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Brasil: O País Que Desistiu De Existir Como Estado Nacional

Brasil como Estado Nacional: cultura, governança e desafios históricos na construção da soberania e cidadania

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Pedro Pinho
Pedro Pinho
Administrador aposentado.

O professor e desembargador federal Roy Reis Friede, no Curso de Ciência Política e Teoria Geral do Estado (Freitas Bastos Editora, RJ, 2013, 5ª edição revista e ampliada) assim discorre sobre o Conceito de Estado: “Um agrupamento humano em território definido, politicamente organizado que, em geral, guarda a ideia de Nação. Daí a construção do conceito sintético de Nação política e juridicamente organizada para definir conclusivamente o termo Estado”.

Usando o conceito do jurista português Marcello Caetano, Friede distingue Nação pela base cultural, do latim “nascere” que recorda a unidade étnica, a herança histórica e o destino comum de específico grupo social.

Mesmo com todas as mudanças conceituais e as diferentes organizações, “Estado” é o vocábulo que congrega povo, território e soberania.

O Brasil como estado: a cultura
Se nos cabe, a nós brasileiros, alguma alteridade, alguma distinção, é pelo fato de termos sido Estado antes de nos constituirmos Nação. O Brasil já existia antes mesmo de se conhecer/reconhecer, graças ao Tratado de Tordesilhas (1494), firmado entre o Reino de Portugal e a Coroa de Castela.

Darcy Ribeiro (Os Índios e a Civilização, 1970) discorre sobre as diferentes características das tribos indígenas existentes nas costas brasileiras no século 16, contestando a suposta homogeneidade.

Nesta questão das populações indígenas à época dos descobrimentos, há mais desinformações do que transmissão de dados confiáveis, o que nem é incomum nas narrativas europeias das populações americanas. Não somente pelo interesse catequizador quanto pelo desejo de ter mão de obra não remunerada.

Povo, enquanto elemento constitutivo do Estado, pode vir do núcleo familiar ampliado até a forçada invasão de vizinhos ou de mais distantes estrangeiros.

O povo da costa atlântica, no Brasil, era bom guerreiro que desalojara os inumeráveis povos que ocupavam a parte portuguesa do Tratado de Tordesilhas. Darcy Ribeiro escreve (O Povo Brasileiro, 1995) que falavam “dialetos” da mesma língua e sugere que, possivelmente, com o tempo “alguns deles sobrepusessem outros”, constituindo, como na América Espanhola, etnias dominantes. No entanto não houve tempo para esta evolução natural.

“O grupelho recém-chegado de além-mar era superagressivo e capaz de atuar destrutivamente de múltiplas formas”. Darcy chama a atenção para “uma guerra bacteriológica”, mas ao lado da morte do corpo, os estrangeiros matavam o espírito com um Deus a quem os nativos brasileiros deveriam obedecer, temer e honrar.

Por conseguinte, toda cultura que poderia ser incorporada dos primitivos habitantes sofreu o filtro europeu, chegando disforme ou pouco aproveitável na população que se formava.

O mesmo se deu com a importação europeia de escravos das etnias africanas. Intencionalmente misturadas pelo mesquinho interesse português de não vir a ser dominado por elas.

O Brasil miscigenado, que constituiria um povo novo, específico do nosso território, riquíssimo culturalmente, morreu literalmente na praia. E o poder liberal, dominante, segrega ainda mais com a política identitária, “cada macaco no seu galho” diferentes pelos sexos, etnias, cor de pele e costumes ancestrais.

Mais grave, ainda, é que esta política dissemelhante, excludente, segregacionista é apresentada como de “esquerda”, assim entendidas aquelas que são mais avançadas socialmente.

Em As Américas e a Civilização (1970), Darcy Ribeiro diferencia países contentes dos descontentes, e para os cientistas destes últimos recomenda “usar os instrumentos da ciência para tornar mais lúcida a ação dos seus povos na guerra contra o atraso e a ignorância, a fim de discernir, tática e estrategicamente, tudo o que é relevante dentro da perspectiva desta guerra”.

Observe-se que, ainda que use a palavra guerra, os inimigos não são outros homens, não é uma luta de um setor, o trabalho, contra outro setor, o capital, mas de todos contra a ignorância. E Darcy nos faz recordar Confúcio (500 a.C.), para quem o primeiro dever do homem é estudar, estudar como no pensamento chinês, isto é, não acumulando linear ou dialeticamente conhecimentos, mas em espiral, tangenciando todas as possibilidades de encontrar aquele conhecimento nas múltiplas e distintas realidades que a vida proporciona.

Saber é conhecer a realidade em todas suas formas, suas configurações, seus encobrimentos e integridades. “Aprender é um processo que jamais pode ser finalizado”.

A primeira lição, do primeiro Livro, de Os Analectos tem a fala do Mestre, sob forma de interrogação: “Não é um prazer, uma vez que se aprendeu algo, colocá-lo em prática nas horas certas”. E, no Livro IX, um complemento, “quando cometer um erro, não tenha medo de corrigi-lo”.

O Brasil errou desde sua formação de Estado Colonial. Esta categoria surge das conquistas territoriais, principalmente europeias, como se observa nas Américas, onde o idioma é o europeu, nem mesmo um dialeto específico para qualquer Estado. Nas Américas falam-se espanhol, português, inglês, francês e holandês.

Na África se observa maior diversidade pela ancestralidade da cultura. Além do inglês, francês, alemão, português, espanhol, italiano e árabe, existem o suaíli (Tanzânia, Quênia, Uganda, Burundi e Ruanda), hauçá (Nigéria e Níger), iorubá (Togo, Benim, Gana, Costa do Marfim, Serra Leoa e Libéria), tigrina (Eritréia) e outras.

A Sociedade Internacional de Linguística (SIL International), organização estadunidense cristã, originalmente denominada Summer Institute of Linguistics (Dallas, Texas, EUA, 1934), que procura identificar idiomas nativos africanos para difundir a Bíblia, já catalogou 242 línguas, não europeias nem asiáticas, faladas e utilizadas em comunicações.

A imposição do português no Brasil praticamente impediu a absorção das culturas nativas e das africanas, estas últimas vindas com a escravidão, que permaneceu legalmente por quase quatro séculos (1539-1888).

O Brasil como Estado: a estrutura da governança
Quando se estuda a estrutura de organização dos Estados, é comum separar aqueles órgãos e aquelas instituições destinados a garantir sua existência e autonomia, o pilar da soberania, daqueles destinados a dar conhecimento e proteção ao povo que os habita, o pilar da construção da cidadania. A denominação “construção” procura transmitir a ideia de sua permanente atualização, o atendimento a novas necessidades surgidas da própria dinâmica da evolução da sociedade. Temos, portanto, um conjunto de órgãos/instituições para as funções da soberania e outro para funções da cidadania.

Um Estado Colonial, por definição, não é soberano; no entanto ele precisa se garantir das agressões externas e dos movimentos internos, voltados para sua transformação ou para sua independência.

O primeiro “Estado” brasileiro foi definido pelo rei de Portugal, Dom João III, na verdade foi um “anti-Estado”, pois privatizado no modelo das Capitanias Hereditárias. Os donatários tinham o poder de administrar a capitania, mas as terras eram de Portugal. Eles podiam transmitir a terra aos seus filhos, mas não podiam vendê-la.

O insucesso das Capitanias deu-lhes curta duração, mas só foram formalmente extintas em 1759, pelo secretário de Estado do rei Dom José I, Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, que seria designado atualmente 1º Ministro (1750-1777).

O “Estado Colonial” foi constituído pelo mesmo Dom João III, em 1548, mas efetivado com a vinda de Tomé de Sousa para o Brasil, em 29 de março de 1549, acompanhado de cerca de mil pessoas, entre elas os encarregados dos três órgãos então criados: “capitão-mor da costa”, para defesa de invasões do exterior, “ouvidor-mor”, para garantia interna da lei e da ordem, e “provedor-mor”, algo semelhante ao ministro da Fazenda com o Banco Central. Observa-se que a estrutura de Dom João III contemplava apenas as funções da soberania. Todas atividades voltadas para construção da cidadania estavam privatizadas e assim permaneceram até 14 de novembro de 1930, ou seja, por 381 anos e oito meses.

Quando uma iniciativa privada assume alguma função do Estado, o faz pelo eventual lucro financeiro que vislumbra ou pela dominação ideológica que a atividade propicia. A educação, no Brasil, foi entregue aos jesuítas, ordem religiosa da Igreja Católica Romana, apenas interessada na doutrinação católica, na transmissão dos comportamentos e pensamentos para formação do “bom católico” que, para eles, se confundia com do “bom cidadão”.

Interessava ao Estado Colonizador Português esta ação dos jesuítas, por reduziria a eventual rebeldia aos colonizadores, economizando recursos da “ouvidoria-mor”. Por outro lado, facilitaria a escravidão indígena como serviço ao Deus que eles passavam a acreditar/servir. Havia, portanto, uma interação, uma simbiose nos propósitos do “Estado Colonizador” com aquela ideologia de submissão.

Quanto à produção, não se desenvolvia uma capacidade para transformação dos recursos naturais, era, como volta a ser no século 21, a exportação de produtos primários, na época somente agrícolas, hoje minerais e de petróleo.

Pode o sagaz leitor lembrar-se do ouro e das pedras preciosas, que levaram ao primeiro movimento de independência, a Conjuração Mineira, entre 1788 e 1789. Porém o Brasil, com os recursos tecnológicos da época, não competia com as extrações de ouro e prata da América Espanhola.

Se por mais de 380 anos fomos mantidos na ignorância, o caminho para o conhecimento sempre foi obstado, contestado, deformado. Houve um debate, ao vivo, pela televisão, entre o governador de dois estados brasileiros, o engenheiro Leonel de Moura Brizola, e o professor universitário, então candidato a presidente da República, Fernando Henrique Cardoso (FHC).

Brizola se notabilizara como construtor de escolas, colocar a instrução como principal objetivo de seus governos. No Rio Grande do Sul, entre 1959 e 1963, construiu ou ampliou 5.254 escolas primárias, 278 escolas técnicas e 131 ginásios, colégios e escolas normais. No Rio de Janeiro, em dois períodos de governo, 1983 a 1987 e 1991 a 1994, criou, com Darcy Ribeiro e Oscar Niemeyer, os Centros Integrados de Educação Pública (Cieps), escolas de ensino em horário integral, com salas de aula, bibliotecas, ginásios esportivos, auditórios, refeitórios, alojamentos e instalações para assistência médica e odontológica.

FHC era defensor das privatizações e do limite de gastos públicos para ter abundantes recursos destinados a pagar os serviços das dívidas, estas nunca auditadas pelos governos após Getúlio Vargas.

O professor diz que não poderia haver Cieps pois seu custo era muito alto; o engenheiro responde que muito mais onerosa era a ignorância. E Darcy Ribeiro, profeticamente, afirmou, o dinheiro que não se quer gastar com os Cieps será muito maior para gastar com prisões e na segurança pública, no futuro.

Vivemos desde a “redemocratização” dominados pela ideologia neoliberal. Esta obriga o teto de gastos para as atividades vinculadas à construção da cidadania e, igualmente, a quase todas relacionadas à soberania, de modo a haver sempre recursos ilimitados para o pagamento das dívidas estatais, oneradas por taxas de juros sempre mais altas do que a inflação.

Se na construção da cidadania, os recursos para educação, saúde e habitação são as ausências mais sentidas em todos os tempos, na soberania, hoje, é a falta de investimentos na tecnologia da informação e na termonuclear, onde estão as principais armas para defesa e para o ataque ao invasor.

Neste mês de dezembro de 2024, enquanto os EUA reduzem sua taxa básica de juros para incentivar o crescimento industrial e dos serviços, o Brasil aumenta a taxa de juros, fixada pelo Banco Central “Independente”, de modo a evitar o desenvolvimento industrial brasileiro e manter o país como exportador de produtos primários. Além de beneficiar os bancos e especuladores financeiros.

A instrução continua sendo evitada, sob diversos pretextos, para que o povo não se revolte dos maus tratos que todos os poderes da república lhe infligem. E vamos desistindo de construir nosso Estado Nacional, o país onde nossos descendentes poderão viver, como na letra de Manuel Bandeira, para música de Heitor Villa-Lobos, Invocação em Defesa da Pátria:

“Céus e mares do Brasil

Tão amados de seus filhos

Que estes sejam como irmãos

Sempre unidos, sempre amigos.

Inspirai-lhes o sagrado

Santo amor da liberdade!

Concedei a essa pátria querida

Prosperidade e fartura.

Oh divino onipotente!

Permiti que a nossa terra

Viva em paz, alegremente”.

Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.

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