“Quella solinga margherita
tra i labirinti di Damasco
a ragionar d’amor m’invita”
(Marco Lucchesi)
Guardei para escrever este artigo após ver algo que era um dos sonhos cinematográficos que eu tinha faz mais de décadas: a remontagem de Calígula. Não foi propriamente desapontador: há uma interessante plasticidade nas imagens, há uma história de fato, uma (forçando um pouco a barra) quase shakespeareana trama escrita por Gore Vidal, há interpretações (in)decentes de fantásticas atrizes e atores. Malcolm McDowell “revisita” Alex DeLarge, sua interpretação de juventude, vontade e perversão sem restrições, só que dessa vez com um elemento existencial de desespero. Num certo sentido, faz o contrário de Jack Nicholson: se há quem diga que o Coringa é uma versão aperfeiçoada do Jack Torrance de O Iluminado, não há um elemento existencial, transformação do personagem. Tanto o Coringa quanto DeLarge são versões puras da psicopatia; Jack e Calígula as versões em que ela vai se construindo no desespero de um mundo ao redor que leva ao isolamento sem limites, a uma ruptura unchecked com o humano.
Por outro lado, falta ao filme, por exemplo, tanto a plasticidade quanto a profundidade, para pegar de régua, de um outro filme feito na mesma década que tratou do problema de desmesura e loucura possuindo a pessoa de um jovem rei: Ludwig, do Visconti. Como teria sido o mesmo filme Calígula, com os mesmos atores, fosse John Milius fazendo diálogos e roteiro, Milius que escreveu a série Roma e Apocalipse Now?
Mas não é uma crítica cinematográfica que faço aqui. Filmes servem neste caso como alegorias, parábolas, reinterpretações de tanta coisa. Calígula é uma boa alegoria do poder sem medidas corroendo aquele que nem foi educado a exercer o poder, nem conquistou por sua violência e virtù o poder.
O filme que primeiro me veio à mente foi O Sol, terceiro filme de uma tetralogia sobre o poder do Sokurov, um interessantíssimo diretor russo. Para quem tiver preguiça de seguir links, O Sol é o imperador Hiroíto no momento seguinte à rendição japonesa, em seu diálogo MacArthur, em sua transformação de divino descolamento do mundo, alegoria viva do poder, para o humano, limitado humano. Ali há um Hiroíto fascinado por biologia marinha, mais interessado na viagem interna do conhecimento do que no seu papel de estátua viva de uma identidade nacional. Se Hiroíto “perde o poder”, a vida de fato lhe é dada como recompensa dessa perda.
Mas há um outro filme que é muito mais provável que você, querida leitora, tenha visto: Inception. Esse, que na minha opinião é o melhor dos filmes cyberpunks (partindo da premissa que Matrix, embora se aproprie de um monte de elementos de Neuromancer, é, no fundo, uma garrafada de ficções científicas distópicas dos 70, como Fuga no Século 23, THX 1138 e Idaho Transfer, batidas com Phillip K. Dick), trata de como alguém que não foi preparado para o exercício de um poder (no caso, de uma grande corporação no estilo daquelas das histórias do Gibson dos oitenta) sendo convencido a abrir mão dele e tomar um outro rumo de vida.
Tudo isso me vem a cabeça vendo a forma como Bashar, subitamente, não era mais o presidente da Síria. Filho de um ditador que chegou ao poder pela via militar, por vários golpes dentro da construção do que foi uma possibilidade de estado laico no Levante, Bashar não era para ter sido rei. Bashar é um médico formado em Londres, especializado em oftalmologia, cuja morte do irmão que era o príncipe herdeiro forçou a uma vida a qual ele dava todos os sintomas de não ser a que planejara. Este ano, sua esposa foi diagnosticada com uma leucemia, ela que já tinha tido câncer no seio.
O quanto da forma rápida como a Síria caiu foi Assad, simplesmente, se recusando a um papel que resultaria eventualmente na sua morte violenta, como a de Calígula, como as de Saddam e de Kadafi, ou como a do Rei Faisal ou a de Anwar Sadat, versões com menos requintes de crueldade? Essa é uma pergunta que se deve fazer neste momento em que uma inesperada implosão levou a Síria a ser tomada por uma horda criada pelo que há de mais obscura ação dos diferentes deep states que operam ali.
O que aconteceu, de fato?
Eu tenho minha versão em construção, minha hipótese sobre o que ocorreu sendo construída a partir de coisas capturadas naqueles espaços da antipatia de Chandão, o Chapolim Colorado de nossa democracia tão sob risco: o X, o Telegram, o Rumble. Mas ainda não é um roteiro consistente. Mas há um par de pontos que gostaria de colocar aqui, ponto que desconfio não estão sendo bem considerados.
O primeiro deles foi o bombardeio dos arsenais sírios pelos israelenses. A princípio, sim, Israel aproveitou a oportunidade para remover quem quer que seja que venha a comandar a Síria de ter todo o equipamento do que era uma das mais bem equipadas nações da região. Para leigos e jornalistas isso é claro. A questão é: lembra da novela dos F16 que iriam para a Ucrânia? Se você acompanha a novela sabe que ter alguém capaz de operar um avião de caça não é como dirigir um automóvel ou acertar um arranha-céu. Fora isso, a horda de jihadistas-mercenários montada pela Turquia parece que está extremamente bem equipada e treinada. Ela não precisa das armas da Síria, que irão requerer soldados da Síria para operar.
Mas há alguém envolvido nessa guerra para quem esses arsenais sírios seriam uma benção: a Ucrânia. Os aviões, blindados e munição prontamente destruídos por Israel são um dos últimos estoques que poderiam ir parar nas mãos da Ucrânia e serem incorporados sem maiores complicações. Mig-29s, por exemplo. Não creio que a história de que os ucranianos ajudando a horda com drones fosse apenas para estressar os russos.
Tudo isso foi destruído, rapidamente destruído. Há um ponto que escapa a muita gente discutindo essas guerras: Putin tem uma boa relação com Netanyahu. Será que no acordo de saída de Assad houve uma negociação paralela com Israel para garantir que esses arsenais não iriam parar em mãos ucranianas? Ou, como me observou um very Smart S.o.B., quem sabe Trump também é parte interessada em que não se reforce a Ucrânia neste momento?
O que abre para um segundo ponto. Afinal, agora que grande parte da Síria caiu, ao que parece, em mãos turcas, será que o alerta de Douglas MacGregor de que a Turquia passou a ser a ameaça a Israel, a eventual neutralidade russa é algo a ser conseguido por Israel? Ou será que caiu a ficha de que a guerra da Ucrânia é uma distração que agora compromete recursos essenciais para sua defesa num momento em que começa a se reconhecer que a arte da guerra mudou consideravelmente?
Há uma guerra mundial pela frente, inexorável. Não que Trump, que Xi, que Putin, que o Irã, queiram essa guerra. Mas o desespero da ordem vigente, com coisas como a tentativa de iniciar um conflito entre as Coreias para salvar o governo (coisa que não aconteceria sem ao menos um silêncio conivente dos americanos do regime Biden), é algo desesperante. Antes que chegue o verão é bem capaz do Hemisfério Norte estar pegando fogo. Capaz de Trump, já presidente, ter sido vítima de mais um atentado. Capaz do cancelamento da experiência democrática europeia do pós-guerra em nome da defesa da democracia, como nas eleições anuladas da Romênia, se estender aos países centrais como Alemanha e França.
Assad, ao menos, parece ter deixado a História.