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Os Estados Unidos, com o protecionismo trumpista, tem leitura oculta, que não engana mais ninguém: o império renuncia à base central de sua economia política imperialista, desde Bretton Woods, em 1944, quando se fixa a nova divisão internacional do trabalho, dada pela hegemonia do dólar no cenário de economia guerra.
Essa base fundamental, ancorada na força do dólar, assenta-se na dominância do superávit financeiro imperial para cobrir déficits comerciais a fim de produzir deterioração nos termos de trocas em favor dos americanos, enquanto avança a dívida pública como instrumento financeiro de reprodução da acumulação capitalista.
Na prática, o superávit financeiro, decorrente da hegemonia do dólar, produz inflação baixa nos Estados Unidos, mas, ao mesmo tempo, promove a desindustrialização crônica americana, porque desvaloriza as moedas concorrentes, que ganham vantagens na disputa comercial.
O produto fabricado nos demais países fica mais competitivo e impede a industrialização sustentável nos Estados Unidos.
Os empregos de qualidade, que valorizam o valor-trabalho (mão de obra qualificada), impulsionam tecnologia e produtividade, graças à valorização do dólar proporcionada pelo superávit financeiro, que, também, garante senhoriagem(receita com juros) à moeda hegemônica.
JOGO DIALÉTICO DO SUPERÁVIT MONETÁRIO
O superávit financeiro, dialeticamente, determina o início da decadência tecnológica americana, ao mesmo tempo em que eleva a dívida pública, quanto mais ele se realiza, para garantir a inflação baixa nos Estados Unidos.
Tudo o mais decorre desse movimento monetário imperialista que garante a economia de guerra e a hegemonia do Estado Industrial Militar dos Estados Unidos.
Num primeiro momento, os Estados Unidos, no pós-guerra, com o superávit financeiro, garantido pelo dólar hegemônico, importam riqueza líquida do exterior, mediante importações baratas, compradas com moeda valorizada.
Financiava, com isso, o déficit em contas correntes, bancado pelo mundo subjugado império.
Num segundo momento, no entanto, as importações baratas, ao garantir, nos Estados Unidos, inflação e crédito baixo, produziram, simultaneamente, déficits comerciais, que representam dívida, de um lado, e desindustrialização, de outro.
Estruturalmente, o superávit financeiro virou desindustrialização americana e industrialização dos países concorrentes.
O avanço tecnológico nos Estados Unidos escalou na indústria de guerra, mas na produção de bens e serviços ficou mais em conta para os americanos importar produção dos concorrentes com moeda desvalorizada frente ao dólar valorizado.
O superávit financeiro que financiava a economia produziu, por tabela, a financeirização econômica global.
A reprodução ampliada da estrutura capitalista financeirizada bancada pelo superávit financeiro, impulsionado pela hegemonia monetária, deixou de se realizar na produção, para ser realizada na própria moeda, especulativamente.
TRANCO DE TRUMP SINALIZA CALOTE GLOBAL
Agora, o perigo de isso estourar aumenta com a decisão de Trump de tentar interromper esse jogo por meio do protecionismo.
Todos os países que realizam superávit comercial com os Estados Unidos, se não puderem mais exportar para os americanos, como alerta o historiador marxista Michel Hudson, perderão capacidade de pagar os empréstimos que tomam dos bancos americanos, para impulsionar suas indústrias, seu comércio e sua agricultura, para abastecer o mercado americano.
A garantia do pagamento é a receita do superávit comercial com os americanos.
Se ele deixa de ser realizado pelo protecionismo trumpista, como pagar as dívidas aos bancos?
Calote global à vista ou não?
O protecionismo torna a exportação para os Estados Unidos mais cara e eleva os preços e a inflação americana.
Se o superávit financeiro é trocado pela estratégia de produzir superávit comercial, como quer Trump, é preciso, então, desvalorizar o dólar para poder exportar.
A força do dólar dada pelo superávit financeiro deixa de existir.
Elimina-se, estruturalmente, com o protecionismo, a vantagem garantida pelo dólar hegemônico de produzir superávit financeiro, para garantir inflação baixa nos Estados Unidos.
A interrupção desse jogo pode produzir calote global, que interrompe o circuito financeiro dolarizado, e detonar hiperinflação.
Toda a arrogância de Donald Trump, especialmente, em política externa, ao mesmo tempo em que faz cruzada interna fascista para desestruturar as bases do governo imperialista, desarticulando suas agências, dando a entender que reestrutura o mundo, esconde o fato óbvio: o colapso da economia política do império.
O JOGO COM A RÚSSIA
Trump quer acelerar acordo com a Rússia para desligar-se da Europa, economicamente falida, que só dá despesa ao império com a Otan, cuja missão fracassou na Ucrânia: derrubar o governo Putin, utilizando como escudo o fascista Zelensky.
O ex-presidente democrata Joe Biden vendeu a falsa verdade de que a Europa era aliada fundamental dos Estados Unidos para, através da Otan, onde estão umbilicalmente ligados, derrotar a Rússia.
Não deu certo.
Para os Estados Unidos foi, relativamente, vantajoso, porque vendeu muito armamento para a Otan despejar contra a Rússia, a partir da Ucrânia, mas, para a Europa, significou desastre: destruiu a economia e a social democracia europeia e, ao mesmo tempo, ressuscitou Hitler, a ultradireita, como mostra o resultado das eleições na Alemanha.
Trump corta as asas da elite europeia, que estava apoiando a guerra contra a Rússia com dinheiro americano, e passa a fazer o jogo de Putin: inviabilizar a entrada da Ucrânia na Otan-União Europeia.
Quem vai pagar a indenização de 500 bilhões de dólares aos Estados Unidos por ter financiado a guerra da Otan na Ucrânia?
A Ucrânia falida?
A Europa?
Questão em aberto.
Sem o apoio do dólar, que bancava a guerra contra a Ucrânia, a Europa se vê impossibilitada de seguir com o seu projeto de subjugar a Rússia.
Cortada a despesa financeira da Europa, que era sustentada pelo superávit financeiro realizado pelo dólar hegemônico, Trump, diante da impossibilidade de continuar ad infinitum, com essa hegemonia monetária, reverte a economia política imperialista por meio do protecionismo comercial.
Puro cavalo de pau imperialista.
NOVA DIVISÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO
Vai dar certo?
Se o império renunciar ao superávit financeiro, porque valoriza a moeda dos concorrentes que enfraquece, estruturalmente, a economia americana, precisará disputar com a China a hegemonia comercial, diante da qual já perdeu, faz algum tempo, competitividade e produtividade.
O acordo Trump-Putin – sem participação da Europa nem da Ucrânia – marca, portanto, o início de uma nova divisão internacional do trabalho, da qual, por enquanto, ainda não participa a China.
O ponto alto desse acordo bipolar deixa claro que o dólar começa a ceder sua hegemonia com o estresse da economia política sustentada no superávit financeiro que produziu a financeirização da economia global.
O protecionismo trumpista, ao sinalizar inflação, no cenário da mudança da economia política imperialista, deixa em suspense a sustentabilidade da própria financeirização econômica, exposta, a partir de agora, ao perigo de hiperinflação.