Dois caminhos:
escrever sobre a carta de Kakay, sobre o “processo do mensalão” de Bolsonaro e os 33 golpistas, sobre uma entrevista muito boa do Piero Leirner, sobre os futuros problemas de Chandão, o Chapolim colorado de nossa soberania, com a justiça americana, sobre como a história da dúzia recente de anos se constrói na minha cabeça; ou
escrever sobre o choque que acontece no mundo, as reviravoltas de uma ordem mundial sendo atropelada por The Beast dando voltas em Daytona com um avô e sua netinha?
Docinho sugere que eu tome o segundo caminho.
Razão?
Por mais que nas duas últimas semanas eu tenha tratado disso, coisas extremamente relevantes aconteceram neste intervalo de uma semana, coisas cuja dimensão talvez não tenhamos por aqui, nesse tranquilo canto do planeta, pois “aqui não tem terremoto, aqui não tem revolução”.
Dois momentos certamente entrarão para a história: um discurso, uma conversa.
A Conferência de Segurança de Munique é uma espécie de carnaval do campo de relações internacionais: um evento em fevereiro onde todos se sentam para conversar, onde as marchinhas de sempre são tocadas e novos axés são lançados.
Neste século, lá houve um momento extraordinário, o histórico discurso de Putin em 2007, que certamente estará discutido nos livros onde os jovens de daqui a duas décadas estudarão a história de nosso tempo (que estará contada de forma muito diferente da que se vê e lê nos jornais de hoje).
Acredito que a história registrará o discurso do vice-presidente americano no dia de São Valentim como da mesma importância.
Em termos de impacto imediato, certamente é maior do que foi o de Putin.
Com seu impressionante look de caipira metrossexual (qual delineador ele usa?), Vance anunciou o fim do relacionamento entre os EUA e a Europa.
Segundo Vance, o problema maior de segurança da Europa estaria dentro dela, na forma como ela sacrificou sua identidade em função do projeto ideológico (neo)liberal.
A ideia de que a democracia acontece dentro dos limites de um espaço consentido de ideias, que ele mesmo reconheceu como não só excluindo a “extrema”-direita, mas setores da esquerda (dias depois, CQD, a relatora especial das Nações Unidas para os territórios palestinos ocupados, Francesca Albanese, foi proibida de falar em Berlim, situação que toca até a questão de liberdade acadêmica), é contrária aos valores democráticos americanos.
Não que se pudesse esperar algo diferente disso.
Dois dias antes o ministro da Defesa americano já havia mandado uma real para o pessoal da OTAN.
Hegseth, assim como Vance, assim como a ex-deputada democrata que vai ser a pessoa responsável por coordenar as atividades de inteligência americanas, serviu as forças armadas durante a Guerra ao Terror.
]Não como um futuro general, membro do aparato de portas rotativas do Pentágono, mas como alguém que lutou e saiu.
Nesta quinta, a notícia estampada de que Hegseth está demandando cortes significativos no orçamento do Pentágono é um choque para muitos.
Um choque, a meu ver, porque as pessoas ainda não entenderam que há um processo revolucionário em curso nos EUA.
Dois artigos refletem bem isso, dois ótimos artigos.
Um do Branko Milanovic, um dos grandes economistas do campo de estudos de desenvolvimento e desigualdade.
O outro, do Scott Ritter, um expert em questões de desarmamento e segurança.
Milanovic lembra que a uma mudança revolucionária requer destruir com o aparato estatal anterior e construir um novo. Marx tinha clareza disso, Lenin também.
Por mais que o discurso MAGA seja de que tudo do outro lado é marxismo, na prática a tomada de poder deles é canonicamente marxista (não quanto ao telos de Marx, mas quanto ao processo).
Bannon se autoproclamou leninista em certo momento, para terror do establishment neoliberal que acabou conseguindo varrê-lo do governo Trump anterior.
Só que este é o governo de um Trump que aprendeu com o golpe, de um movimento por trás dele disposto a pôr por terra o aparato de estado que o sabotou entre 17 e 21.
O artigo do Ritter trata da questão pela qual, no fundo, Docinho me sugerir continuar neste tema. Ritter traz um entendimento de que o governo Trump está operando estrategicamente uma dominância de seu ciclo OODA sobre o de seus rivais.
Ele tem o domínio das ações, e não age em reação às ações dos outros.
O que eu teria a acrescentar?
Cometendo a mais vulgar das análises, num certo plano a revolução em curso nos EUA tem proletariado e pequena-burguesia como sua base populista.
O que implica que há uma clara, estrita e radical defesa dos direitos humanos de primeira geração.
A questão é: quem é defendido pelos entendimentos contemporâneos de direitos humanos?
O excluído, o marginal, o diverso.
Trabalhadores e pequenos patrões estão inseridos em seu balé de luta, de exercício de vida cotidiana.
A margem deles há um conjunto de pessoas e instituições, sejam de base privada religiosa, sejam públicas, que operam parte do acesso a recursos para esses excluídos.
Há as formas de ilegalidade e violência operadas por essas pessoas à margem do mundo do trabalho, formas de violência que se integram com o aparato burocrático de estado (e, nesse sentido, Milanovic não entende que, de fato, existe um deep state castiço operando nos EUA, uma permissividade de organizações como a CIA em relação ao tráfico de drogas, por exemplo).
Se você só vê pobres e direitos, você não vai entender essa revolução que acontece.
Num outro plano, há um conflito entre o mundo do capital criador de negócios de Venture Capital, gente como Thiel e Andreessen, como Musk; e o mundo do capital que cobra pedágios, seja Wall Street, com suas gigantes de investimento passivo, sejam as igrejas consolidadas de Big Tech cobrando seus dízimos e oficiando seus sacramentos, as big five Oracle, Bloomberg.
Essa briga será travada em lugares como a OpenAI.
Mas e a conversa que eu falei lá atrás?
Russos e americanos sentaram para conversar na Arábia Saudita.
Um novo redesenho do mundo vem, um redesenho que decorre do entendimento de que as capacidades militares americanas são pouco mais que ficcionais no momento.
De que a pouca supremacia que decorre do dólar não tem muito futuro pela frente.
Sairá daí um acordo definitivo de paz?
Talvez.
Mas talvez a crise de popularidade de Starmer e Macron, as consequências da eleição alemã deste domingo, a reação dos aparatos burocráticos e empresariais aos cortes feitos no Estado americano, talvez tudo isso possa se conjugar numa desesperada conflagração nos próximos meses.
Neste sentido, a revolução MAGA pode estar em seu momento 1789/fevereiro de 17.
A morte de Trump continuará sendo uma solução dos que acham que essa revolução pode ser revertida, e creio que ela será tentada em algum momento deste ano.