Três semanas.
Três semanas desde que Trump voltou à Presidência e a reviravolta do mundo ganhou outra velocidade.
Eu vou tentar, nesta manhã de quinta, anotar algumas das minhas impressões sobre essa mudança. Impressões, claro, sempre são interpretações.
E as intepretações que lemos e vemos, por vezes, nada mais são do que Fernanda Torres numa tela, encenação de uma realidade (passada), mas não a realidade em si, um retrato de cachimbo na parede, sequer mapas.
Obscenários devem ser abordados com um misto de humor e rubor.
Com “fala séri…”edade.
Tomando posse, Trump tomou uma série de medidas, um número sem precedentes de Ordens Executivas.
Recorde?
Sim.
Mas de Reagan para cá, recorde em medidas nos primeiros 100 dias já fora o governo atribuído a Biden.
E este é um ponto importante: Trump faz todo um teatro de assinar em público essas medidas, ao contrário do invisível Joe Biden.
A primeira coisa a se entender nesse retorno de Trump é que não se trata mais do governo amador que tomou posse em 2017.
Não se trata mais de um governo de coalizão com a base tradicional dos republicanos, dominado no fundo por esta.
O governo Trump que entrou agora está ungido por uma maioria de voto popular, por uma vitória nos sete swing states, aquelas “Minas Gerais” da política americana que decidem a eleição em meio a um país polarizado.[MdMR1]
Para quem acompanhou a nova imprensa MAGA (qual seja, jornalistas que usam o X/Twitter de plataforma), nada dessas medidas surpreende.
Há coisas que certamente estão nas centenas de páginas do Projeto 2025, aquele “plano diabólico” para dominar o mundo que foi usado de fantasma pelo establishment jornalístico.
Centenas de páginas de qualquer plano de governo de direita serão muito parecidas com qualquer ação de um governo de direita, mesmo que este sendo um governo revolucionário.
Ter pessoas que participaram do mais recente governo de direita escrevendo um plano de governo de direita, idem.
Mas há uma clareza nesse governo Trump de que um dos inimigos mais significativos foi o inimigo interno, e a revogação do acesso de coisas em segredo para pessoas que foram de sua administração anterior, mais do que uma “vingança”, deve ser entendida como uma medida de segurança, como uma forma de negar poder a essa quinta coluna.
A velocidade e a ferocidade com que esse desmonte revolucionário está sendo conduzido é didática.
Há o DOGE, um conjunto de jovens tecnicamente talentosos operando como uma espécie de comitê revolucionário do partido, passando o pente fino nas organizações.
Eles não pertencem à história dessas organizações, eles não pertencem ao campo de conhecimento dessas organizações.
Disfarçados de comitê técnico eles são, de fato, um comitê político, alguém que está ali para executar um mandato político.
Qual mandato?
Expurgar as pessoas e práticas, as aristocracias técnicas encasteladas nessas repartições.
Eles foram eleitos para isso?
Meses que isso vem sendo falado em eventos públicos, nos podcasts ouvidos por milhões de eleitores de Trump[MdMR2] .
Se os establishments achavam que poderiam enrolar dessa vez como fizeram da outra, acho que não entenderam direito que a bala errou o alvo.
DOGE é uma ação partidária, fora do governo em si, fora do Partido Republicano, mas central ao MAGA (por mais que MAGA seja algo repleto de contradições).
Quais as duas revelações até agora desse exército vermelho de Leon Musk[MdMR3] ?
A primeira, o acesso às informações de desembolso do tesouro americano.
Frise-se, informações, pois o que parte da imprensa andou vendendo foi que eles passaram a controlar o Tesouro.
Se você, querida leitora, acha que coisas como nosso Orçamento Secreto são problemáticas, não tem ideia do que é uma lei nos EUA.
A quantidade de contrabando que passa em qualquer peça de legislação é de fazer corar as faces dos mais dedicados deputados do PL nesta terra do Pix.
Mas a segunda medida, a suspensão do USAID e um início de abertura sobre sua atuação, esta tem consequências muito mais importantes, inclusive para nós, pessoas de fora dos EUA.
Uma boa analogia do que é a USAID, da diferença entre o que a justifica e o que ela de fato é, são as operações de hedge.
Elas são ensinadas e defendidas como uma necessidade de proteger produtores de risco. Na prática, no entanto, essas são ninharia perto da quantidade de operações especulativas.
O USAID pode ajudar em coisas como vacinas para países pobres.
Mas não se iludam: o papel é – e sempre foi – executar elementos de poder e guerra híbrida onde não poderia haver uma atuação explícita da CIA.
A esquerda de fato sabe disso, até o Bukele sabe disso. Mas a imprensa americana e internacional não pode saber disso.
“É difícil fazer um homem entender algo quando seu salário depende de não entender isso”, como disse o escritor Upton Sinclair.
[MdMR4] Mas por vezes o salário de quem não entende não vem.
O fato é que há várias formas de você “apoiar” órgãos de imprensa, como contratar assinaturas caras.
Isso é alvo de fiscalização como contratação de publicidade?
Não sei.
Pegue-se o caso da Georgia, aquele país cuja população rejeitou o governo que a “Europa” e o regime Biden queriam.
A USAID despejou rios de dinheiro para produzir “democracia” no país.
Mesma coisa, por exemplo, Bangladesh, com a sutileza de um instituto do Partido Republicano estar promovendo uma pauta woke com (bem sucedidos) fins golpistas.
O quanto disso há no Brasil?
Minha desconfiança é que a direita MAGA vai se surpreender quando vir que, mais do que para agendas “de esquerda”, as ações pela “democracia” no Brasil devem ter sido mais intensas na década passada, nos movimentos que resultaram na derrubada do governo Dilma.
Deve ter mais Curitiba do que Posto 8.
Aliás, se há uma coisa que a direita MAGA não entende sobre América do Sul é que tanto o Trump da Shein (genial, queria ter bolado esse apelido) quanto Jair (e seus filhos) são o oposto de Trump e do projeto nacionalista MAGA: entreguistas, sem nenhuma devoção à moeda nacional, a favor da adesão a órgãos do mundo globalizado como a OCDE.
Mas na ressaca dessa marolinha, muita gente pelada da imprensa e do terceiro setor vai ser pega (a grande maioria sem ter consciência disso) trabalhando para esse aparato de política externa americana.
As coisas mais malucas do governo Trump, no entanto, estão nas fanfarronadas geográficas. Mais do que a mera palhaçada (ou delírio – escolha sua versão), elas sinalizam um abandono da unipolaridade, da Pax Americana, os EUA redefinindo suas áreas de segurança num mundo agora multipolar.
Nada mais insuspeito e alvissareiro do que o ex-senador pela Florida, Marco Rubio, falando isso.
Some-se as pressões bem-sucedidas sobre México, Canadá e Panamá, com os dois primeiros aumentando o contingente de segurança em suas fronteiras, e o Panamá reduzindo seu envolvimento econômico com a China.
Os três são interesses vitais americanos: suas duas fronteiras, o país que eles ajudaram a se libertar da Colômbia para fazer ali a conexão marítima entre suas duas costas.
Hoje, no entanto, é a relação entre Ásia e Costa Leste o principal, o que explica o interesse chinês de investir e o interesse americano de controlar.
Sendo mais sacana: o atual governo americano age com a consciência de que foram derrotados no Mar Vermelho, na Ucrânia, no Irã.
Militarmente derrotados, militarmente obsoletos.
Isso não será assumido de público, por mais que Leon Musk faça seus tweets a respeito.
Mas o redesenho do gasto militar americano de uma postura agressiva de controle mundial para uma postura defensiva (o iron dome que Trump quer fazer).
Isso mina muito da doutrina vigente, muitos dos interesses e carreiras apostadas dentro do establishment militar, intelectual, político.
Enquanto a continuidade do regime anterior apontava para empurrar o problema com a barriga, e os europeus continuam com essa ilusão, é muito provável que o governo Trump venha a abrir mais negociações impensáveis, como, por exemplo, com o Irã.
Não vou entrar neste artigo na discussão sobre os imigrantes ilegais.
Isso é uma discussão mais longa, que envolve coisas como Bukele oferecendo sua Sibéria particular.
Não vou entrar no abandono da Europa.
A isso retomo no final do mês, depois da eleição alemã daqui a duas semanas.
Não vou entrar na saída dos organismos, tratados, fóruns: vamos esperar para ver quem está pelado debaixo dessa marolinha.
Gaza?
Essa é uma discussão maluca demais.
Certamente o que está sendo proposto é limpeza étnica.
Um discurso muito peculiar de limpeza étnica que é a mistura do “humanitarismo” da proposta do regime democrata anterior com uma descarada proposta de gentrificação de Gaza, como se aquilo fosse um Porto Maravilha.
Mas certamente o que está sendo proposto não é entregar a área diretamente para os genocidas.
Aliás, entregar para os genocidas impossibilitaria de se fazer ali uma Riviera (ele queria dizer Las Vegas, mas aí seria descaramento de mais).
Sendo bastante cínico, um acordo com os principados árabes de construir essa Vegas ali, com os palestinos evacuados voltando como proletariado e pequena burguesia, seria um negócio com um potencial enorme.
Não há uma Vegas, uma Macau, no Mediterrâneo[MdMR5].
Mônaco é caro e exclusivo demais.
Mas creio que o tamanho do genocídio vai inviabilizar essa negociata.
Por que minha insistência em falar em genocídio?
Como bem observado neste tweet do Arnaud Bertrand, os números enunciados por Trump sugerem que os mortos estão na casa das centenas de milhares.
Por mais que o esforço de propaganda no Ocidente possa tentar mascarar isso, creio que o Sul Global não irá esquecer.
Lembro que quem em última instância paga a conta não é quem deve, mas os fiadores.