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Do Império Ao Multilateralismo

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José Carlos de Assis
José Carlos de Assis
Economista, doutor em Engenharia de Produção pela UFRJ, professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba e autor de mais de 20 livros sobre economia política.

A diplomacia internacional vem debatendo a hipótese que me parece absurda de que o mundo se dividirá de novo em dois impérios, um comandando pelos Estados Unidos, de Donald Trump, e outro, similar ao soviético, por um acordo entre China e  Rússia.

Seria uma versão atualizada Conferência de Ialta, com que Roosevelt e Stalin, antes mesmo do fim da Segunda Guerra Mundial, dividiram o mundo entre as respectivas áreas de influência, no ocidente e no oriente.

Essa hipótese é impossível, a meu ver. Isso porque a história não regride.

Tanto na concepção dos idealistas (Hegel) quando dos materialistas (Marx), a história sempre avança como uma  síntese de conflitos radicalizados entre forças sociais oponentes que se esgotam.

Em termos práticos, Ialta só existiria de novo se surgissem as condições internacionais e nacionais que a tornaram possível.

Entretanto, o que existe no mundo, nesta altura do século, nada tem a ver com os anos de 1940.

Ao contrário, é a exaustão do modelo de Ialta.

Tanto o império americano quanto o império soviético surgiram como legados da Segunda Guerra Mundial.

Do lado americano, por conta da aliança bélica e política entre os países ocidentais e outros, ditos democráticos, contra as forças de Hitler e o eixo nazifascista.

Do lado oriental, pela liderança militar russa que reuniu em torno de si um círculo de países libertados das garras do ditador alemão, incorporando-os politicamente à esfera de influência da União Soviética.

São condições absolutamente singulares, que não se repetem hoje.

O que existe hoje é o voluntarismo de Trump, que, confiado no poderio militar e econômico dos Estados Unidos, presume que pode controlar o mundo.

Já os diplomatas internacionais, confusos diante das medidas contraditórias do presidente americano e querendo racionalizá-las com algo um pouco mais concreto,  recorrem ao modelo de Ialta para conciliar a “vontade de poder” de Trump com a realidade mundial atual.

Entretanto, como sugerem os materialistas, não é a ideia que controla a história, mas a história que controla a ideia.

A história atual vem sendo interpretada de forma muito mais realista por Xi Jiping e Vladimir Putin do que por Ronald Trump.

O conceito de ambos de “multilateralismo” como base da nova ordem mundial, partilhado também por Lula,  supera a concepção simplista do bravateiro presidente americano, que parece despreparado para enfrentar o mundo real.

O multilateralismo pressupõe a cooperação entre os países, não a coerção comercial imperial para atingir objetivos políticos.

Não é uma ideia vaga ou um produto do idealismo.

Existe hoje, objetivamente, no mundo real, principalmente depois  que foi criado o bloco do BRICS.

O BRICS, em si mesmo, é um obstáculo ao modelo de “dois impérios”.

Dele fazem parte países médios como Índia, Brasil, Irã, Arábia Saudita e África do Sul, que podem desequilibrar o modelo suposto de um duplo império.

Em Ialta, os Estados Unidos, principais vitoriosos na guerra pelo lado ocidental, e da qual saíram como a maior potência militar e econômica do mundo, não tinham rivais à vista na economia.

Tinham rivais ideológicos,  os soviéticos, comunistas e líderes do império concorrente.

Para conter a expansão política soviética na Europa, ancoraram no Plano Marshall parte dos países que participaram do lado vitorioso da guerra.

Pareciam generosos, mas defendiam os próprios interesses.

Os países pobres e em desenvolvimento foram praticamente esquecidos, entregues às agências da ONU como Banco Mundial e FMI, com parcos recursos, comparados ao Plano Marshall,  para financiar seu progresso econômico.

Os Estados Unidos os tornaram tributários do império  pela produção e exportações de matérias primas, sem acesso a políticas industriais de desenvolvimento.

O Brasil só escapou disso devido à política desenvolvimentista de Getúlio Vargas, que criou a infraestrutura econômica do País.

A situação atual é inteiramente diversa.

O BRICS é uma instituição econômica de cooperação entre economias emergentes, entre as quais a Índia, com um potencial de crescimento quase tão grande quanto o da China.

A Ásia, sob  influência chinesa, está crescendo a taxas explosivas.

 O Brasil, se tivesse uma política econômica melhor orientada nos campos fiscal e monetário, poderia ter um desempenho  econômico similar ou até melhor.

Tudo sem necessidade de tornar-se um tributário dos Estados Unidos.

Trump tem uma capacidade efetiva de tumultuar as relações internacionais pela retórica, mas, ao final, será contido pelas próprias reações internas a seus atos no campo comercial e econômico.

O mundo atual tornou-se efetivamente interdependente, ao contrário do período pós-Segunda Guerra.

Se ele forçar a mão, a economia americana fica sem mercado e sem matéria prima, conforme acaba de sinalizar a China, com o bloqueio a exportações de produtos estratégicos para qualquer país, inclusive a América do Norte.

Essa sinalização é importante, pois indica uma iniciativa que vai em direção oposta à política tarifária norte-americana.

Enquanto a Casa Branca quer limitar, pelo aumento de tarifas, importações chinesas,  Pequim, por sua própria conta, está limitando suas exportações para os Estados Unidos.

Por outro lado, a maioria dos países ameaçados com as restrições tarifárias de Trump, inclusive os da União Europeia,  já anunciaram que vão retaliar, se forem efetivadas.

Isso não tem nada a ver com o espírito de Ialta.

Em Ialta, fazia sentido dividir o mundo entre dois blocos, pois cada bloco já tinha seu patrono ideológico e seus objetivos econômicos convergentes – sendo que, do lado ocidental, os países pobres ou subdesenvolvidos haviam sido relegados à sua própria sorte e ao capitalismo selvagem e predatório norte-americano e europeu.

Já na realidade atual, o multilateralismo, baseado na cooperação econômica, prevalece tanto do lado econômico quanto político, o que é claramente reconhecido e defendido tanto por Xi quanto por Putin.

Essa infraestrutura não será destruída nem voltará para trás, já que isso não é do interesse material de nenhum país que tenha avançado no desenvolvimento industrial e precisa de mercado, equipamentos, tecnologia e de insumos de diferentes partes do mundo para continuar se desenvolvendo.

A eventual ruptura de cadeias produtivas envolvidas nesse processo, por ação de Trump, poderá ser reconstituída no âmbito de relações internas entre os próprios países que dele participam, com suas diferentes especializações, sem terem que ser nações tributárias dos Estados Unidos.

É possível que o tumulto provocado pela era Trump, a despeito de suas extravagantes fórmulas teatrais de governo, resulte num mundo melhor e mais cooperativo.

Para se adaptar a seu voluntarismo louco, irresponsável e contraditório, os países fora de sua órbita direta de poder só precisarão estabelecer relações consensuais entre si para explorar todas as possibilidades da interdependência, que veio ao mundo para ficar.

E que a sociedade norte-americana, inclinada ao isolacionismo fascista, fique com seu presidente, desvairado entregue aos arroubos do narcisismo radical!

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