O filósofo e estudioso do fascismo Jason Stanley, em sua obra “Como funciona o fascismo: A política do “Nós e Eles” (2018), nos alerta para a forma como regimes autoritários e movimentos fascistas constroem narrativas polarizadoras que dividem a sociedade, fragilizam instituições democráticas e mobilizam ressentimentos difusos por meio de códigos de linguagem velados, os chamados “dog whistles“, ou “apitos de cachorro”, em tradução literal.
Tais discursos, inaudíveis para muitos, são perfeitamente compreendidos por determinados grupos, reforçando preconceitos, incentivando o ódio e legitimando práticas violentas.
Segundo matéria “‘Eu quero mais que o Lula morra’, diz deputado do PL em reunião da Câmara”, publicada pela Veja, durante uma sessão da Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados, realizada em 8 de abril de 2025, o deputado federal Gilvan da Federal (PL-ES) proferiu declarações de extrema gravidade contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
No contexto do debate sobre o Projeto de Lei 4.012/2023, que propõe desarmar os agentes de segurança pessoal do presidente e de seus ministros, Gilvan afirmou: “Eu quero mais que o Lula morra.
Quero que ele vá para o quinto dos infernos, é um direito meu. Não vou dizer que eu vou matar, cara, mas eu quero que ele morra, que vá para o quinto dos infernos.
Nem o diabo quer o Lula, por isso que ele está vivendo aí.
Superou o câncer.
Tomara que ele tenha uma taquicardia, porque nem o diabo quer a desgraça desse presidente que está afundando o país.
Quero mais que ele morra mesmo.”.
Assim, ao desejar abertamente a morte do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, Gilvan demonstrou tranquilidade e certeza de impunidade.
Mesmo diante do risco de ultrapassar todos os limites da liberdade de expressão parlamentar, não hesitou em adentrar o terreno da incitação à violência política, um dos sintomas mais perigosos da degradação institucional e da radicalização do discurso público.
Não se trata de uma mera opinião polêmica, mas da manifestação explícita de um desejo de morte contra o chefe de Estado eleito democraticamente por mais de 60 milhões de brasileiros.
Isso é justamente o que Jason Stanley denuncia em sua obra, quando aponta que regimes e movimentos autoritários recorrem à exaltação da violência e à construção de inimigos internos como forma de mobilizar seus apoiadores e corroer os pilares do debate democrático.
Mas por que o fascismo se alimenta da violência, da divisão social e de estratégias discursivas ambíguas?
A resposta talvez resida na essência de sua proposta política: o fascismo precisa de inimigos para sobreviver.
Para os seus representantes, a paz social, a diversidade e o dissenso democrático representam ameaças ao projeto autoritário de poder.
O fascismo não tolera o pluralismo.
Ao contrário, sustenta-se sobre a construção de um inimigo interno, seja ele o imigrante, o professor, a imprensa, o artista, o cientista ou o político adversário, a partir da retórica da pureza moral, da ordem e da redenção nacional.
A política do “nós contra eles”, componente central do discurso fascista, não apenas polariza.
Ela radicaliza.
De um lado, os supostos “cidadãos de bem”, patriotas, honestos, ordeiros.
De outro, os “inimigos da nação”, subversivos, comunistas, corruptos.
Essa narrativa simplista anestesia a razão e acende paixões primitivas.
Reduz a complexidade do debate político a uma luta moral dicotômica e alimenta o desejo por soluções autoritárias.
É nesse terreno fértil que germina a violência simbólica e, não raro, a física: ataques a jornalistas, ameaças a professores, perseguições a opositores e assassinatos motivados por ódio político.
Nesse contexto, o apito de cachorro cumpre um papel crucial. Permite que os representantes políticos da extrema direita neguem sua responsabilidade, ao mesmo tempo em que incentivam seus apoiadores mais radicais com frases ambíguas ou supostamente metafóricas.
No entanto, a retórica de Gilvan da Federal rompeu com qualquer ambiguidade.
Ao afirmar no plenário da Câmara dos Deputados: “Eu quero mais que o Lula morra.
Quero que ele vá para o quinto dos infernos…”, o deputado não apenas incitou o ódio, mas ofereceu, em rede nacional, uma possível autorização simbólica para a violência política.
Ainda que alegue estar apenas exercendo o “direito de opinar”, seu discurso ecoa como um apelo críptico, mas eficaz, para ações de seguidores radicalizados.
A violência torna-se, assim, não apenas esperada, mas celebrada, pois se disfarça de opinião ou desabafo, quando, na prática, pode funcionar como uma engrenagem do fascismo em ação.
O Brasil já viveu os horrores de um regime autoritário, com censura, tortura e perseguição política.
Repetir esse ciclo é não apenas um erro histórico, mas uma tragédia anunciada.
A recente fala de um deputado federal desejando abertamente a morte do presidente da República não é um episódio isolado.
Trata-se de sintoma de um ambiente político contaminado pela lógica fascista, onde o inimigo deve ser eliminado e a violência se transforma em método.
O fascismo contemporâneo, embora ainda cogite o uso de fardas e tanques, não se limita mais a eles.
Ele se disfarça com símbolos patrióticos, invoca o nome de Deus e se espalha pelas redes sociais por meio de memes e mensagens cifradas que alimentam o ódio.
A democracia brasileira precisa compreender que sua sobrevivência exige ações firmes e imediatas, capazes de conter a escalada do discurso de ódio que arregimenta a violência política, responsabilizar seus propagadores e reconstruir com urgência as bases do convívio civilizado.
Somente com responsabilidade institucional será possível impedir que o desejo de morte de adversários se normalize como discurso político aceitável e passe a incitar, de forma cada vez mais explícita, a violência perpetrada por extremistas.
É preciso agir antes que o Brasil volte a trilhar os caminhos sombrios que já marcaram sua história recente.
Só assim nós, brasileiros, poderemos reafirmar, com verdade e dignidade: a vida presta.