Depois de uma gestação de 12 anos de fazer inveja às salamandras alpinas, foi parida a lei da Economia Solidária! Ela faculta a implementação de propostas que vêm sendo há muito formuladas pelo movimento de Economia Solidária e que agora, ao se combinarem (e transversalizarem) com políticas públicas já existentes, poderão viabilizar muitas das transformações no campo social, econômico, ambiental e cultural que a nação anseia.
A proposta que abordo neste texto é a da Reindustrialização Solidária, cuja discussão ora se inicia de modo sistemático, visando a incorporá-la à proposta da Nova Indústria Brasil (NIB).
Buscando proporcionar insumos adicionais ao quadro comparativo que municiou o debate entre a Reindustrialização Empresarial e a Reindustrialização Solidária (RS), relatado neste texto, avança quatro considerações.
A primeira, de natureza analítico-conceitual, diz respeito a como se dá a elaboração da política pública.
Ela pode ser sumariamente entendida como o resultado de um processo decisório no qual intervêm atores que, em função dos seus distintos projetos políticos (ideologias, futuros desejáveis etc.) defendem agendas (demandas, queixas, cursos de ação etc.) particulares. E que se caracteriza por uma espécie de negociação (ou processo decisório) que tem lugar no interior do Estado entre os atores envolvidos com aquela área de política pública (entre eles, o governo) em torno de suas agendas particulares.
Essa negociação tem como resultado uma agenda decisória que cabe ao governo, em tese, satisfazer mediante as políticas públicas que elabora (formula, implementa e avalia). Ela pode ser entendida como uma média ponderada pelo poder relativo dos atores das suas respectivas agendas particulares.
Poder, este, que decorre de um processo histórico de acumulação de natureza econômica, política, cultural etc. E que, ao caricaturar esse processo de negociação a apenas dois atores que têm como foco de suas agendas particulares, respectivamente, a Reindustrialização Solidária e a Reindustrialização Empresarial (ou a NIB), se pode perceber como claramente desbalanceado em favor do segundo. Situação que, como bem sabe, o movimento de Economia Solidária só se irá alterar se desenvolver a capacidade que os britânicos denominam to reinforce the law, para fazer valer a lei ora aprovada.
As outras três considerações se baseiam no que avançamos até agora por dever de ofício em nossa atividade de pesquisa-ação. Os estudos que temos feito sobre a RS e a RE, apresentados em “Contribuições para que a reindustrialização do País esteja mais alinhada com o interesse de todos” e “Conversando sobre a Nova Indústria Brasil”, em que pese seus defeitos, parecem ser suficientes para evidenciar alguns desafios que teremos para implementar a incorporação pretendida.
Entre eles, e levando em conta o recém-exposto sobre o processo de elaboração da política pública, indicamos as outras três considerações inicialmente referidas.
- “Construção” de um ator capaz de nuclear interesses e representar adequadamente a proposta da RS no processo decisório orientado à sua incorporação à NIB
Nossa percepção é que devido às suas características estruturais, agravadas por fatores conjunturais, o movimento de Economia Solidária (Ecosol), que seria por óbvio o mais interessado e adequado para “construir” esse ator, não se encontra ainda em condições de fazê-lo. Entre outros fatores, o desmantelamento da política de Ecosol que se inicia antes mesmo do golpe de 2016 e o agravamento das condições de sobrevivência dos seus integrantes fazem com que a agenda particular, que vem sendo levada pelos que genuinamente representam esse movimento no âmbito das políticas públicas, seja distinta daquela aderente à RS.
Compreensível e legitimamente, eles estão focados em canalizar os recursos materiais e humanos passíveis de serem obtidos no âmbito governamental para amenizar a difícil situação que enfrenta o movimento para assegurar a sobrevivência dos integrantes da Ecosol. E, adicionalmente, em deslanchar um processo de conscientização e capacitação que lhes permita aumentar paulatinamente as chances de sua sobrevivência. A resultante dessa agenda, em termos do processo da política pública, tenderá a ser um vetor orientado “de baixo para cima” que, mediante a acumulação de forças que hoje se inicia em prol daquela sobrevivência, permitirá ao movimento um aumento de sua capacidade de influenciar sua elaboração.
Nossa percepção é de que é necessário um atalho capaz de, ao mesmo tempo, catalisar e acelerar esse processo, e gerar um vetor que atue “de cima para baixo”, de modo a promover a incorporação desejada. O que demanda a “construção” de um ator, pertencente ao quadro dos agentes públicos de esquerda, que seja solidário à Ecosol e que possa participar do processo decisório da NIB. A ele caberá a defesa da agenda particular da RS (ver item 3 abaixo) junto aos outros agentes públicos; especialmente aqueles envolvidos por meio do que FHC denominou “anéis burocráticos” com o meio empresarial.
Como uma justificativa para essa necessidade de “construção” vale citar que na NIB, como em outras políticas públicas com alguma envergadura formuladas pelo atual governo, mesmo quando são programadas ações que beneficiam os mais pobres, eles surgem como indivíduos e não como um ator social. Os atores sociais que aparecem são apenas as organizações privadas (industriais, financeiras, do agronegócio etc.) e o governo.
- “Sedução” de companheiras e companheiros que possuem alguma influência na elaboração da política pública acerca da pertinência da RS
Temos ouvido de algumas dessas companheiras e companheiros que a Ecosol (e a RS) não possui potência ou capacidade organizativa, escala e certificação de qualidade dos bens e serviços que poderia produzir para atender à compra pública. E que não existe um marco legal que permita a alocação do poder de compra do Estado. Para estes, que declaram não ter nada contra a Ecosol, ela deve demonstrar sua capacidade de impulsionar a RS que temos proposto. É como se a empresa privada não precisasse demonstrar nada acerca de sua coerência com os valores que defende a esquerda e que deveriam orientar a NIB.
Assim, contrariando declarações de agências supranacionais e de lideranças políticas dos países centrais, da América Latina, e do Brasil, que sugerem a pertinência da RS, ela é não apenas inexequível, como inoportuna.
Há, também, quem até a considere como uma espécie de “revisionismo colaboracionista” que afasta a classe trabalhadora da sua luta em prol da derrocada do modo de produção capitalista.
Não obstante, consideramos que a RS é perfeitamente coerente com o projeto político da esquerda e até mesmo do ecossocialismo. E que, alternativamente, concordando com Lincoln Secco e com Carlos Paiva e Allan Rocha, circunscrevendo-me a textos recentemente publicados, que a RS talvez seja a única oportunidade de proporcionar uma vida digna para dezenas de milhões de brasileiras e brasileiros que nunca tiveram e nunca terão emprego.
Isso sem falar que ela possui um poder de conscientização e mobilização que se afigura como decisivo para assegurar governabilidade que o atual governo tanto precisa!
- Concepção de uma agenda particular que, representando o projeto político da Ecosol, sinalize os primeiros passos da incorporação desejada
A sedução a que fazemos referência demanda a concepção da agenda particular da RS a ser defendida no âmbito da NIB. A conjuntura sabidamente desfavorável a RS faz com que essa tarefa tenha que ser atribuída a um ator a ser “construído”, ou melhor dito, em construção.
Lembrando que, não por acaso, o conceito de agenda em política pública se aparenta ao de lista de problemas que os atores enunciam em função de seu projeto político, e tendo em vista essa situação, a tarefa demandará um trabalho preliminar.
Para formular essa lista de problemas, é necessário contar com um insumo informacional que o movimento de Ecosol não possui. O que significa que para iniciar o processo que idealmente levará à incorporação desejada, é necessário providenciar os seguintes insumos.
1. Uma lista sobre o que o Estado compra, de quem ele compra, por quanto ele compra e como ele compra para que se possa identificar as oportunidades que, em curto e médio prazo, mediante a RS, as redes de Ecosol poderão atender à compra pública;
2. Uma lista do “entulho burocrático-legal” que dificulta a alocação de poder de compra de Estado junto à Ecosol, para que se possa providenciar sua remoção;
3. Uma lista das empresas pertencentes às mais de 2 milhões que faliram recentemente, para que se possa identificar aquelas passiveis de serem recuperadas pelos seus trabalhadores;
4. Uma lista de disposições do marco burocrático legal que dificultam a recuperação de empresas pelos seus trabalhadores e, a partir da legislação existente no estrangeiro, daquelas que poderiam aqui ser adotadas.
Esperando ter evidenciado como a proposta da Reindustrialização Solidária pode se transformar numa ideia-força à altura da vitória obtida com a aprovação da Lei da Economia Solidária, fica aqui o convite para que o debate prossiga.
Publicação original em: https://outraspalavras.net/descolonizacoes/novas-brechas-para-a-reindustrializacao-solidaria/
Professor Titular na Universidade Estadual de Campinas (professor visitante em várias universidades latino-americanas) nas áreas de Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia e de Política Científica e Tecnológica. É engenheiro, estudou Ciências Humanas e Economia no Chile e no Brasil, onde se doutorou. Realizou pós-doutorado na Universidade de Sussex, na Inglaterra. Seus últimos livros são Ciência e Tecnologia no Brasil: o processo decisório e a comunidade de pesquisa; Neutralidade da Ciência e Determinismo Tecnológico; Tecnologia Social: ferramenta para construir outra sociedade; Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia e Política de Ciência e Tecnologia: abordagens alternativas para uma nova América Latina; Planejamento Estratégico Governamental; A Pesquisa Universitária na América Latina e a Vinculação Universidade Empresa; e A Indústria de Defesa no Governo Lula.