre o futuro do país e criaram ambiente propício para a crítica das políticas expansionistas, tidas como responsáveis pela inflação e pelo descalabro das contas públicas. 

Nessa época, firmam-se os conceitos de indústria natural e artifi cial, entendendo-se pela primeira as atividades que beneficiavam as matérias-primas locais, vistas como uma “extensão” do setor primá rio, que não precisavam de protecionismo, pois eram intensivas nos fatores abundantes domesticamente: terra e mão-de-obra. Já entre as indústrias artificiais arrolavam-se quase todos os ramos, com ex ceção da agroindústria: química, metalurgia e bens de capital, por exemplo, tidas como viáveis só através de forte protecionismo. De nunciava-se o artificialismo destas indústrias alegando-se, dentre outros motivos: o alto volume de capital exigido, incompatível com a realidade do país; a estreiteza do mercado interno para fazer face à escala de produção mínima, o que resultava produção com alto custo médio, bastante superior ao dos produtos similares importados; a escassez de mão-de-obra qualificada para operar tecnologias sofisticadas; e, finalmente, o prejuízo que trazia ao consumidor nacional, forçado a pagar mais caro por bens de qualidade inferior. Daí a res ponsabilizar as indústrias artificiais – ou o setor secundário, como um todo – pela inflação não restava grande distância, e esta foi a tônica desde o Encilhamento até meados do século XX, inclusive se constituindo em um dos argumentos mais utilizados por segmentos da União Democrática Nacional (UDN) para criticar a política econô mica dos governos de Vargas. 

Um dos pioneiros da defesa da indústria é Antônio Felício dos Santos, descendente de família de empresários mineiros e responsá vel pela redação do manifesto lançado pela Associação Industrial no Rio de Janeiro em 11 de maio de 1882. O manifesto atacava o libera lismo como doutrina, responsabilizando-o por condenar o Brasil à produção primária e à estagnação econômica; somente através da indústria conseguir-se-ia a independência do país. A partir do final do Império até as primeiras décadas da República, vários outros de fensores da indústria apareceram, como Amaro Cavalcante, Aristides de Queirós, Alcindo Guanabara, Serzedelo Correa e Felisbelo Freire, para mencionar alguns dos mais destacados. Não sendo propósito deste trabalho analisar detidamente o pensamento de cada um de les, assinalar-se-ão alguns traços que possuem em comum, embora se reconheçam as peculiaridades e a riqueza das idéias próprias, bem como as ênfases e o peso de diferentes argumentos no conjunto de seus discursos, os quais se alteram de um para outro autor e até no mesmo, ao longo do tempo. 

Isso posto, pode assinalar-se como traço comum do discurso em prol da indústria em todos eles a associação desta à independência do país, o que lhes confere um tom nacionalista. Alguns, como Serzedelo Correa, general paraense e ministro da Fazenda de Floriano Peixoto, mencionavam que o Brasil precisava romper sua situação colonial, própria dos países exclusivamente agrários. Como a maioria dos ou tros defensores da indústria, Correa não chegava a criticar a agricultu ra: defendia a complementaridade entre esta e as atividades industri ais; não propunha a substituição de uma por outra, mas tampouco aceitava a distinção entre indústrias naturais e artificiais, pois enten dia que todas seriam necessárias e complementares entre si. O grande vilão, objeto de críticas mais ásperas, era o comércio. Antônio Felício dos Santos considerava-o parasita, bem como Amaro Cavalcante, o mais prolífico autor dentre os mencionados, tendo publicado inúme ros trabalhos sobre economia, boa parte deles em defesa da indústria. Antecipando-se à futura tese cepalina da deterioração dos termos de intercâmbio, percebia uma relação entre especialização primária e cri se do balanço de pagamentos. Como não excluir (…) é pequena a força aquisitiva da riqueza, sendo necessário despender uma grande quantidade de produto para obter os objetos necessários a seu consumo. Neles se produz o fenômeno curiosíssimo do poder aquisitivo da riqueza diminuir com o aumento do movimento econômico, porque as coisas indispensáveis ao seu bem-estar – produtos manufaturados vindos de outras regiões industrializadas – em vez de baratearem, tornam-se cada vez mais caras e mais custosas e o seu engrandecimento torna-se assim mais aparente que real (Vieira, 1948: 67-8). 

Fica claro que todos esses autores ou políticos defensores da in dústria recorriam a certo nacionalismo, embora este não seja exclu sivamente industrial (como se assinalou, há o nacionalismo agrário). Todavia, o caráter inflamado da retórica na maioria das vezes não correspondeu a ações concretas. A crítica à situação “colonial” do país não significava necessariamente desprezar o capital estrangeiro nem deixava de reconhecer sua importância para a própria industri alização. A maior parte dos defensores da indústria lamentava a omis são dos governos e propugnava maior intervencionismo, inclusive tarifas, mas julgava desaconselhável medidas radicais que pudes sem prejudicar as relações com os grandes centros que, além de mercados consumidores, eram supridores tanto de bens de capital como de financiamento, todos realisticamente lembrados como in dispensáveis à industrialização. O próprio manifesto da Associação Industrial do Rio de Janeiro, a despeito de claramente denunciar a “beatitude fisiocrática” dos governantes, menciona os Estados Uni dos como paradigma, onde convivem o “sistema protetor ao qual, mais ainda do que as suas libérrimas instituições, devem o progresso material da nação”. Mais que rompimento, dever-se-ia buscar uma convivência: “O equilíbrio entre a produção nacional e a importação estrangeira está, porém, principalmente no regime aduaneiro. Não é um protecionismo a todo transe o que nos convém: toda a prática baseada em regras invariáveis e absolutas é absurda” (Carone, 1977:22-3). 

Este pragmatismo pode ser facilmente detectado por quem ana lisa o discurso dos defensores da industrialização, pois explicitado, já que integrante do próprio imaginário que eles possuíam de si mes mos. Isto se evidencia quando eles reivindicam a si mesmos coerên cia com a prática, com a “vida real”, denunciando os partidários do livre comércio e da lei das vantagens comparativas como “teóricos”, voltados a teses desvinculadas da experiência. Ao tratarem os contendores como um grupo exótico e radical, ajudavam a construir uma imagem moderada de si mesmos, procurando ganhar adeptos entre aqueles que defendiam a vocação agrícola do Brasil e ao mesmo tempo não se mostravam contra a indústria: radicais e sectários eram os adversários, velho artifício do modus faciendi da política. Citando mais uma vez o manifesto da Associação Industrial do Rio de Janeiro – importante por seu pioneirismo e por firmar o nascedouro de uma linha de pensamento que se manterá ao longo do tempo -, o intervencionismo pró-indústria justificava-se não por uma dedução abstrata, mas pela experiência histórica: “Todos os governos civiliza dos começaram, assim, favorecendo o desenvolvimento do órgão in dustrial” (Carone, 1977:23). A opinião livre cambista é associada à “miragem sedutora da teoria”; recorrendo-se à ironia: 

É muito mais simples adotar a política da indiferença para não perturbar o livre exercício das forças naturais, estatuir a priori leis gerais absolutas com a ingênua pretensão de reger os fatos, sem curar de sua relatividade, firmar enfim em bases imutáveis uma ciência do futuro, wagneriana, sobre a hipótese da igualdade de todos os homens, de todas as aptidões. Essa economia política absoluta tem ainda a vantagem de vigorar tanto na Inglaterra como no Brasil, na França e na China! 

Tamanho erro provém em linha reta da educação viciosa bebida nas academias pelos diretores do país, teóricos puros, sem conhecimentos positivos, mais literatos que homens de ciência (Carone, 1977:21). 

Esta mesma linha está expressa em discurso de Amaro Caval cante no Senado em 23 de julho de 1892. Desde o início tenta mostrar o grupo opositor como radical: “por mais que digam ou se preten dam em contrário, os economistas ortodoxos, os quais, nesse particu lar, se identificam com os individualistas mais exagerados (…)”. Refor çava-se este argumento ao recorrer a autores clássicos, como A. Smith e S. Mill, mostrando-se que estes não eram sectários, mas aceitavam a intervenção governamental: “Por isso os economistas não se ocu pam de pretensas leis naturais e necessárias, as quais deixam nos livros, mas de leis do Estado ou de medidas ocasionais dos gover nos”. Ou ainda: “Economistas ortodoxos, dos mais insígnes, como A. Smith e Stuart Mill, são os primeiros a confessar que a ação auxiliar ou supletiva do Estado é certamente justificada”. A intervenção esta tal estaria na própria natureza da economia: “E, com efeito, quem diz economia política diz, nos próprios termos, coisa que intervém o Es tado, isto é, economia do Estado, lato sensu” (Carone, 1977:35; grifos no original). 

Para rejeitar as teses ortodoxas, mais que recorrer a outras teori as, dever-se-ia recorrer à experiência e aos fatos: “seria mister rever a história dos povos mais adiantados”. Com isto, evitar-se-iam “firmar conclusões (…), antes em fatos reais, positivos, do que em meras abstrações teóricas”, pois “podemos apreender com a experiência alheia”. Nota-se que não há nenhum tom xenófobo, ao contrário: deve se aproveitar a experiência histórica de industrialização de outros países como ensinamento, discurso diverso de outro, mais radical, que advoga que cada nação deve buscar seu próprio caminho, mais comum a autores marxistas do século XX. 

  1. Os papelistas 

Outra vertente que está na gênese do pensamento desenvolvimentista é a dos papelistas. Sua importância muitas vezes é negligenciada, pois os nacionalistas e defensores da indústria são muito mais citados. Todavia não se deve subestimar sua importância, pois os papelistas afrontavam um princípio basilar da política econômica clássica: o das finanças sadias, materializado pelo equilíbrio orçamentário. Enquanto os intervencionistas discutiam quando e em que condições poderia ou não o Estado intervir na economia, recorrendo a argumentos doutrinários ou axiológicos, coerentes com a formação jurídica dos bacharéis e homens cultos da época, os papelistas rompiam em algo mais simples: na operacionalização da política econômica, trazendo à baila menos os fins últimos da ação estatal e mais a forma com que esta é executada. Para se ter idéia do caráter inovador do grupo papelista em seu contexto histórico, basta lembrar que a polarização do debate à época nas faculdades de direito dava-se entre os jus-naturalistas, de fensores do direito natural e de matriz liberal-iluminista, e os positivistas. A defesa do orçamento equilibrado era um dos poucos aspectos em que havia concordância entre as duas correntes, o que a tirava do foco do debate, pois não consistia objeto de polêmica entre elas. Os papelistas cumprem o importante papel histórico de trazer à ordem do dia um ponto que no século XX seria marcante no desenvolvimentismo: admi tir o crédito, o déficit público e os empréstimos como indispensáveis para alavancar a economia. Conquanto estes são muitas vezes de fendidos como política anticíclica, à la Keynes, gradualmente a defesa foi ganhando maior envergadura, argumentando-se como necessários simplesmente para fazer a economia crescer, propósito que, no desen volvimentismo, tornar-se-ia quase um fim em si mesmo ou, pelo menos, a premissa maior para o desenvolvimento. 

A discussão entre papelistas e metalistas remonta ao Império e dizia respeito à questão central da conversibilidade da moeda, por tanto remetendo às políticas monetária e cambial, bem como à rela ção entre ambas. Enquanto os metalistas tinham como pontos fortes para sua defesa do padrão-ouro e da conversibilidade a teoria econô mica convencional e a política do país hegemônico, a Grã-Bretanha, os papelistas, a exemplo dos defensores da indústria, na ausência de um corpo teórico de mesma envergadura, recorriam à razão prática. Devia-se isso em parte às dificuldades de manter o padrão-ouro e a plena conversibilidade no país. Como afirma Prado (2003:97): “A ten tativa contínua de estabelecer uma moeda conversível, sustentada em uma firme reserva de ouro, em uma sociedade periférica e pouco monetizada não era apenas impossível de ser obtida, mas reduzia enormemente as oportunidades de investimento produtivo”. As críti cas à conversibilidade eram comuns entre os círculos produtores, seja da lavoura, inclusive escravista, seja no setor urbano, como do comércio e da indústria, enquanto, na ausência de estudos empíricos mais conclusivos para delinear que segmentos sociais defendiam umae outra corrente, é de se supor que os rentistas, sempre temerosos com a inflação, deveriam alinhar-se aos metalistas. 

Dentre esses últimos devem-se citar Francisco Belizário, Torres Homem e Joaquim Murtinho, ministro da Fazenda de Campos Sales. Já dentre os papelistas destacam-se Sousa Franco (ministro na déca da de 1850), o barão de Mauá, os viscondes de Cruzeiro e de Ouro Preto, João Alfredo e o Conselheiro Lafaiete. Todos estes, entretanto, não chegam a negar a conversibilidade, embora advoguem seja afrou xamento temporário da regra (como nas crises ou nas safras, para possibilitar aumento do meio circulante e “estímulo aos negócios”) seja uma ancoragem ao ouro mais flexível, como uma porcentagem de las tro que poderia ser alterada dentro de certos limites. Constituem um grupo mais moderado de papelistas, diferente de outro, do qual faz parte Rui Barbosa, o qual se poderia considerar mais radical, ao negar e entender como perniciosa qualquer regra de conversibilidade. 

Sumarizando o debate: para os metalistas, a prioridade da políti ca econômica era a estabilização e a política cambial – e, portanto, a definição da taxa de câmbio -, seu epicentro. Defensores do padrão ouro estabeleciam a relação entre política monetária e balanço de pagamentos: metais preciosos ingressariam naturalmente no país se a economia fosse saudável e qualquer oferta de moeda sem lastro causaria inflação. A política monetária deveria ser subordinada à política cambial. Geralmente os metalistas apoiavam-se nos grandes mestres da economia clássica, como Smith, Ricardo e Say. A taxa de juros era entendida como fenômeno real, à la Ricardo, dependente da taxa de lucro. Maior oferta de moeda não alterava o nível de ativida de, como afirmava Francisco Belizário (Franco, 1983:104), querer “prevenir as crises” através da queda da taxa de juros resultante de maior oferta de moeda era um equívoco, pois consistia em “confundir moeda com capital” ao esperar-se que o aumento do estoque da pri meira iria tornar o capital “mais barato, abundante e ao alcance de todos”. Sendo a política monetária ineficaz, restava aumentar as con dições de competitividade real do setor exportador, garantir as regras de finanças sadias e manter uma taxa de câmbio realista para que a economia prosperasse. 

Já a preocupação maior dos papelistas, dos mais moderados aos mais radicais, era com o nível de atividade econômica. Sua pergunta mais freqüente, qual o nível de oferta monetária mais condizente com o ânimo dos negócios, consistia verdadeira heresia para os metalistas. Mauá, um de seus primeiros defensores, defendia o que se convencionou denominar “requisito da elasticidade”: a oferta de moeda deveria ser flexível ou elástica a ponto de não interferir negativamente nas ativida des produtivas. Menos teóricos e mais pragmáticos, apresentavam-se como coerentes com o bom senso: simplesmente o governo deveria ajudar, e não prejudicar a economia. Segundo Franco (1983:56), estas idéias, principalmente a partir da década de 1880, eram “antes considerada(s) uma expressão dos ‘interesses do comércio’, do que uma posição legitimada pela autoridade de uma doutrina”. 

Para os papelistas, a atenção maior da política econômica deveria estar na taxa de juros e não na taxa de câmbio. Embora ainda não houvesse um corpo teórico sólido que embasasse suas teses, não há dúvida de que as mesmas eram instigantes e aproximam-se, em al guns aspectos, ao futuro keynesianismo, além de não possuírem um grau de sofisticação menor que as dos metalistas. A taxa de juros refletia o estado de ânimo da economia e era um fenômeno monetá rio, determinada por oferta e demanda de moeda. Não havia relação entre variações do estoque de ouro e política monetária (antibulio nismo), e argumentava-se que a velocidade de circulação da moeda em um país como o Brasil era baixa, por ser um país agrícola, de significativa extensão territorial e alta propensão a entesourar. O cres cimento tornava-se a variável central da economia, uma vez que a po lítica cambial deveria subordinar-se à política monetária, e esta às necessidades impostas pela produção. Assim, a conversibilidade era vista como uma medida artificial, prejudicial ao ânimo dos negócios; o câmbio alto não deveria ser buscado por uma conversibilidade arti ficial, mas pela prosperidade da nação. Daí decorria que as dificulda des do balanço de pagamentos não deveriam ser enfrentadas com medidas restritivas, mas com mais crescimento. Este argumento tor nar-se-á mais tarde uma das teses centrais do desenvolvimentismo e da heterodoxia teórica. 

Essa posição flexível dos papelistas foi praticada por Rui Barbosa nos primeiros anos da República. A tentativa de resolver as crises via emissão monetária fora implementada em outras conjunturas do Império, como em seu final, na reforma monetária de 1888. Mas com Rui a medida foi levada às últimas conseqüências ao permitir o direi to de emissão aos bancos privados, claramente entendendo-se que o estoque monetário é que deveria se adequar às necessidades da pro dução, ou seja, às necessidades domésticas da demanda por transa ções. Desta concepção decorria a questão já mencionada: como sa ber qual o nível de estoque monetário desejável para manter o crescimento da economia? Dado que a inflação era problema secun dário, a resposta era: acompanhando-se o nível de investimento, pois este dependia da taxa de juros e era o melhor sintoma do ânimo da economia (Franco, 1983:56). 

O papelismo foi importantíssimo nas origens do desenvolvimen tismo. Em primeiro lugar, por romper com princípios básicos da teoria econômica convencional, afrontando dogmas quase consensuais, como a conversibilidade e o papel passivo da política monetária. Em segun do, e talvez o mais importante, era inaugurar uma concepção de polí tica econômica que a tornava responsável pelo crescimento: o Estado poderia e deveria atuar como agente anticíclico. Quebrada esta primei ra barreira, no desenvolvimentismo ia-se além: a tarefa era o crescimento de longo prazo, capaz de gerar mudanças estruturais de maior vulto e reverter os péssimos indicadores sociais: o desenvolvimento. Embora não propusesse ainda medidas de envergadura próprias ao desen volvimentismo do século XX, como empresas estatais e bancos de de senvolvimento, enfocava-se pela primeira vez a produção como a variável essencial da economia, a razão de ser da política econômica, subordi nando a ela as políticas monetária, cambial e creditícia. Redefinir este papel do Estado, ampliando-o, era imprescindível para a emergência do desenvolvimentismo. 

Entretanto, deve-se lembrar que apesar da relevância desta con tribuição, os papelistas não se confundiam nem com os nacionalistas nem com os defensores da indústria. No contexto em que as idéias surgiram e foram implementadas, na maioria das vezes “produção” significava produção agrícola e os ciclos de contração e expansão monetária coincidiam com a necessidade de meio circulante que se adaptasse aos períodos de safra e entressafra. É verdade que Rui Barbosa reconhecia a importância da indústria, embora não recor resse a uma retórica nacionalista ou xenófoba. Mas a maior parte dos papelistas associava suas idéias à defesa de uma nação com vocação agrícola, exportadora de produtos primários, nada tendo a ver seja com o nacionalismo seja com a industrialização – ao contrário, apro ximando-se, muitas vezes, mais de uma visão agrarista, cuja política econômica deveria reconhecer esta hegemonia e a ela se subordinar. Entendia-se que o padrão-ouro e a conversibilidade prejudicavam a lavoura, e a elasticidade da política monetária deveria variar confor me o ânimo de seus negócios e a sazonalidade inerente às atividades primárias, por isso sempre em função da produção. 

Desta forma, parece haver um equívoco em boa parte da literatu ra, como em Cardoso (1975:35), ao associar o papelismo à indústria e o metalismo à defesa dos interesses primários, como se todos os papelistas fossem simpáticos à indústria, a exemplo de Rui Barbosa, ou que todos os nacionalistas e pró-industrialização fossem contrários à ortodoxia econômica. Para se ter claro que não se pode simplificar a formação destas vertentes que confluíram na formação do desenvolvimentismo, e não se pode fazer uma associação a priori entre nacionalismo/papelismo/indústria versus liberalismo/metalismo/agri cultura, basta citar homens como Serzedelo Correa, nacionalista e defensor da industrialização, mas também adepto da austeridade em matéria de política econômica: 

Sim, temos a balança econômica desfavorável porque não temos equilíbrio orçamentário, porque temos vivido o regime difícil de papel-moeda, depreciado, porque não temos comércio nacional, porque não temos indústria nacional, porque o próprio salário imigra para o estrangeiro, porque não temos navegação marítima mercante nacional, de modo que não temos economias e nada, lucro algum fica no país, mas tudo emigra para fora. 

Eis por que não me canso de dizer que a nossa situação é de colônia (Anais da Câmara Federal, 4-10-1985:131). 

Na visão de Serzedelo, assim como na de muitos líderes industri ais, a ortodoxia em matéria de política econômica contribuía para o fortalecimento do país, emprestava-lhe respeitabilidade internacional, servia para dar-lhe credibilidade. Em um quadro de instabilidade e déficits sucessivos, como se poderia esperar o florescimento das ativi dades produtivas? Backes (2004:185) assinala, com precisão, o “conteúdo modernizante da proposta ortodoxa” no contexto, a qual enten dia que o saneamento financeiro poderia contribuir para fortalecer um quadro favorável ao crescimento do país, em especial sua indústria: 

Nem a austeridade financeira dos republicanos equivale ao agrarismo nem muito menos existe um elo necessário entre industrialismo e papelismo: os dois conhecidos líderes dos industrialistas, Alcindo Guanabara e Serzedelo Correa, são defensores apaixonados do equilíbrio orçamentário e do saneamento e da valorização da moeda. Existe no início da República uma corrente industrializante que não é emissionista, mas que, ao contrário, irá prestar apoio decidido à política ortodoxa de Campos Sales (grifos da autora). 

Fica claro, na análise desse período histórico, que a defesa da regra das finanças sadias não é exclusiva dos liberais nem se associa exclusivamente aos interesses cafeeiros ou dos representantes do setor primário. Os papelistas inovam ao propor, mesmo que remando contra a maré, certa presença maior do Estado na defesa da produ ção, argumentando em prol de uma política econômica mais flexível, respondendo às flutuações da conjuntura. Se esta é importante geneticamente para o desenvolvimentismo, faltava-lhe, todavia, outro elemento fundante para sua configuração histórica: uma intervenção com propósito de construir um futuro desejável. 

O positivismo viria preencher esta lacuna. 

  1. Os positivistas 

A principal doutrina opositora ao liberalismo no período entre as duas últimas décadas do Império até as quatro primeiras décadas da República foi o positivismo. Inspirado diretamente em Comte ou re correndo a outros autores como St. Simon, Stuart Mill e Spencer, os grupos positivistas articulavam-se tanto nas faculdades de direito como nas Forças Armadas, formando muitas vezes nos parlamentos federal e estaduais blocos com relativa coesão e identidade ideológi cas, o que lhes emprestava força no debate com os liberais. Inicial mente seu nome mais forte foi Benjamin Constant, responsável pela difusão das idéias positivistas no Exército, e posteriormente ministro da Guerra de Deodoro da Fonseca. 

Um aspecto a ser ressaltado é que, mesmo em um contexto como o da Primeira República, no qual predominavam partidos estaduais, os positivitas, espalhados pelo território nacional, conseguiam manter cer ta identidade ideológica, muitas vezes votando de forma semelhante e constituindo, na prática, um grupo político (Backes, 2004: 213). Em estados como Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro, os positivistas eram bastante numerosos, sendo que no primeiro, através da liderança de Júlio de Castilhos, tornou-se ideologia oficial ao ser adotado pelo Partido Republicano Rio-grandense (PRR) e pela Constituição Republi cana estadual. Esta estabelecia a “ditadura científica” de Comte, com supremacia do Executivo, ao retirar do Legislativo – a Assembléia dos Representantes – o direito de fazer leis, que caberia ao presidente do Estado. Sua função, ao se reunir apenas dois meses por ano, era fisca lizar as contas públicas e garantir a moralidade da administração, com poderes sobre o orçamento, mas, teoricamente, mais um órgão técnico que político. Destacam-se, ainda, no estado do Pará, Lauro Sodré, go vernador e candidato a presidente contra Campos Sales; no Espírito Santo, estado em que a Constituição também apresentou influência de Comte, o governador Moniz Freire (1892-1896 e 1900-1904); em Minas Gerais, deputados como Antônio Olinto e Rodolfo Paixão, além do gover nador João Pinheiro (1906-1910), um dos precursores da defesa do planejamento econômico; e, em Goiás, Leopoldo Bulhões, ministro da Fazenda de Rodrigues Alves. 

Marcado por divisões e por debates internos, como qualquer dou trina, o positivismo apresenta três vertentes: a religiosa (a “religião da humanidade”, apregoada por Comte ao final da vida, que inspirou a criação de templos positivistas); a científica (apregoando as vanta gens do método indutivo, a crítica à metafísica e a supremacia do saber científico sobre o religioso ou filosófico, com a criação de uma ciência social positiva – a física social); e a política, aconselhando regras para a boa administração das finanças e da política, a de mai or influência no Brasil e na América Latina e, principalmente, na gênese do desenvolvimentismo. Não cabendo reconstituir todo seu ideário, cabe aqui assinalar o que mais contribuiu para a formação do desenvolvimentismo. 

Em primeiro lugar, o positivismo aceitava a intervenção do Estado na economia. Embora a intervenção não se constituísse uma regra, uma virtude em si mesma, poderia ser realizada desde que houvesse um “problema social” cuja relevância exigia a presença do poder públi co. O exemplo mais típico disto foi a estatização das estradas de ferro do Rio Grande do Sul, no governo de Borges de Medeiros, realizada sob o entendimento de que as empresas estrangeiras não faziam os inves timentos necessários de manutenção e ampliação, além de cobrarem preços exorbitantes. Portanto, ao desconhecerem os direitos naturais do liberalismo, tidos como uma metafísica, os positivistas associavam os direitos, como o de propriedade, a determinado grau da evolução social: defendiam-no como superior ao estado primitivo comunista tribal, mas sempre com limitações que a própria sociedade, excepcionalmen te, poderia determinar, em função do bem comum. Neste aspecto, os positivistas lembram outras vertentes precursoras do desenvolvimen tismo, como os nacionalistas e os pró-industrialização: advogam para si as qualidades do pragmatismo, libertos de preconceitos e de verda des apriorísticas, como a de que o livre mercado sempre levaria à me lhor solução. Empiristas no campo da epistemologia, desconfiavam de regras dedutivas universais: cada caso deveria ser analisado em sua particularidade, fugindo propriamente de uma teoria econômica, já que teoria supõe certo grau de generalização. Comte, na verdade, du vidava do caráter científico da economia política, entendia-a como ain da na fase metafísica, apegada a categorias abstratas não empíricas, como valor, preço natural, ordem natural (fisiocrata), sem contar figu ras exóticas, como classes “produtiva” e “estéril”, “preço de equilíbrio” e “mão invisível”. A ânsia precipitada em generalizar e simplificar de nunciava o caráter pré-positivo da economia. 

Em segundo lugar, o positivismo veio dar uma contribuição fun damental ao entender ser dever do Estado ajudar a sociedade a rumar para o progresso. Fruto do iluminismo, o positivismo desapegava-se das concepções teológicas de história, as quais apontavam para um destino pré-traçado, sujeito aos desígnios da vontade divina, ou mes mo à mão invisível do mercado. Caberia ao homem a construção da história, seu papel era ativo, sujeito e não apenas objeto da evolução. Por isso a educação e a evolução moral possuíam papel de destaque, cabendo ao Estado atenção nestas áreas, bem como dar exemplo, abolindo privilégios de nascimento, separando a esfera pública da privada, bem como a religião do Estado, que deveria ser laico. Acreditando que havia uma trajetória a ser percorrida, os positivistas volta vam-se a uma utopia a ser buscada: o progresso científico e moral. Desta forma, é uma das mais marcantes manifestações da modernidade que seguiu à Revolução Francesa, como o socialismo. Não é à toa que St. Simon (o autor predileto de Getúlio Vargas) foi mestre de Comte e ao mesmo tempo considerado por Engels como um dos socialistas “utópicos” precursores do marxismo, ao condenar o liberalismo nascente como responsável pelo aumento da pobreza decorrente da Revolução Industrial e da desestruturação das comu nidades feudais, e ao propor a substituição dos desígnios do mercado por decisões conscientes e planejadas. 

Nada mais distante dessas concepções do que o laissez-faire do liberalismo econômico, pois conclamava seus adeptos para uma práxis, responsabilizando-os pela construção do futuro. Assim, o discurso positivista apresentava a contradição (muito explorada pela religião da humanidade, crítica do positivismo político) de condenar a ideolo gia e a política, as quais deveriam ser substituídas pela ciência e pela administração, quando, na verdade, defendia uma tábua de valores muito mais explícita e apelativa para o espírito militante do que o próprio liberalismo, pois abria uma brecha para substituir a impessoalidade do mercado pela ação consciente do Estado e dos governantes – daí a ditadura “esclarecida” ou “científica”. Não é de ignorar que o desenvolvimentismo, tanto no Brasil como na maior parte dos países latino-americanos, não só conviveu com regimes autoritários e ditatoriais, mas neles encontrou ambiente propício para sua afirmação, como no caso do Estado Novo varguista. 

Os positivistas não podem ser confundidos nem com os naciona listas nem com os defensores da industrialização, embora fossem a favor da diversificação da economia, o que, em si, geralmente os afas tava de uma visão de mundo exclusivamente agrarista e os aproxi mava aos defensores da “indústria natural”. Entretanto, discordavam frontalmente dos papelistas. 

Apesar de defensores do intervencionismo por razões pragmáti cas, este estava limitado, na prática, pelo preceito das “finanças sadi as”. Conquanto se afastasse do laissez-faire, o positivismo freqüente mente recorria a critérios éticos como regras para a “boa administração”. Os governantes não deveriam gastar mais do que arrecadassem, dando exemplo à sociedade. Da mesma forma, não deveriam se compro meter com empréstimos, a não ser em casos excepcionais, bem como deveriam ser extremamente cautelosos na concessão de crédito, pois poderiam privilegiar grupos específicos ou pessoas particulares, que brando a regra da impessoalidade e neutralidade do Estado. Dois tre chos de mensagens de Borges de Medeiros à Assembléia dos Repre sentantes do Rio Grande do Sul exemplificam o apego a estes princípios moralizadores, os quais associavam a uma das maiores conquistas da República. No seu primeiro ano de governo, em 1898, afirmava: 

Mas, a atestação porventura mais frisante da profícua política e administração do Estado republicano é sem dúvida a inabalável prosperidade atual de suas finanças. 

Coincide com a instalação definitiva do regime político vigente a inauguração de uma nova era regeneradora, tendo por base a supressão do funesto sistema orçamentário do Império, que se caracterizava pelo déficit crônico (Mensagem…, 7ª Sessão Ordinária, 1899:15). 

Três décadas depois, na Mensagem de 1927, assim se pronunci ava ao fazer um balanço de suas sucessivas gestões à frente da pre sidência do Estado: 

Ao cabo de uma longa e acidentada experiência, em que não se registrou um só “deficit”, lícito é concluir pela perfeição relativa do orçamento, cujos elementos são susceptíveis de contínuo desenvolvimento. Entretanto, é fora de dúvida que foi e será o espírito parcimonioso e a sistemática economia na aplicação dos dinheiros públicos a melhor garantia do equilíbrio orçamentário e o mais seguro método de administração (Mensa gem…, 36ª Sessão Ordinária, 1928:57; grifos meus). 

A expressão “foi e será” mostra tratar-se de um princípio do qual não se abriria mão, pois a própria marca as sucessivas administra ções republicanas, que tinham o positivismo como doutrina oficial. 

A defesa do equilíbrio orçamentário era o grande ponto comum entre positivistas e liberais, e os unia contra os papelistas em defesa de regras ortodoxas para a política econômica. Na verdade, a vinculação do “espírito” republicano à austeridade, enfatizada no dis curso dos positivistas e dos “republicanos históricos” – os que participaram desde cedo da propaganda do novo regime, ainda no Império -, tornou-se corrente em outros partidos republicanos estaduais, cons truindo-se o imaginário que procurava associar o Império ao ganho fácil, aos privilégios dos “amigos do rei”, à mescla entre os interesses do Estado com a pessoa do monarca e ao uso do dinheiro público para fins privados. A modernidade republicana deveria apregoar a impessoalidade e a austeridade; em matéria de política econômica, as finanças sadias, a conversibilidade e o equilíbrio fiscal e do balan ço de pagamentos eram os princípios básicos a serem respeitados. Ressalta-se que a maioria dos republicanos históricos se opôs à polí tica emissionista de Rui Barbosa, fato constatado ao se acompanhar os debates na Câmara Federal do período, os quais demonstram não se tratar de apenas um episódio isolado, mas de “um compromisso programático a favor da austeridade econômica, que se manifestará em várias oportunidades” (Backes:176 e ss.). 

Assim, a separação entre o público e o privado, conquanto repre sentasse grande inovação, quase uma revolução como norma para o serviço público brasileiro, chegou, ao ser esposada pelos adeptos de Comte, a confundir-se com a própria causa republicana (Targa, 2003). Se isto significava trazer à tona critérios distantes da regra geral do minante no país, como transparência (“viver às claras”, afirmava a máxima positivista – também usada para combater o voto secreto) e moralidade no trato com a coisa pública, em matéria de economia esta austeridade materializou-se na defesa do orçamento equilibra do. Certamente este preceito limitava, na prática, a extensão do intervencionismo, pois forçava os gastos públicos a adequarem-se à capacidade de arrecadação – e daí a importância à época do debate sobre quais impostos deveriam existir e sobre que segmentos deveria recair a maior parte da carga tributária. Em contraste com outras formas de intervencionismo, como o social-democrata, o keynesiano e o desenvolvimentista, este era um intervencionismo conservador, já que circunscrito a limites bem definidos pelo mesmo corpo ideológico que o justificava (Fonseca, 1983:100). 

Na área trabalhista, similar “dupla face” do positivismo deve ser mencionada, que também o diferirá do futuro desenvolvimentismo. A posição defendida pela maior parte de seus adeptos, como a bancada gaúcha do PRR, alinhava-se ao princípio doutrinário maior defendido por Comte de “integração do proletariado à sociedade moderna”. No contexto europeu, esta palavra de ordem significava reconhecer as conseqüências nefastas da Revolução Industrial sobre a classe tra balhadora. Entendia-se que o liberalismo, ao desconhecer a questão social, abria espaço para o crescimento do comunismo. Vários auto res, entre os quais Bodea (s.d.) e Targa (1998:63-85), destacaram a atuação de Borges de Medeiros nas greves de 1917, o primeiro asso ciando-a à origem do trabalhismo gaúcho, quando recebeu os traba lhadores em palácio, considerou justas suas reivindicações por rea juste de salários e aumentou os vencimentos do funcionalismo público para servir de exemplo à iniciativa privada. 

Se o tratamento dispensado aos grevistas contrasta com a repres são violenta verificada em outros pontos do país, isto não significa que este tenha sido o comportamento do governo gaúcho em outras greves nem que houvesse uma predisposição do PRR para legislar sobre direi tos trabalhistas, em busca de sua universalização. O servir de exemplo ao setor privado aponta justamente neste sentido: o Estado não deveria intervir diretamente na questão social, como ocorreu no Brasil a partir de 1930, mas lançar mão de instrumentos indiretos, como a persuasão, para conscientizar e induzir os empresários a uma atuação que, em vez de fomentar os conflitos, procurasse uma harmonia entre capital e traba lho, em consonância às idéias de Comte e de Saint-Simon. Com base em princípios como esse, a bancada do PRR na Câmara Federal, tendo Vargas como um de seus membros ao final da Primeira República, resistiu às medidas de regulamentação do trabalho, sempre defendendo que a pro teção aos trabalhadores deveria resultar da educação e do esclareci mento, caminhos preferíveis à imposição de uma regra estatal. Ângela de Castro Gomes (1979: 77) sintetizou a posição dos parlamentares gaú chos com essas palavras: “eram contrários, por doutrina, à legislação sobre o trabalho, mas concediam, na prática, quando a legislação se referia a acidentes de trabalho e à proteção de mulheres e menores. Não aceitavam, entretanto o estabelecimento de um horário de trabalho de oito horas ou a implantação de férias”. 

Apesar de apegado a princípios ortodoxos de política econômica, o positivismo foi crucial para a formação do desenvolvimentismo, pois prag maticamente ampliava a agenda do Estado, aceitando sua participação quando houvesse “necessidade social” – expressão ampla o suficiente para abranger o próprio desenvolvimento econômico e acolher suas prin cipais propostas. E, como já foi mencionado, por acenar a um futuro a ser buscado, com a história correndo a seu favor – daí progressista-, ao entendê-la como um processo evolutivo e conclamando os governantes para sua construção. Assim, mais que com idéias específicas, como o nacionalismo e a defesa da indústria, o positivismo contribuiu para algo mais sofisticado e definidor, que é uma mudança de postura dos governantes, pois supunha uma visão globalizante do processo históri co, a qual lhe dava um sentido. Sem esta Weltanschauung, existiria o desenvolvimentismo? 

  1. Nasce o desenvolvimentismo… 

À guisa de conclusão, pode retomar-se a hipótese que foi no governo de Getúlio Vargas, ao assumir a presidência do Rio Grande do Sul, em 1928, que o desenvolvimentismo pela primeira vez expressou-se de forma mais acabada. Nele as quatro vertentes formadoras do desenvolvimentismo aparecem associadas não só como propos tas, mas como medidas que o governo começa a implementar, confi gurando o embrião de nova relação entre Estado, economia e socie dade, ao sugerir que o primeiro deveria estar à frente das duas últimas, como forma de estimular seu desenvolvimento. Esta palavra gradual mente substitui o progresso, de matriz positivista, mas desta herda a noção de marcha progressiva, de evolução, de um destino da histó ria; o governo deveria estar à frente de uma construção. 

Para tanto, não se deveria medir esforços e lançar mão de todos os meios e instrumentos para atingir o objetivo maior. Sendo este o crescimento da produção, o qual torna-se o epicentro da política eco nômica e da ação estatal, este positivismo mescla-se com o papelismo. Mas não se trata de uma mera “junção” (“idéias não são metais que se fundem”, como afirma o tradicional provérbio). Surge daí um fenô meno novo, pois ao abandonar os princípios do orçamento equilibra do, da parcimônia com relação a crédito e a empréstimos e, inclusive, ao defender o aumento cada vez maior da presença do Estado na organização dos produtores e dos trabalhadores, fatalmente não se pode mais falar em positivismo. As regras moralistas do “conservar melhorando” e a evolução gradual do progresso vão sendo substituídas ou adaptadas para se conciliarem com o objetivo maior do desen volvimento. Este vai se tornando um fim em si mesmo: esquecem-se os velhos dogmas em prol das exigências impostas pela “complexida de da vida social”: ou seja, precisavam-se de novas idéias, pois se estava em nova época. O desenvolvimentismo, com isto, constrói sua imagem de modernidade e contemporaneidade, propondo-se inseri do e à frente de seu tempo: 

É preciso amparar a produção, estimular a indústria, desenvolver a circulação de riqueza, disseminar a instrução, cuidar do saneamento público rural e urbano, facilitar a exploração de terras, desenvolver a agricultura, melhorar a pecuária, desbravar o caminho para a marcha do Rio Grande do Sul, no sentido de sua finalidade civilizadora (Rio Grande do Sul, 1928:8). 

O emprego da palavra marcha não é fortuito: ajuda a revelar que o desenvolvimento não brotaria espontaneamente, deveria resultar de decisão organizada, implementada com determinação e disciplina; re queria sacrifícios (“desbravar”), legitimava-se por princípios iluministas (“civilizadora”) e exigia à sua frente governos fortes e – quem sabe? – ditatoriais. Fazia-se mister o estabelecimento de nova relação entre o Estado e os responsáveis diretos pela produção, a fim de, em um pacto, ambos cooperarem para a expansão das atividades produtivas e fortale cerem-se para enfrentar as conseqüências nefastas do mercado. 

Assim como o positivismo, o papelismo também não seria mais o mesmo (tanto que desaparece como expressão usual entre os econo mistas). Associado à tradição positivista e ao nacionalismo, mesmo moderado, vai além de apenas propugnar meio circulante para fo mentar os negócios da lavoura, ou mesmo de estimular as contra ções da produção resultantes dos ciclos econômicos. Na verdade, tor na-se uma das teses centrais do desenvolvimentismo, todavia incorporada a uma proposta de maior envergadura, mais abrangente: o intervencionismo. 

A noção de uma política econômica heterodoxa, desvinculada das regras clássicas, justificava-se ante o objetivo maior do desenvolvi mento, associando um instrumental de curto prazo para viabilizar o projeto de longo prazo. Como uma corrente de idéias não existe em abstrato e só faz sentido e justifica sua existência se for capaz de afirmar-se na prática antepondo-se a outra, como lembra a dualidade tese/antítese de Hegel, a superação do papelismo se dá com o pró prio abandono do padrão-ouro a partir da Primeira Guerra Mundial e da crise de 1929. Como ser “papelista” sem existirem metalistas? A ortodoxia, em matéria de política econômica, recorrerá a outros argu mentos para afirmar pontos como a neutralidade da moeda, a passi vidade da política monetária e as regras de equilíbrio orçamentário e de balanço de pagamentos. Os adversários serão outros. Polemizará, a partir daí, com os desenvolvimentistas, como demonstram os deba tes de Roberto Simonsen com Gudin, a partir da década de 1940, ou mesmo a controvérsia sobre monetaristas e estruturalistas sobre in flação, nas décadas seguintes. 

Assim, mesmo antes de 1930, Vargas expressa-se desta forma, associando as várias correntes originárias do desenvolvimentismo: É um conceito vulgar que se impõe como um aforismo. Todo o desenvolvimento econômico deve ter por objetivo tornar a riqueza abundante pelo trabalho e ensinar o homem a usar essa riqueza pela cultura. Mas, se o dinheiro metálico é a medida dos valores, ele, no conceito corrente dos economistas, pela escassez de seu volume e pelas dificuldades de sua condição física, já não satisfaz à exigência do progresso econômico. 

Como imposição da própria necessidade, surgiu um elemento imaterial destinado a atingir os limites da flexibilidade, que é o crédito. Ele se expressa por um estado de confiança e segurança econômica. 

A relação mercantil, diz um financista moderno, criou a operação sem dinheiro pela simples promessa de pagamento, que, por sua vez, se converte em riqueza, estimulando o trabalho e se transmutando em novos valores (Correio do Povo, 3-12-1927:2). 

Entre várias interpretações possíveis, tudo sugere que a passa gem acima contém uma crítica ao padrão-ouro antes enaltecido, ao se referir que a “moeda metálica”, ou seja, com lastro, representava uma barreira a ser vencida para que se pudessem implementar polí ticas comprometidas com a expansão da produção. Por outro lado, revela o compromisso do governo não apenas com a estabilidade, mas com o desenvolvimento, o qual entra definitivamente na ordem do dia. E este significa, sobretudo, “tornar a riqueza abundante” – o que também se afasta da retórica populista e distributivista, associa da ao trabalhismo, que florescerá nos pronunciamentos de Vargas nos últimos anos do Estado Novo e na década de 1950. Mas o mais inusitado é a consciência expressa do papel do crédito, rompendo com a “reprodução simples” da economia doméstica, presa à pou pança; o crédito representava romper as barreiras impostas pelo pas sado, crescer com base na promessa de pagamento, superando os limites à expansão do crescimento. 

Indo além do discurso, a importância do crédito e do papel do Estado no fomento à produção materializou-se com a criação do Ban co do Estado do Rio Grande do Sul em 22 de junho de 1928, pelo Decreto nº 4.079. Este deveria assumir o papel de estímulo às ativi dades produtivas, ter uma “organização mais ampla de um banco de Estado”. Sua finalidade era “fazer a defesa de nossa produção, cons tituindo um propulsor da riqueza e do progresso” (Correio do Povo, 26-4-1928:9). 

Pela proposta do governo, o banco deveria contar com uma car teira hipotecária e uma carteira econômica. À carteira hipotecária caberia, entre outras incumbências, conceder empréstimos aos pro dutores em prazo de até trinta anos, tendo como garantia suas pro priedades, além de financiamentos de curto prazo de capital de giro, de armazenamento e venda da produção. Já à carteira econômica caberia realizar empréstimos sobre warrants e sobre notas promissó rias para agricultores, pecuaristas e municípios, além do próprio Es tado. Nota-se que a indústria não está ainda no centro da proposta; ela é mencionada, não é excluída da área de atuação do banco, mas – talvez pelo próprio predomínio do setor primário no Estado – este vai merecer mais destaque tanto no discurso como no volume das operações realizadas. 

Finalmente, assinala-se que a criação do banco, embora possa ser vir como símbolo de uma nova postura do Estado com relação à econo mia, não se pode associá-la a uma ideologia nacionalista radical. Ao contrário, a integralização de seu capital inicial contou com renegociação de empréstimos externos com a Compagnie Française du Port de Rio Grande do Sul, de 67.933.000 francos (US$ 2,7 milhões de dólares) e de Labenburg, Thalmann & Cia. Ltda., contraídos em 1921 e 1926, respec tivamente de US$ 7,88 milhões e de US$ 20,5 milhões. Reafirmava-se o nacionalismo pragmático dos precursores da defesa da industrializa ção, o qual em geral considerava como bem-vindo o capital estrangeiro que viesse colaborar para a realização do projeto. 

Assim, constata-se que esta experiência regional consegue articu lar, mesmo que de forma embrionária, as quatro correntes formadoras do desenvolvimentismo, não só no discurso, mas também ensaiando uma implementação de suas teses mais caras. Este fato poderia ser mais uma curiosidade histórica e seu registro, apenas um diletantismo acadêmico, não fosse seu principal agente o personagem central da política brasileira de aí em diante, bem como se tratar do projeto norteador das grandes transformações econômicas, políticas e sociais do país pelo menos pelas cinco décadas seguintes. 

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