Cadastre-se Grátis

Receba nossos conteúdos e eventos por e-mail.

O gosto pela familiaridade do desconhecido: travessias de Catalina

Luiz Henrique Lima Faria – Professor do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES) e Editor-Chefe da Revista Interdisciplinar de Pesquisas Aplicadas (RINTERPAP)

Mais Lidos

Ontem, assisti a uma palestra aberta ao público no campus em que trabalho.

O tema integrava o escopo da Internacionalização na Educação, pauta bastante relevante para a realidade educacional brasileira contemporânea.

Esperei, confesso, por mais uma sequência enfadonha de explicações sobre normas para intercâmbio e conselhos genéricos sobre a vida no exterior.

No entanto, o que se desdobrou diante de mim subverteu todos os formatos de narrativa que eu poderia antecipar.

Catalina, uma jovem estudante romena de pós-graduação, assumiu o espaço com uma leveza despretensiosa.

Falava um idioma híbrido, uma amálgama de romeno, italiano, francês, espanhol e português, tão inesperada quanto perfeitamente compreensível.

Não era uma exibição de fluência, mas a expressão viva de sua travessia.

Seu modo de falar nos alcançava não apenas pelo discurso, mas por uma via anterior à linguagem: a de uma escuta afetiva de latinismo ancestral.

Com o amparo de imagens em slides cuidadosamente preparados, construiu um memorial de sensibilidades da travessia.

Em vez de tratar do objeto de sua pesquisa ou de apresentar as engrenagens formais da mobilidade acadêmica, compartilhou conosco fragmentos de sua própria história: a graduação em Contabilidade na Romênia, o mestrado em Ciências Agrárias na Itália e o momento atual de estudos vividos em terras brasileiras.

Mais do que um itinerário de deslocamentos, o que apresentou foi uma geografia de afetos. Cada lugar por onde passou e cada pessoa com quem conviveu parecia ter deixado marcas não apenas em sua biografia, mas no modo como passou a ver e a sentir o mundo.

Em meio à narrativa, emergiu uma palavra que me marcou: “professoreza”.

Foi assim que Catalina se referiu à sua professora de mestrado.

Um quase neologismo doce, como se Guimarães Rosa, que nos falou tão profundamente das veredas do grande sertão, soprasse ao seu ouvido e também ao nosso.

Derivada de professoressa, o termo italiano para professora, a palavra ganhava, naquele contexto, uma inflexão afetiva, como quem molda a língua com a memória do coração.

“Professoreza” não era apenas mestra, mas figura de impulso à travessia, alguém que orienta com afeto e ensina que o saber é também pé na estrada.

Foi essa mesma “professoreza” que lhe contou, pela primeira vez, sobre as sensações da Mata Atlântica.

A floresta, com seus cheiros, texturas, umidade e temperatura, passou a habitar o tema que acompanhava sua travessia pelas veredas do grande mundo, onde se aprende com o outro e com a escuta.

Ela parecia intuir, como quem foi iniciada por essa mestra afetuosa, que “o correr da vida embrulha tudo.

A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta.

O que ela quer da gente é coragem.

” Só alguém que vive a educação como uma experiência transformadora radical poderia trazer para aquele discurso um vocábulo como “professoreza”, entre o lembrado e o adaptado, entre o afeto e a cognição intuitiva de quem busca se fazer entender.

Enquanto assistia àquela sequência sensível de impressões bem apresentadas, pensei no quanto nossas instituições de ensino precisam de mais momentos como aquele.

Em tempos em que a xenofobia se espalha como praga para uns e se consolida como discurso legitimado para outros, e em que o narcisismo é frequentemente confundido com autenticidade, Catalina apontava com firmeza para a direção oposta: a da entrega, da coragem, do desapego, da vontade sincera de partilhar.

Durante todo o tempo, a palestrante não buscava aplauso nem convencimento.

Era pura presença sincera, uma lembrança viva de que a hospitalidade talvez seja uma das formas mais profundas de educar.

E talvez tenha sido justamente por isso que, entre um sorriso tímido e um olhar brilhante, nos revelou que foi no Brasil que encontrou o amor de sua vida.

Como se, depois de tantas travessias, no lugar mais improvável, tivesse encontrado o seu alguém de destino.

Saí do auditório em silêncio, levando comigo uma sensação boa por recordar que o conhecimento só adquire sentido quando é acompanhado de humanidade.

Catalina nos lembrou, numa noite inesperada, que internacionalizar-se é mais do que cruzar fronteiras geográficas.

É atravessar o outro com desprendimento, é permitir-se ser afetado pelo que, à primeira vista, parece estranho, até que se revele familiar.

Artigos Relacionados

Comentários Sobre Conjuntura Internacional, por Marcelo Zero

Essequibo i. Dizer que a questão de Essequibo é uma agenda de Maduro ou do chavismo seria a mesma coisa que afirmar que a questão...

Manifesto Paraíso Brasil

Paraíso Brasil é movimento coletivo, vivencial e de conhecimento. Se refere à experiência de cada pessoa no Brasil, e à coletividade desta experiência. A...

O Paradoxo do Governo Lula: Indicadores Econômicos e Sociais Relevantes, mas Não Consegue Comunicar Isso ao Povo

O prefeito do Recife, João Campos, reconhecido pela excelência no trabalho de comunicação do seu governo, em entrevista ao programa Roda Viva (ver vídeo),...

LEAVE A REPLY

Please enter your comment!
Please enter your name here

Em Alta!

Colunistas