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Vinte Anos sem Celso Furtado: Um Pensador e Homem de Ação

Por José Almino de Alencar*, Cientista social

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Desde meados dos anos 1960 (minha idade adulta, por assim dizer), eu venho lendo muito do que Celso Furtado escreveu, sobretudo em livros, inclusive os seus volumes de memória; leituras essas feitas por mais das vezes “em tempo real”, ao ritmo de suas publicações e por razões variadas: intelectuais, políticas ou de trabalho.

Afeitos às interpretações marxistas, éramos alguns de minha geração, naturalmente sensíveis às interpretações abrangentes, que situassem a economia do Brasil em seu contexto global e que caracterizassem os problemas advindos das tensões entre o desenvolvimento interno brasileiro e os centros dinâmicos do capitalismo mundial. Obviamente, nesse nível de generalidade, tal abordagem não era nova e seguia uma linhagem de outros intérpretes da realidade econômica brasileira, como, por exemplo, Caio Prado Jr., para citar somente um dos mais ilustres entre eles.

No entanto, o processo como um todo é apresentado por Celso Furtado pelo viés de variáveis macroeconômicas, de modo que sua análise do crescimento da economia, ou, se quiserem, da acumulação interna do capital e dos seus impasses, tomava a forma dos estudos empreendidos à luz de análises da teoria econômica convencional, com sua gama respectiva de sugestões operacionais, relativas a tópicos, tais como: desequilíbrios da balança de pagamentos, carência de divisas para importar bens de capital, insuficiência  da poupança interna, dependência tecnológica etc.

Tal postura oferecia não somente um diagnóstico da situação imediata, mas também apontava para políticas de Estado alternativas e progressistas. Os seus textos traziam assim embutidos uma visão persistentemente reformista, dotada de coerência e que apontavam o governo como o mediador maior do processo de desenvolvimento brasileiro e o eventual orientador das mudanças sociais; o que, de resto, vinha sendo uma experiência comum de nossa história.

Por suas implicações políticas diretas, sua análise possuía um tônus mais realista que “as análises concretas de situações concretas”, pretendidas pelo althusserianismo que vingava naquele tempo; e, igualmente, em contraste com os esquemas simplificadores e generalizantes de outras interpretações históricas. Sendo assim, os economistas marxistas que se aventuravam em análises factuais de determinada conjuntura eram obrigatoriamente “furtadianos” envergonhados.

Logo no início de seu “O mito do desenvolvimento econômico” ele descreve esta passagem e junção entre o geral e o particular de maneira concisa e clara:

Os mitos têm exercido uma inegável influência sobre a mente dos homens que se empenham em compreender a realidade social. Do bon sauvage com que sonhou Rousseau, à ideia milenária do desaparecimento do Estado, em Marx, do “princípio populacional” de Malthus à concepção walrasiana do equilíbrio geral, os cientistas sociais têm sempre buscado apoio em algum postulado enraizado num sistema de valores que raramente chegam a explicitar. O mito congrega um conjunto de hipóteses que não podem ser testadas.

Contudo, essa não é uma dificuldade maior, pois o trabalho analítico se realiza a um nível muito mais próximo à realidade. A função principal do mito é orientar, num plano intuitivo, a construção daquilo que Schumpeter chamou de visão do processo social, sem a qual o trabalho analítico não teria qualquer sentido. Assim, os mitos operam como faróis que iluminam o campo de percepção do cientista social, permitindo-lhe ter urna visão clara de certos problemas e nada a ver de outros, ao mesmo tempo em que lhe proporcionam conforto intelectual, pois as discriminações valorativas que realiza surgem ao seu espírito como um reflexo da realidade objetiva.

Para Celso Furtado, no dizer de Francisco Oliveira: “não há uma teoria que explique a história; nem o contrário, uma história que seja explicada pela teoria: o andamento se faz tecendo os fios de uma construção autoestruturante, em que a história é teoria e a teoria é história”.  O método interpretativo visaria assim ser um exercício em aberto.

Em seu livro “Formação econômica do Brasil” encontraríamos então uma narrativa de cunho histórico compondo “um vasto afresco, onde cada segmento estruturado teria o valor de uma sugestão”; uma espécie de matriz de hipóteses. Segundo o próprio Celso: “O livro seria uma coleção de hipóteses com demonstrações apenas iniciadas ou sugeridas”,  que poderiam eventualmente ser infirmadas; prognóstico, aliás, realizado em alguns estudos posteriores que se ativeram a uma ou mais dessas hipóteses.

Assim, por exemplo, em um trabalho seminal de pesquisa em historiografia econômica que teve origem em sua tese de doutorado, Roberto Borges Martins  discute a afirmação de Celso Furtado de que a economia de Minas Gerais haveria decaído com o passar do ciclo do ouro. Baseado em uma análise demográfica meticulosa, apesar das limitações dos dados, ele demonstra que a população mineira de escravos não parou de crescer na primeira metade do século XIX e que o estado teve a maior população escrava do país.

Minas se reconverteu em um produtor de alimentos para o mercado interno, assim como teria desenvolvido uma cultura de café, o novo produto de exportação à época. No entanto, essa correção, como observa Luiz Felipe de Alencastro,  “é fundamental para explicar a evolução de Minas Gerais e ajuda também a entender a persistência da influência política mineira no Rio de Janeiro. Mas não incide sobre o processo geral de evolução econômica exposto em ‘Formação econômica do Brasil’”.

No mesmo sentido, um exemplo por vezes citado de diagnóstico e previsão errôneos nos textos de Celso Furtado é seu artigo “De l’oligarchie à l’État militaire”, escrito logo após o golpe de 1964 e publicado em um número especial sobre o Brasil da revista Les Temps Modernes, editado pelo próprio Furtado a pedido de Jean-Paul Sartre, fundador e então diretor daquela publicação.

Segundo Furtado, o controle do Estado determinaria o caminho do desenvolvimento econômico, e a vitória dos militares trouxera ao poder o grupo de economistas neoclássicos, aqueles mesmos que haviam se manifestado contra as políticas industrializantes empreendidas por Vargas e Kubitschek; grupo simbolizado por Eugenio Gudin, Roberto Campos, Otávio Bulhões etc. e que estavam representados no ministério do governo Castelo Branco. Por dedução, ele previa, em seu artigo, uma reversão daquelas políticas: o modelo econômico que emergiria do novo regime seria um “modelo de pastorização”: o Brasil se veria “excluído da revolução tecnológica”, haveria uma contração relativa dos investimentos industriais e um crescimento ainda mais lento da massa assalariada, a população excedente teria de ser absorvida pelas terras agrícolas ainda não ocupadas e produziria bens para as cidades; e a pecuária se expandiria em terras antes dedicadas à agricultura. Nesse caso, como o título do artigo já parecia anunciar, todo o seu argumento partira de uma premissa, sobretudo política, induzindo-o a uma análise econômica que se revelou drasticamente errônea em futuro relativamente próximo. Mas que não parece tão longe da realidade atual.

Em “As aventuras de um economista brasileiro”,  Celso Furtado nos diz que encontrara na sociologia do conhecimento de Karl Mannheim uma “forma de ligar a atividade intelectual do homem à história” e que “o desejo de vincular a atividade intelectual à história será o ponto de partida de meu interesse pelas ciências sociais. Já não se tratava de ler livros de ciências sociais e sim de buscar neles meios para atuar”.

A atividade intelectual pressupunha o desejo de fazer – no seu caso, tornar possível o desenvolvimento econômico do país –, e esse objetivo se realizaria através da atividade política e na participação nos negócios de governo. Os intelectuais deveriam procurar imprimir racionalidade a ação dos homens de Estado, guiando-lhes no sentido de otimizar a utilização produtiva dos recursos internos do país em benefício do interesse coletivo. A vasta experiência política e administrativa que ele adquiriria só viria fortalecê-lo nessa convicção, como afirma nas suas memórias:

O Estado é uma arena onde se confrontam os interesses mais diversos. As circunstâncias podem favorecer estes ou aqueles grupos, mas nem sempre são alheias à vontade dos atores, como havíamos comprovado com frequência. Sem ousar, não se conhecem os limites do possível, e muita coisa é possível no plano político.

Luiz Felipe de Alencastro  nos lembra que “Furtado pertence à primeira geração de intelectuais latino-americanos formados em economia – disciplina voltada para a ação governativa –, que refletiu coletivamente sobre a história e o planejamento público dos países da região no quadro da Cepal”. A sua obra começa a se firmar “quando o voto secreto trouxera Getúlio de volta ao poder em 1950 e projetava a eleição presidencial como um vetor de transformação nacional […] e o governo federal e o Estado-empresarial afirmavam sua presença na administração pública e na economia. À diferença de outros grandes textos de interpretação do Brasil – com a notável exceção de ‘O abolicionismo’ (1883),  de Joaquim Nabuco –, ‘Formação econômica do Brasil’ é um livro em que a reflexão prepara a intervenção nos centros decisórios do Estado, como ficou claro nas outras obras de Furtado e em sua carreira na administração pública”.

E nesse período, a figura de Juscelino Kubitschek, que lhe confidenciara que a ideia de construir Brasília lhe ocorreu como um estalido ao ser provocado em um comício por um interlocutor ocasional, assume um caráter simbólico da gama de possibilidades de iniciativas que estariam ao alcance daqueles que se dispusessem a “ousar”. Furtado o descreve em termos superlativos, quase líricos:

O Brasil que eu encontrei, ao regressar da Europa em agosto de 1958, era um país em extraordinária efervescência […]. A personalidade fascinante de Kubitschek ocupava o centro da cena. Ao empenhar-se na construção de Brasília, […] pusera em marcha um processo cujas repercussões em todos os planos da vida nacional começavam apenas a fazer-se sentir. Autêntico visionário, […] se houvesse que compará-lo a alguém, eu lembraria Cristóvão Colombo, esse grande outro obstinado [que] como um D. Quixote guiado por alucinações, veio a descobrir o Novo Mundo. O certo é que muito deve a humanidade a visionários.

Desde 1949, quando ingressara na recém-criada Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), Celso Furtado envolvera-se nos vários esforços institucionais, políticos e intelectuais que agitavam partes da burocracia internacional, instituições governamentais e universidade em torno do debate sobre os fatores e condições necessários ao desenvolvimento econômico. As análises de Raúl Prebisch, então secretário-executivo da Cepal, denunciavam uma tendência histórica à deterioração dos termos de troca em detrimento dos países exportadores de matéria-prima (o caso da maioria dos países latino-americanos) e importadores de produtos industrializados e de tecnologia – o que limitava a acumulação de divisas necessárias para importação de capital desses países e as possibilidades de seu crescimento econômico.

De uma maneira geral, aqueles que estavam sob a influência das teses cepalinas procuravam identificar os impedimentos ao desenvolvimento inerentes aos países periféricos visto que eles ocupavam uma posição estrutural desfavorável na divisão internacional do trabalho. Quase imediatamente ficaram sob os ataques dos economistas liberais, ou neoclássicos, que reafirmavam com maior ou menor sofisticação formal, os benefícios da lei das vantagens comparativas no comércio internacional.

Ao mesmo tempo surgia, sobretudo nas universidades americanas, o interesse pelos processos de crescimento econômico (reais ou postulados) o que trouxe à moda uma série de exercícios e modelos formais, especialmente de economistas keynesianos que tratavam de descrever esses mesmos processos.

A participação de Furtado é intensa. Torna-se um militante do desenvolvimento, defendendo uma política de industrialização induzida por um Estado que mediasse entre os interesses exportadores e industrialistas, que se tornasse um investidor direto em áreas cruciais da economia, que procurasse criar mecanismos de crédito de longo prazo garantindo grandes empreendimentos, assim como políticas que dirimissem os desajustes estruturais internos, notadamente com respeito à região nordestina; enfim, medidas muitas delas que se tornaram, bem ou mal, atribuições corriqueiras do Estado brasileiro. Entre 1949 e 1958, Celso Furtado atua como funcionário internacional, empreendendo missões de assistência técnica em países latino-americanos, inclusive no Brasil, onde vem a presidir o Grupo Misto Cepal-BNDE, cujo estudo sobre a economia brasileira servirá de base ao Plano de Metas do governo Juscelino Kubitschek. Em 1958, desliga-se da Cepal e assume uma diretoria do BNDE. A grande seca de 1958 no Nordeste, que produz uma mácula no brilho do quinquênio de Kubitschek, recebe atenção especial do governo que o nomeia interventor no Grupo de Trabalho do Desenvolvimento do Nordeste (GTDN). Em janeiro de 1959 dá-se seu grande encontro com o presidente em uma reunião no Palácio Rio Negro em Petrópolis, onde ele apresenta as ideias gerais do relatório do GTDN: “Uma política de desenvolvimento para o Nordeste”.

O trabalho é encampado por Juscelino que, “de estalido”, cria a Operação Nordeste e o designa seu comandante. Em 1960, o Congresso Nacional aprova a lei de criação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e Celso Furtado é nomeado seu primeiro superintendente, tendo sido reconduzido à Superintendência pelos dois presidentes seguintes:  Jânio Quadros e João Goulart; possivelmente esse seria o cargo público ao qual ele é mais frequentemente associado e que marcaria definitivamente sua biografia. Finalmente, durante o governo Goulart, elaborou um plano de caráter nacional (trienal), que fracassou na tentativa de dissipar a crise econômica de 1962-63.

No processo de construção do Estado brasileiro moderno – iniciado, simplifiquemos, na década de 1930 –, um Estado que tomava a frente do processo de desenvolvimento socioeconômico, que se expandia na sua função administrativa, não foram raras as figuras do entrepreneur dentro do aparelho estatal: homens que ampliaram e inovaram o serviço público, trazendo para ele novas funções e novas formas de organização. Alguns, nelas, implantaram-se e lhes deram propósito e forças, garantindo-lhes a continuidade de existência, estabelecendo, por vezes, uma simbiose entre o homem e a instituição por longo tempo: lembro aqui os exemplos – em posições e importância variadas – de Rodrigo Mello Franco de Andrade, no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ou de Gilberto Freyre, na Fundação Joaquim Nabuco, sem esquecer as figuras marcantes de alguns reitores fundadores, como Joaquim Amazonas, em Pernambuco, e Edgar Santos, na Bahia. Alguns se limitaram, muitas vezes por forças das contingências políticas a ter o papel inicial dos criadores, dos inovadores: é o caso de Celso Furtado com a criação da Sudene ou ainda o de Darcy Ribeiro, fundador da Universidade de Brasília.

Durante praticamente todo o período democrático, até 1º de abril de 1964, quando ao lado de Miguel Arraes, em Pernambuco, viu os militares tomarem o poder, Celso Furtado esteve sempre envolvido nos embates pelas reformas desenvolvimentistas no Brasil. Teve a oportunidade de pensar o nosso país e de agir sobre sua história em posição privilegiada: foi um intelectual tal como esperaria Karl Mannheim: pensador e homem de ação; e que deu certo.

*O autor é pesquisador da Casa de Rui Barbosa almino@rb.gov.br
Publicação original em: https://insightinteligencia.com.br/vinte-anos-sem-celso-furtado/

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