Original em: https://www.hojepr.com/coluna-gennaro-trotando/
Anos 20.
As brumas enevoadas das manhãs em Santa Felicidade, até o sol surgir, propiciam gotículas de sereno nas folhagens e legumes.
Dona Ermínia os colhe, em sua horta, no quintal de seu enorme casone.
Colhidos, os coloca em ordem na carrozzeria de seu carrozon e irá com seus cavalos trotando, desde o bairro até ao Centro de Curitiba para os comercializar.
Semanas, meses e anos a fio cumprindo seu ritual de agricultora familiar.
Vendendo os produtos de sua horta na Feira Livre do Largo da Ordem.
Os transportando com seus cavalos em trotes sincronizados, na carroça até ao Centro Histórico.
Viúva e já com os filhos crescidos, era esta sua fonte de renda.
Comercializar sua horta e pomares.
Os agricultores familiares são desde sempre maravilhosos e cumprem um papel comercial mas, sobretudo. social, quase santificado.
A descendência e religiosidade italiana de Dona Ermínia era conhecida por todos.
Naquele dia estaria no Largo da Ordem.
Próxima ao Bebedouro.
Com seus cavalos e charrete luxuosa para um motivo que não seria venda de hortaliças. Além dela, transportava seu filho Endrigo e sua namorada Mariana, a Polaca.
Estariam os três dentro da Igreja da Ordem.
A italiana das hortaliças conversava com o pároco.
No entanto, do lado de fora, próximo ao Bebedouro, seus dois equinos, os atléticos e musculosos cavalos Pardinha e Baio, conversavam entre si intensamente.
Diálogo de equinos sofridos, nem sempre é bom de se ouvir.
Há reclamações contra os humanos.
Pardinha: – Ufa!
Ainda bem que paramos, está doendo minha pata dianteira esquerda.
Tá meio frouxa minha ferradura.
Pardinha a égua continua: – A véia italiana não me leva ao ferreiro faz tempo.
Baio (o cavalo): – A nossa dona, essa véia italiana, é muito pão dura mesmo!
É muquirana demais e não me levou na selaria pra trocar os arreios.
Estão roçando as minhas costas e me dando coceiras.
Como é que vou me coçar com esses arreios no lombo e na boca?
Vou tentar abanando o rabo, mas não consigo.
Pardinha: – Éhhh….outro dia estalou o chicote nas minhas costas!
Me deu um pito!
Nem precisava fazer isto.
Você lembra? Foi lá naquela descida da estrada de macadame.
No riozinho da encruzilhada, quase quebrou um eixo da carroça.
Levei um susto e quase acertamos aquele Ford Bigode do Seo Bordin.
Lembra Baio?
Ela não precisava chicotear a gente!
Já sabemos o caminho.
Até a hora de pararmos. Vamos sempre trotando devagarinho.
Baio: – Pardinha , esqueça!
Essa vida de cavalo de carroça é mesmo assim.
A gente vive no cabresto!
Esqueça, não vamos sair desta facilmente!
Venha beber a água aqui do bebedouro.
Tá limpinha. Não tem cocô de passarinho.
Nem sapo.
Pardinha: – Beber água eu vou …mas esquecer eu não esqueço!
Você Baio, ontem estava dando em cima das outras éguas lá do estábulo do vizinho.
Jogando seu charme para as outra éguas.
Pensa que eu não vejo, seu sem vergonha!
Não esqueci aquela vez que tem vi lá no pasto, com aquela égua branquela pintada, lá no pasto do Seo Peruzzo.
Baio: – OOOh minha querida! Você é a única eguinha linda da minha vida!
Nem lembro disso mais.
Você, Pardinha, é a única da minha vida!
Meu amor!.
Pardinha: – Tá bom Baio. Faiz di conta qui eu acredito!
Ah!
Outra coisa!
Baio não me envergonhe hoje que estamos com essa charrete luxuosa.
Não faça cocô aqui no chão de pedras do Largo da Ordem!!!
Baio: – Pardinha querida, só fiz uma vez e foi no mês passado.
Cocô de cavalo é só grama verde concentrada! Seca logo.
Vem o vento ou a chuva e dissolve. Logo seca, vira pó.
Difícil é cocô de políticos.
Suas cagadas duram anos.
Grudam na gente.
E não limpam fácil.
Pardinha: Ei vou falar baixinho.
Baio, não conta pra ninguém, mas eu vi e ouvi o filho da Dona Ermínia e essa filha do vizinho, aquele polaco bravo, que fuma cachimbo, gemendo e gritando lá no estábulo dos fundos, naquela baia próxima ao terreiro, aquela que tem palha de milho e serragem no chão.
Eu estava pastando e comendo grama ali perto e os vi saindo do estábulo e ajeitando as roupas. A moça estava arrumando a saia.
Toda suada.
Rosto vermelho e o cabelo cheio de palha.
O rapazote, esse aqui, filho da Dona Ermínia, nem conseguia calçar as botas.
Parecia, meio bambo das pernas.
A moça é meia grandona. Sei não se esse italianinho vai aguentar a Polaca.
Terá que comer muito spaghetti e polenta com asinha de frango.
E não foi a primeira vez que vi os dois lá nos estábulos, cafungando e gemendo!
E saindo com as roupas cheias de serragem e palha de milho.
Fica de bico calado Baio!
Você sabe, cavalo véio não mostra os dentes!
Baio: – Pardinha, Cavalo Véio é seu finado pai que já morreu!
Você tá muito fofoqueira, Pardinha!
Deixa a vida dos outros pra lá. Você parece aquela égua, minha tia do Parolin.
Melhor você ficar quieta!
E abana mais seu rabinho que tá juntando mosquito por aqui.
Pardinha: Baio você tá muito mal criado!
Nem sei por que fiquei com você todos esses anos.
Lá no estábulo tinha garanhão muito melhor, mais bonito!
Baio suspira e quase relincha com ciúmes da égua Pardinha.
Na porta da Igreja da Ordem emergem Dona Ermínia, o filho e sua namorada.
Sim, parece que agora marcaram o casamento de ambos.
Sorriem felizes.
O Pároco faz o sinal de Benção e todos sobem na charrete.
Estalam novas chicotadas sobre o lombo de Pardinha e Baio.
Que se entreolham, ofendidos e calados.
Entendem que o casamento marcado é um alívio e também uma preocupação para Dona Ermínia, que com raiva chicoteia os cavalos.
Seguem para o bairro de Santa Felicidade.
Trotando.
Na charrete os três sorridentes.
No alto São Francisco, defronte a Igreja das Mercês benzeram-se.
Próximo aos grandes reservatórios de água param, para dar água aos cavalos.
No entroncamento das estradas refrescam-se sob coloridas paineiras em flor.
Seguem rumo ao destino.
Subidas e descidas pela estrada de macadame, com os cavalos suarentos.
Em trotes leves puxando a charrete.
Chegam ao destino.
É um Casone Veneto, com hortas, pomares, estábulos, forno de pães e rodeado de centenárias araucárias.
O fogão a lenha está aceso e a fumaça é dissolvida em espirais pela chaminé.
Dona Ermínia, filho e noiva apeiam.
Adentram sua casa.
Irão divulgar a novidade casamenteira aos vizinhos.
Entre a italianada será a fofoca do mês.
Horas depois, cansados, recuperando-se, nos estábulos de Santa Felicidade, o casal de equinos, Pardinha e Baio, dialogam.
Pardinha: – Não aguento mais essa vida de puxar carroças, Baio.
Baio: – Eu também tô cansado dessa vida, Pardinha.
Nossa Dona não é má pessoa, mas é muito pão dura.
Faz tempo que não tem cevada, pouco milho pra nós.
Arreios e ferraduras gastos.
Pardinha: – Baio, você lembra quando fomos pela Estrada do Cerne à São Luis do Purunã?
Buscar, de carroça, aquela montoeira de milho verde pra Dona Ermínia fazer polenta!?
Foi cansativa a viagem, mas eu vi muita coisa boa por lá.
Apesar do frio.
Baio: – Sim eu lembro! Vimos muitos cavalos livres e soltos por lá nos campos gerais. Pareciam felizes. São os cavalos Criolos.
Pardinha: – Então tá combinado!
A próxima vez que estivermos soltos no pasto aqui em Santa Felicidades vamos fugir!
Sair a galope pra Estrada do Cerne e depois vida livre nas estepes de São Luis do Purunã. Ooobaaa.
Vamos fugir! Lá tem pasto bom.
Água de nascente. E ninguém pra nos chicotear!
Baio: – Os humanos sabem que a gente conversa entre nós, Pardinha?
Pardinha: – O pessoal lá no estábulo, tem dúvidas!