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O Pipoqueiro, o Mau Empresário, o Criminoso e o Pix

O submundo da economia – ou economia subterrânea, como preferem os especialistas – gira R$ 2 trilhões no Brasil. Quase 20% do PIB da economia oficial. Combater o monitoramento das transferências financeiras favorece os grandes sonegadores da República.. Por Chico Sant'Anna

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O título desse texto parece lembrar as fábulas de nossas infâncias. Mas ele se refere a um mal crônico, que desde a invenção do Santo de Pau Oco – para sonegar os impostos da Coroa Portuguesa -, até os dias de hoje, corrói a sociedade e não apenas as finanças nacionais. Em 2023, o valor do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil – que é a soma de toda riqueza produzida no país – foi de R$ 10,9 trilhões. Para 2024, acredita-se num crescimento de 3,5%, elevando a quantia para R$ 11,3 trilhões. Número expressivos, mesmo em um cenário internacional. Seria essa efetivamente toda a riqueza gerada pelo Brasil? Economistas dizem que não. Esses apontam a existência de uma riqueza oculta trilionária.

Tecnicamente chamada de economia subterrânea, essa riqueza oculta foi estimada, em 2022, pelo Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (Etco), em R$ 1,7 trilhão, equivalente a 17,8% do PIB de então. Aplicada a mesma proporção, a economia subterrânea atual teria um peso de R$ 2 trilhões. Uma montanha de dinheiro que consegue fugir das tributações, sejam elas dos municípios, dos Estados ou da União. É o famoso Caixa 2. Esse Caixa 2 não tem fronteiras, está sempre circulando nesse mundo globalizado. Ele pode abrigar moedas nacionais e internacionais, ouro e pedras preciosas. Tudo que tiver valor e puder ser materializado em dinheiro fácil e rapidamente. Os paraisos fiscais estão aí para facilitar ainda mais as transações por debaixo do pano.

Prostituição

Roberto Olinto, ex-coordenador de Contas Nacionais do IBGE, define em artigo que “a economia subterrânea é composta por atividades que, apesar de legais, optam por não declarar seus dados, como faturamento total ou pessoal empregado, para evitar o pagamento de exigências trabalhistas, pagamento de impostos, taxas, contribuições sociais etc.” Talvez esteja aí a explicação para o surgimento de um saldo de R$ 429,9 milhões que em um paraíso fiscal, referente a um importante empresário das Comunicações recém falecido. Como esse dinheiro saiu do Brasil sem que ninguém soubesse?

Esse conceito, contudo, não engloba todas as transações que ocorrem no subterrâneo dos negócios, sejam eles lícitos ou ilícitos. Em artigo de 1987, o economista peruano Hernando de Soto Polar incluiu nesse segmento os operadores ilegais de jogos de azar, tráfico de drogas e prostituição. Nos tempos atuais, poderia incluir a pirataria de produtos, o contrabandista, garimpo ilegal, invasores de terra pública, milícias, tráfico humano.

O economista peruano acrescenta as atividades econômicas tradicionais que preferem operar na clandestinidade, sem registro legal, para se evadir do fisco. Nesse clube, poderiam estar o grileiro de terra travestido de corretor de imóveis, o lojista, o médico e o dentista que não emitem nota fiscal, os empresários e produtores rurais que não registram em carteira seus trabalhadores e, em alguns casos, os tratam em condições análogas ao trabalho escravo.

A economia subterrânea deve incluir ainda segmentos da sociedade que batalham honestamente pelo seu ganha-pão: o pipoqueiro, o baleiro, o bombeiro hidráulico, o pintor de parede. Uma parcela de trabalhadores que está sendo usada nesse imbróglio do monitoramento das transferências financeiras.

A economia subterrânea tem crescido desde 2020, segundo dados do Índice da Economia Subterrânea (IES), aferido pela FGV e pela Etco.

O avanço das novas tecnologias tem acentuado também o grau de informalidade. O advento dos motoristas, motoqueiros e entregadores de comidas e encomendas por aplicativo, a chamada uberização da economia, é uma demonstração desse fenômeno, que já chega a profissionais de alta qualificação. A economia formal tem retomado seu crescimento, nesse período pós Covid. “No entanto, a parte informal do mercado de trabalho mostrou recuperação mais forte em termos relativos” – apontam em artigo conjunto o presidente do Etco, Edson Luiz Vismona, e o economista da FGV/IBRE, Fernando de Holanda Filho. As duas instituições monitoram o desempenho da economia informal, retratada no Índice da Economia Subterrânea (IES).

Sonegação histórica

Esconder a renda é uma infeliz tradição em nosso país. A prática de nossos bisavós de guardar dinheiro sob o colchão foi posteriormente substituída por cheques ao portador, títulos e letras de aplicação financeira também ao portador. Teria direito a respectiva quantia quem tivesse a posse dos cheques ou títulos. Quem perdesse o papel, perdia tudo. Era como perder um bilhete de loteria premiado.

Os títulos ao portador eram negociados de mão em mão e, por isso mesmo, muito usados para lavar dinheiro sujo. Assim, esses títulos eram muito procurados pelos empreendedores da economia subterrânea, quando desejavam emergir até a superfície parte de suas fortunas. Bastava comprar um desses papeis, muitos emitidos pelo governo federal e também pelos estaduais, que o dinheiro sujo ficava limpinho. Comprar bilhetes lotéricos premiados também tem sido uma forma contemporânea de legalizar dinheiro escuso.

Ao longo dos anos, a tentativa de trazer à tona a economia subterrânea tem sido constante. Os títulos ao portador foram extintos, cheques com valor acima de R$ 100,00 passaram a ser obrigatoriamente nominais a quem os recebia. Criou-se o estatuto das pequenas e microempresas. Com um tratamento fiscal mais suave esperava-se a formalização de muitos negócios de fundo de quintal. Em janeiro de 2024, segundo o portal do Sebrae, o Brasil possuía 20,8 milhões de empresas ativas, 93,5% eram microempresas ou empresas de pequeno porte. Tinham saído da clandestinidade.

Posteriormente, criou-se o status de Micro Empreendedor Individual (MEI). Uma forma de quem ganha a vida tocando sozinho o seu pequeno negócio não ficar marginalizado. Aqueles que faturam até R$ 81 mil por ano, cerca de R$ 6.750 por mês, pode ser um MEI. Uma taxa mensal de cerca de R$ 81,00 cobre tudo que seria necessário em termos de taxas, sejam elas Imposto de Renda, ICMS, ISS e até mesmo a contribuição previdenciária. Em 2022, o Brasil possuía 14,6 milhões de pessoas nessa condição, porém, em outubro de 2024 havia caído para 11,5 milhões de microempreendedores. Os motivos não são claros, mas o crescimento da oferta de emprego formal pode ser uma das explicações.

Todos esses marcos jurídicos, mais a isenção de imposto de renda até dois salários mínimos, excluem a quase totalidade de pipoqueiros, doceiras, costureiras, bombeiros hidráulicos, marceneiros, pintores de parede e demais pequenos assalariados e empreendedores individuais diante de uma eventual taxação pelo uso de transferências bancárias, sejam elas via Pix ou qualquer outro método. Vale registrar que transferir dinheiro de uma pessoa pra outra não implica em tributação de imposto de renda.

A gritaria sobre o controle das movimentações financeiras acima de R$ 5 mil mensais, como desejava a Receita Federal, é exatamente dos grandes sonegadores, sejam eles do submundo do crime ou empresários que não querem pagar impostos ou demonstrar a origem de suas receitas. Beneficia também o miliciano, o cafetão, o contrabandista, aquele que ganha dinheiro de corrupção. Muitos desses, usuários de bancos e moedas digitais, dificeis de serem fiscalizados.

Em comum entre os integrantes desse seleto grupo está a impossibilidade de vir a público para chorar as próprias magoas. Imaginou o líder do trafico do Morro do Alemão vir reclamar que a receita pela venda de “Beck” – gíria para designar cigarro de maconha – estaria sob vigilância da receita? Ou o contrabandista dizer que a muamba está no sal? Claro que nenhum grande empreendedor da economia subterrânea virá a público. Daí, torna-se estratégico jogar para a opinião pública que os danos decorrentes das medidas da Receita Federal iriam recair sobre os pequenos e honestos microempreendedores. Um tema fácil de ganhar a simpatia de todos, inclusive dos que não são afetados em nada.

Lastimável é ver parlamentares fazendo coro nessa estratégia para proteger a renda dos ilegais, dos traficantes, dos produtores de cigarro e bebidas piratas, daqueles que vendem armas para as milícias e para as gangues, que monopolizam a venda clandestina de gás e sinal de tv nas comunidades. Todo mundo sabe que o bolso é o que dói mais ao mundo do crime. Sem dinheiro, perde operacionalidade. Mas suas excelências fingem ignorar essa realidade e bater no governo é mais importante do que subjugar o submundo econômico.

Proteger o sonegador, para esses parlamentares, é mais importante do que ter uma receita mais farta investida em novos projetos nacionais, em saúde, educação públicas, que beneficiariam diretamente o pipoqueiro, a doceira e seus familiares. Uma arrecadação maior pode inclusive suavizar a tabela do imposto de renda dos assalariados.

As prioridades de alguns parlamentares, contudo, são inacreditáveis.

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