A partir da primeira metade dos anos 80 se popularizou no mainstream a ideia de se conciliar liberalismo econômico com conservadorismo nos costumes.
Essa ideia, em grande medida, influenciada pelos governos Ronald Reagan e Margareth Tatcher simbolizou, a sua época, o que havia de mais moderno como forma de organização social, cultural e econômica.
Na Itália, por exemplo, a desilusão de parte dos jovens pelo welfare state, já em vias de esgotamento, levou ao movimento cultural paninaro, movimento este em que jovens milaneses se encontravam próximo a lanchonete Al Panino, rapidamente substituída por uma rede global de fast food, e vestidos de jaquetas marshall, botas de couro e trepados sobre motos aprilia se deliciavam com os saborosos hambúrgueres enquanto viam e paqueravam as belas moças que passavam pela rua.
A paquera ocorria com todo o respeito, pois os jovens paninari eram tradicionais, respeitosos e idolatravam Virgem Maria.
E o que era um simples encontro para comer hamburgers, paquerar e jogar conversa fomentou uma identidade cultural.
Estes jovens se encantavam, aos poucos, com as novas dinâmicas de consumo e a beleza estética do capitalismo moderno que plasmava nos letreiros de drink coke e nos outdoors que anunciavam desde a turnê mundial da Madonna a sequência do blockbuster De Volta Para o Futuro.
Os paninari celebravam a modernidade capitalista através da moda e do consumo .
Porém, ao mesmo tempo, os paninari ainda mantinham um ethos conservador, orgulhando-se da família e da tradição.
Esse novo modelo comportamental ocorria não apenas nas ruas milanesas, charmoso ponto focal da nossa ambientação, mas no ocidente quase que uniformemente, independente das configurações econômicas e o nível dos gaps sociais existentes.¹
E ocorria como resposta a uma rearticulação econômica e política.
E a sua explicação demanda certo folego.
O casamento entre o liberalismo econômico e o conservadorismo nos costumes – não nasceu de um acaso, mas sim da necessidade política e social de criar uma nova síntese ideológica que respondesse às crises do final dos anos 70.
O modelo keynesiano de bem-estar social, que dominou o Ocidente no pós-guerra, começava a mostrar sinais de esgotamento, com estagflação, déficits públicos e perda de competitividade industrial.
Ao mesmo tempo, a revolução cultural dos anos 60 e 70 havia deixado um rastro de transformações sociais que, para muitos, representavam um afastamento perigoso dos valores tradicionais.
Diante desse cenário, a fusão entre liberalismo econômico e conservadorismo moral não apenas fazia sentido como se tornava quase inevitável.
Se o Estado de bem-estar social era visto como um problema econômico, a resposta era o livre mercado.
Se a contracultura havia questionado família, religião e autoridade, a resposta era reafirmar esses pilares. Reagan e Thatcher foram os artífices dessa síntese, mas seu apelo transcendeu as fronteiras anglo-saxãs.
Além disso, a própria necessidade da economia norte-americana de absorção de financiamentos globais como forma a lastrear o dólar como a moeda mundial e signo máximo de confiança levou ao fortalecimento da indústria cultural norte-americana e, por conseguinte, a propagação de seus valores liberalizantes.
E os empresários sedentos por desregulamentação fizeram o resto do trabalho.
Ainda que contraditoriamente por meio de conchavos políticos.
A nova ordem global se processou não só através da liberalização financeira, mas também da propaganda cultural, fortalecendo uma hierarquia visível e invisível e o estabelecimento da uma ética privada como forma de orientação pessoal, corporativa e de Estado.
Nos Estados Unidos, a ascensão da chamada Moral Majority, liderada por figuras como Jerry Falwell, consolidava a aliança política entre a ética conservadora e o liberalismo econômico.
Pregadores evangélicos defendiam o livre mercado como um reflexo da ordem divina, onde o sucesso era visto como uma bênção e o fracasso como uma questão de responsabilidade pessoal.
Dessa forma, o conservadorismo cristão encontrou no liberalismo econômico um aliado estratégico: juntos, combateram o feminismo, o aborto, o movimento LGBT e a cultura das drogas.
Contudo, apesar dessa fusão bem-sucedida na superfície, o casamento entre liberalismo econômico e conservadorismo tende a ser contraditório e problemático.
O liberalismo econômico, em sua essência, tende a corroer as tradições ao valorizar a inovação, a ruptura e a maximização do lucro.
Grandes corporações globais, por exemplo, não têm compromisso com moralidades locais—elas seguem a lógica do mercado.
O mesmo sistema que permitia o crescimento de pequenos empresários e o culto ao self-made man também impulsionava a cultura da obsolescência, da hiper-sexualização na publicidade e da dissolução de antigos laços comunitários em prol do individualismo exacerbado.
Por outro lado, com a popularização da internet e das redes sociais, o livre mercado se tornou ainda mais avassalador na sua capacidade de redefinir comportamentos e identidades.
O conservadorismo moral, que antes podia contar com barreiras institucionais e culturais para preservar tradições, viu-se desafiado pela própria máquina econômica que ajudou a impulsionar.
Um exemplo é o mercado incentivando a mobilidade e a diversidade cultural (cristalizado na cultura woke) como forma de criar nichos de consumo
No jogo capitalista há a intensa negociação entre o romper e o conservar, buscando sempre um equilíbrio dialético, caso contrário as preferências podem não ser suficientemente atendidas e o capitalista, seja o agente individual ou o ente corporativo, pode ser eliminado ou perder poder nesse jogo.
O mesmo sistema social que responde de forma mercantil ao represamento de vozes e demais liberdades silenciadas no passado, é o mesmo que volta a renegociar com quem passou a se sentir subrepresentado pela inclusão novas tendências, e assim, há um movimento de retorno, ainda que em menor grau, mas cumprindo o movimento dialético.
Magnatas como Mark Zuckerberg, Jeff Bezos, parte da indústria cultural e a própria classe política sabem muito bem como se equilibrar nesse jogo, desacelerando tendências, no momento oportuno, e sem nunca terem abandonado as bases conservadoras, ainda que as aparências possam parecer o contrário.
Players dessa natureza sabem o risco da irreversibilidade de suas ações e calculam meticulosamente como atender diferentes segmentos.
Já filosoficamente falando, o liberalismo econômico, em sua essência, baseia-se na ideia de autonomia individual e na mínima interferência do Estado, como defendido por pensadores como Friedrich Hayek.
Já o conservadorismo nos costumes, inspirado por figuras como Edmund Burke, valoriza a tradição e, muitas vezes, aceita intervenções estatais para proteger valores morais – como leis restritivas sobre aborto ou casamento.
Essa dualidade pode criar uma percepção de hipocrisia: como alguém pode defender a liberdade irrestrita no mercado, mas apoiar restrições à liberdade pessoal em questões morais?
Grande parte dos jovens de hoje, influenciados por movimentos progressistas ou por uma visão mais integrada de justiça social, tendem a rejeitar essa mentalidade dúbia ao perceberem tal postura como “seletiva” – liberal apenas quando convém, conservador quando interessa.
Porém, também sem perceberem, caem na mesma armadilha ao se identificarem com pautas coletivas, como a própria luta por justiça social e a reparação das desigualdades, mas, ao mesmo tempo, exigirem politicas quase que exclusivamente identitaristas em que o seu atendimento, por natureza, exige a discriminação positiva de um grupo em detrimento do outro, o que naturalmente gera abalos de diferentes magnitudes na coesão social.
E o próprio uso da política para obtenção de privilégios pessoais ou de classe é uma das expressões mais antigas de conservadorismo.
Liberal quando convém, conservador quando interessa.
O que era moderno na Milão dos paninari hoje soa, para muitos, como uma contradição mal resolvida.
Porém, essa contradição acompanha a história.
Nenhum grupo, corrente ou movimento político parece saber andar perfeitamente na corda bamba entre ser liberal (ainda que na seara econômica) e ser conservador.
E eu costumo dizer que se alguém souber responder com precisão o que foi o proeminente filósofo John Locke.
Um liberal ou um conservador?
Certamente estará respondendo a pergunta de 1 milhão de dólares.
Por fim, o incômodo entre o liberalismo econômico e o conservadorismo também pode ser atribuído à forma como essa combinação é percebida.
Em geral, elitista e desconectada das realidades contemporâneas.
O liberalismo econômico, com sua ênfase na meritocracia e na desregulamentação, muitas vezes beneficia os já privilegiados, enquanto o conservadorismo nos costumes pode reforçar ainda mais normas que excluem minorias ou marginalizam dissidentes culturais.
No Brasil, por exemplo, a ascensão de figuras políticas que mesclam essas ideias, em geral aliando-se a figuras religiosas e donos de terras, tem gerado críticas por ignorar as desigualdades estruturais e as demandas por inclusão.
Um relatório do IBGE de 2022 apontou que a concentração de renda no Brasil aumentou nos últimos anos, mesmo em um contexto de crescimento econômico em alguns setores, o que reforça a percepção de que o liberalismo econômico, quando aliado a valores conservadores, pode perpetuar hierarquias sociais em vez de desafiá-las.
Assim, o “casamento” de outrora, celebrado entre terços e fast-foods, revela-se, hoje, uma união que muitos questionam não por falta de charme, mas por falta de coerência e equidade.
E, como toda boa história, a resposta a essa indagação não é definitiva, mas nos convida a refletir: será que esse ‘casamento’ pode ainda encontrar harmonia, ou está destinado a ser apenas mais uma forma de atraso para o desenvolvimento social?
O debate ainda segue vivo. Alguns tentam resgatar essa síntese com novos discursos como “capitalismo nacionalista” ou “conservadorismo de mercado”.
O mercado avança sobre a moralidade, e a moralidade resiste ao mercado.
O casamento ainda existe, mas será que ainda há amor entre os cônjuges, ou só restou a conveniência?