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Um Cair de Tarde, por Paulo Moreira Franco

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Paulo Moreira
Paulo Moreira
Economista aposentado do BNDES

“e, quando eu executar sobre eles a minha vingança, saberão que eu sou o Senhor”

(Ezequiel 25, 16)

Páscoa!

O pecado da gula sendo apregoado, praticado mesmo por pessoas que se abstém de comer mamíferos e aves. Na verdade, nem só isso: há que lembrar que, do ponto de vista canônico, capivara é peixe.

As restrições, o que se elege como erro ou tabu, cada vez menos consensual, mais confuso. Mas não serei coelho a trazer easter eggs nas palavras que virão abaixo.

E perdoe o texto ser tão engomado, mas não é um texto a ser encontrado em qualquer brechó.

Em si, o Corruptor nunca praticou um crime.

Sequer ordenou que alguém o fizesse.

Conhecedor da natureza humana, com sua predisposição de Opositor, o Corruptor tentava.

Conhecia os dados, as mesas, e no duplo sentido dessas palavras, o viés por trás dos olhos de cada pessoa a quem uma proposta era feita, fosse ela um conselho, uma oportunidade, uma liberação.

E crimes, muitos crimes saíram de suas palavras, muitas desgraças e mortes.

Nem sempre havia ganho do Corruptor, mas não eram dinheiro e prestígio suas motivações.

Tinha bastante dos dois quando sua consciência de Corruptor rompeu um dia, lendo uma notícia de jornal, sabendo o quanto ele que não estava ali era autor daquele pedaço de obituário.

Véu rasgado, a inocência das demais pessoas não mais havia.

Inocência passara a ser uma ilusão sobre mitos como livre arbítrio, força de vontade, consciência de classe, seja lá qual lenda que a pessoa a ser acionada na sua frente acreditasse.

O Corruptor era poliglota do desejo, entendendo as diferentes línguas deste, se expressando nelas sem nenhuma ser sua língua mãe.

O Corruptor era imperturbável em sua ação, como aqueles que leram o Gita (Oppenheimer, Himmler, este que lhe escreve, seres de um Ocidente do indivíduo, onde a clareza do Dharma das castas não existe) costumam ser, capaz de olhar qualquer situação sob diferentes ângulos.

Mas sem se afetar por afetos, sem feitos outros que não o fato de que despertar (na maioria das vezes, frise-se bem, meramente acelerar) os erros era sua natureza, seu Dharma.

O Justiceiro carregava o peso (e o alívio) de um monte de interrupções.

Crimes que ele trouxe a público, crimes que escaparam do público, mas ele, com suas próprias mãos a Justiça executou, sob mandato das arcaicas leis que antes de Ilustração regeram os homens.

Raras vezes seus atos de justiça foram publicamente entendidos como tal: muitas vezes pareceu algo banal, casual, algum acidente ou assalto malsucedido.

Aliás, o Justiceiro só era possível enquanto tal porque não havia clareza de que algo unia as mortes que aplicava.

Havia uma criatividade, havia um esmero.

Não pense nisso de forma cinematográfica, não pense como roteiro de comédia.

O Justiceiro era alguém com claríssima visão do seu papel, alguém que nunca errara.

E que nunca erraria.

Todos eram culpados, todos sabiam claramente o que os levou a estar ali, a tê-lo como responsável pelos seus últimos instantes.

E entre o crime e esse instante, o Justiceiro não costumava demorar.

O Justiceiro via em seu espelho a Ira Divina, e, de alguma forma, não posso negar-lhe a correção do que via.

Pense em um tempo grande.

O processo que levou o Justiceiro no kairós de seu calendário a ter consciência de que o Corruptor era raiz de muito, de bastante coisa, de mais que a decência humana permitiria, dentre os crimes que ele puniu, foi longo.

Bastante longo. Bastante longo para ter a certeza de que, sem o Corruptor, não haveria aqueles crimes.

Bastante para entender que não, ele não estava errado, aquelas pessoas que ele executara, independentemente do Corruptor, não eram inocentes.

Muito pelo contrário: na sua maioria eram aqueles que mais premeditadamente cometeram seus atos.

Um certo problema filosófico passou pela cabeça do Justiceiro, mas ele também tinha a clareza de seu papel no Mundo, na ordem das coisas, no “ciclo sem fim”.

O Corruptor, ao fim e ao cabo, era um problema equacionado.

E falta o ponto final.

Assim que o Justiceiro se fez presente na mesma sala que o Corruptor, este tinha claro de quem se tratava.

Nunca terem se cruzado antes não fazia diferença, havia alguns passados (poucos, é bem verdade, entre os muitos) a um grau de separação que eles compartilhavam, partes de histórias encerradas da qual os dois tinham início e fim, histórias que não eram cíclicas, histórias sem retorno, mas tão parecidas entre si as desgraças.

Antes que o Justiceiro enunciasse suas razões, o Corruptor falou:

“Finalmente te conheço! Servimos ao mesmo Propósito, ao mesmo Senhor.”

“De jeito nenhum!”, disse o Justiceiro.

“Você é um merda, um desgraçado, você também é culpado e sua conversa mole pode ter feito você escapar da justiça dos homens, mas não vai te fazer escapar da justiça deste homem.”

“Você tem um minuto antes do tiro?

Pois bem.

Você conhece um pouco de finanças, certo?

Pois é. Digamos que eu sou quem estrutura a operação, monta a posição, a carteira.

O seu papel no negócio é fechar a posição no melhor momento, executar a opção.

Cada ato de justiça que você praticou garantiu que aquela pessoa não se arrependesse, que não viesse sinceramente a pleitear perdão.

De fato, você mandou para o Inferno gente que lá deveria estar.

Mas dever é algo que acontece no tempo, algo que não acontecia antes e pode deixar de acontecer.

Seu papel é garantir que a dívida será cobrada.

Seu papel é monetizar os ganhos do Capeta, para usar uma linguagem que eu acho que você entenderá. Entendeu?”

Mas a mente do Justiceiro é fechada em sua missão.

Ele sabe que o Corruptor irá destruí-lo com suas palavras, e, portanto, ele sabe não se deixar corromper por elas.

Em sua alma de inox a pontaria se faz…

O Corruptor, é bom que se diga, não mente.

A ilusão que ele explora está dentro das pessoas.

Ele só as desabrocha, amadurece, acelera seu processo como bananas envolvidas num jornal.

Complexa a questão da culpa, mais complexa por vezes que um VAR…

Como Vincent Vega em Pulp Fiction, o Justiceiro, confiante em sua competência e em sua missão, deixa a cena de forma bizarra: acertado por algum objeto metálico pesado, não importa qual, deus ex machina.

Um cinzeiro de pé daqueles que havia quando o regular era fumar, um extintor, um taco de golfe que o Corruptor teria… ou teria sido uma simples arma esquecida por ele mesmo na antessala.

Alguém simplesmente entra na sala e põe, na sua conta existencial, o peso (e os pesadelos) do “bonde” que é tirar uma vida para salvar outra, o Justiceiro como ferramenta do Corruptor.

O tiro chegou a ser dado? Não sei, não importa de fato.

O Corruptor sabe que a sua existência é um mero detalhe nos dados que decidem a vida de Babilônia.

Dados que se antes eram talhados em barro, agora são ciberespaço, alucinações d’outro tipo.

Morrer ou não nessa história não faz diferença, e o Corruptor, apesar de tudo, sabe de seu cinismo.

Nem todos têm a chance de presenciar o Milagre.

Menos ainda, como Dimas e Jules, de reconhecê-lo.

Feliz Páscoa!

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