Assisti a uma recente entrevista de Fernando Haddad na tevê justificando a perspectiva de eventual derrota dos progressistas diante dos neoliberais por eles não terem tido um grande projeto político para o futuro do País que substituísse os modelos fracassados do comunismo, da social-democracia europeia ou do “nacional desenvolvimentismo”.
Não entendi a inclusão deste último entre os sonhos desfeitos da esquerda.
É que o nacional-desenvolvimentismo, no Brasil, praticado de forma concreta por Getúlio Vargas nos anos 1930 e recuperado pelo general Geisel nos anos 1970, não foi um sonho perdido.
Foi um sonho realizado, embora traído pelos pseudo democratas que, contraditoriamente, assumiram o poder justamente depois da ditadura de 1964.
E entre os principais traidores figurou ninguém menos que Fernando Henrique Cardoso.
O “príncipe dos sociólogos” assumiu a Presidência com a missão de liquidar o legado de Vargas, como ele próprio anunciou.
Adotou um discurso de esquerda num tom adequado para atrair gente jovem, porém sem espantar a direita.
Este foi seu principal papel na Constituinte.
Daí surgiu uma Carta constitucional aparentemente progressista, no plano social, mas fundamentalmente conservadora, no plano econômico.
A maioria da esquerda tradicional brasileira, diante do aparente fracasso do socialismo com a derrocada soviética e a inclinação para a direita da social democracia europeia, de fato não conseguiu construir um projeto de nação que mobilizasse o povo.
É que o caminho do nacional desenvolvimentismo ficou bloqueado pelos conservadores num embate ideológico oportunista que tentou desqualificá-lo como anacrônico.
Por baixo desse processo subsistia o pensamento trotstkista de que a grande revolução “libertadora” teria de ser mundial, e não nacional.
O processo histórico tomou um rumo completamente diferente, mas isso não impediu que muitos líderes socialistas rejeitassem o nacionalismo como uma via de acesso ao socialismo.
Com isso, o nacional desenvolvimentismo ficou prejudicado aos olhos da esquerda ideológica. E nada foi posto em seu lugar.
A realidade tomou outros caminhos.
A esquerda brasileira, que havia lutado em favor de uma revolução impossível contra a ditadura, não entendeu que a via socialista passa pelo nacionalismo, que admite inclusive uma aliança com os militares, como aconteceu com Vargas.
É o que aconteceu também com a Rússia, a China, o Vietnã e até mesmo Cuba, que só não conseguiu desenvolver-se porque foi esmagada pelo imperialismo norte-americano.
Nações como China e Vietnã, apenas para dar dois exemplos, apoiaram-se no nacionalismo para chegar ao socialismo e se desenvolveram, com um progresso espetacular.
A importância do nacionalismo para as nações abrirem caminho para o socialismo é que, na sua trajetória histórica, os valores nacionais estão mais profundamente enraizados nelas do que a ideologia mais recente do socialismo.
Por isso é que a combinação nacional-desenvolvimentista é um motor potente para o progresso de qualquer sociedade.
Passar ao largo dessa relação, como fez Fernando Henrique em suas presidências, e Haddad, agora, é governar sem foco e sem raiz.
Infelizmente, o legado de Fernando Henrique para Lula foi também de ignorar o nacionalismo como meio para um projeto ou para um sonho de futuro.
É verdade que, no caso de Lula, não seria um projeto socialista, ideologia que nunca assumiu, mas um projeto de melhoria das condições de vida do povo, que hoje está claramente fracassando por falta de sustentação popular e pela resistência das classes dominantes.
Nisso, Haddad tem razão.
A esquerda não apresentou ao povo sequer um projeto de nação.
E a razão é que nunca teve, porque o nacionalismo lhe parecia suspeito, segundo a ideologia trotskista.
Assim, se o socialismo soviético e a social-democracia europeia lhe pareciam igualmente superados, era preciso articular no plano ideológico, segundo Haddad, um novo modelo de sociedade que levantasse o entusiasmo do povo.
Como isso não aconteceu, segundo seu diagnóstico, a direita está avançando, aqui e no mundo.
Tudo isso se baseia numa outra falsidade fundamental: o diagnóstico de que o socialismo fracassou.
Então, o que são a China, o Vietnã e a própria Rússia senão nações socialistas ou próximas disso, construídas com bases firmes no nacionalismo?
Esse diagnóstico foi de alguma forma forçado pelo imperialismo norte-americano, que sempre teve uma relação de expropriação dos países em desenvolvimento, e não de apoio a seus projetos nacionais, criando, ao contrário, no caso dos países socialistas sob bandeira soviética grandes embaraços durante a Guerra Fria.
O avanço da direita, este sim, se deve em grande parte à pregação de seus demagogos sobre valores tradicionais do tipo família e pátria, justamente os que foram ignorados pela esquerda quando abandonaram a ideologia (e a prática) do nacional desenvolvimentismo.
Pior do que isso, o nacionalismo cedeu sua bandeira a antigos esquerdistas, ou pseudo esquerdistas, que por um acidente político assumiram o poder após 1988.
Sem compromissos com o povo, como foi o caso de Fernando Henrique, ou comprometidos com, ele porém sem saber exatamente qual rumo tomar na economia, como Lula, esses dirigentes máximos do País fizeram o jogo neoliberal – no caso de FHC, abertamente, e no caso de Lula, inconscientemente.
De Michel Temer e de Jair Bolsonaro nem vale a pena falar: levaram ao extremo iniciativas de subordinação do País a interesses externos.
O entreguismo descarado tomou conta do Brasil, na forma de privatizações e liquidação do patrimônio público construído desde as eras de Vargas e de Geisel, dois ditadores que conciliaram autoritarismo político e desenvolvimento.
A democracia nos trouxe liberdade política, sim, mas nos está conduzindo a um desastre nacional na economia por causa da extrema especulação financeira promovida pelos neoliberais.
Em breve não teremos dinheiro para pagar o serviço da dívida pública de mais de R$ 1,1trilhão.
Vai nos restar, uma vez mais, a moratória.
Publicado originalmente na Tribuna da Imprensa online.