Era possível prever, com razoável antecedência, e de forma a possibilitar que se tomassem iniciativas necessárias para enfrentá-la, a crise de alta de preços dos alimentos pela qual estamos passando atualmente. É que o Governo, talvez reagindo ao descuido de seu antecessor Bolsonaro com a questão alimentar, concentrou-se em adotar medidas para reforçar e elevar a demanda de comida em dinheiro através de programas sociais, sem cuidar muito do lado da oferta física dela, ou seja, da produção.
De fato, antecipei o risco da crise alimentar em março de 2023, com o artigo “Projeto Nacional Agroindustrial”, divulgado amplamente na internet, sugerindo um programa para atacar o problema do lado da oferta, para contrabalançar as inevitáveis medidas sociais que acreditava que Lula iria tomar do lado da demanda monetária, dada a forte inclinação do PT para políticas assistencialistas. Republico adiante o artigo, na íntegra, com as estatísticas daquele ano, esperando que, agora, o Governo o leve a sério (embora já não haja tempo para que faça alguma coisa):
“O Brasil tem hoje, 2022, segundo estatísticas confiáveis, cerca de 33 milhões de brasileiras e brasileiros em situação de fome. Outros 65 milhões estão em situação de insegurança alimentar, ou seja, não sabem o que vão comer no dia seguinte. É uma tragédia social. O programa Bolsa Família, do governo federal, e outros programas estaduais procuram enfrentar esse problema dramático mediante iniciativas de assistência social. Porém, trata-se de uma solução insuficiente, do ponto de vista de sua sustentabilidade.
Quando se dá dinheiro a uma parte vulnerável da população, para que compre comida, resolve-se a questão da fome pelo lado da demanda alimentar em dinheiro. Contudo, não se resolve, necessariamente, pelo lado da oferta dos produtos. Para que haja oferta a fim de contrabalançar a demanda, é preciso aumentar a produção de alimentos. E isso é tarefa para a agricultura alimentar, sobretudo para a pequena e média agricultura familiar, que responde por 2/3 do consumo de alimentos no país.
Além disso, a pressão do consumo sem contrapartida de produção pressiona o aumento do custo de vida para todos, ricos e pobres. É que a inflação é um fenômeno de mercado, não necessariamente um fenômeno monetário-fiscal. É um sinal de que a oferta no mercado está sendo insuficiente para atender à demanda global, ou, ao contrário, que a demanda, se muito inferior à oferta, está desestimulando o investimento, a produção e a geração de empregos.
Por outro lado, a situação climática no Brasil e no mundo coloca o país na linha de frente dos esforços, em todos os níveis, governamentais e privados, no sentido da redução da emissão de CO2 e de sua principal consequência, o efeito estufa. Nesse sentido, a rede de APLs (Arranjos Produtivos Locais) que sugiro que seja expandida de forma acelerada no País poderá ser um instrumento importante para reduzir o desmatamento e recuperar áreas degradadas, favorecendo sua utilização produtiva e reduzindo o efeito estufa.
Diante desse quadro, é um desafio para os governantes enfrentar o problema alimentar no Brasil, assim como, em igual medida, o problema ambiental. A última campanha eleitoral foi realizada sob a promessa, pela maioria dos candidatos a cargos executivos, de acabar com a fome do povo, combater o desmatamento e recuperar áreas rurais degradadas. Se isso, sobretudo quanto à promessa alimentar, não acontecer em prazo razoável, será uma grande frustração para a população, e um risco para a estabilidade social e política do país.
O programa Agroindustrial sugerido visa ao aumento acelerado da produção alimentar ao mesmo tempo em que contribui para o enfrentamento da questão ambiental. Acredita-se que, com a construção, modernização tecnológica e operação de um número suficiente de APLs, a partir dos mais de 800 que existem hoje, segundo o Ministério da Fazenda, será possível, em prazo razoável, acabar com a fome no território brasileiro e ajudar na redução de emissões de CO2 nas florestas nacionais.
Em cada APL, pode-se construir centros industriais onde seja processada a maioria dos produtos nele produzidos, de forma a se concentrar em cadeia, num mesmo lugar, cada produto e seus derivados (Por ex.: da produção de leite pode-se ter como subprodutos o queijo, iogurte, a manteiga etc, sem custo de transporte ou sem necessidade de intermediários que encarecem o produto final devido aos custos logísticos.)
O programa que defendo indica a forma de organização do APL, sua estrutura de governança e os aportes de serviços públicos que lhe devem ser garantidos a fim de que se torne um instrumento funcional de produção agrícola para o mercado interno e de exportações, assim como uma forma de proteção do meio-ambiente, reservando-se margem suficiente nos preços para a assistência social garantida pelos governos. Outra característica é o envolvimento, nele, de toda a comunidade onde está instalado.
Naturalmente, serão necessários financiamentos pelos sistemas financeiros públicos e privados, a taxas moderadas de juros e a prazos longos, assim como subsídios e incentivos, especialmente financeiros. Temos disponibilidade desses recursos no Brasil – por exemplo, no Plano Safra, que, embora voltado também para a produção familiar, está muito concentrado no financiamento ao Agro (commodities), em detrimento da agricultura alimentar. Espera-se que isso seja invertido, já para a próxima safra.
O projeto propõe uma grande modernização tecnológica na proteção ambiental e na produção alimentar, através de uso intensivo da internet no manejo de florestas, e na cadeia de produção e na comercialização agrícola. Com isso, o custo de todo o sistema será substancialmente reduzido, aumentando sua eficiência e eliminando-se os intermediários. Isso favorecerá, de forma simultânea, o consumidor com bens mais baratos, e o produtor rural com o aumento do lucro.
A realização do programa dependerá de uma articulação das diferentes esferas de governo (federal, estadual e municipais), por cima de eventuais diferenças político-partidárias. Dependerá também do efetivo engajamento do setor privado nas comunidades onde se construirão ou se desenvolverão os Arranjos, cujas atividades não se limitarão à questão produtiva de alimentos. Eles tratarão também do desenvolvimento tecnológico, da saúde da comunidade, da educação, do saneamento básico, da logística, da cultura, da preservação dos costumes locais, além da proteção ao meio ambiente.
Para a operação da rede de APLs poderão ser utilizadas as tecnologias blockchain e de tokens, que possibilitarão aos produtores, individualmente, acesso ao resultado físico de cada etapa da produção, em qualquer momento do processo produtivo, e ao final dele. Com isso, eles terão possibilidade de retirar seus resultados financeiros em duas oportunidades: no fim de cada etapa e ao fim de todo o processo.
O APL será, portanto, um instrumento para o desenvolvimento social das comunidades onde se encontra. A ideia é que seja administrado como uma sociedade anônima, e não como uma simples cooperativa tradicional. Deverá indicar uma Diretoria Executiva, a qual tratará, junto aos órgãos governamentais e a instâncias da Sociedade Civil, de serviços oficiais e de iniciativas voluntárias que lhes deverão ser prestados pelos governos e pela comunidade, destacando-se como meio central de desenvolvimento local e nacional sustentável.”
Em síntese, os programas sociais do Governo Lula, bancados apenas por dinheiro e não sustentados por produção, deixam de fora os que são obrigados a se afastar do mercado por conta da alta da demanda e do custo de vida. Somente o aumento da oferta, com a aplicação, por exemplo, do programa sugerido de difusão de APLs voltados especificamente para isso, como sugeri em 2023, poderia assegurar estabilidade dinâmica do custo de vida, reduzindo sua contribuição para a inflação.