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Sobre as neuroses que nos habitam e a política que nos cerca

Luiz Henrique Lima Faria – Professor do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES) e Editor-Chefe da Revista Interdisciplinar de Pesquisas Aplicadas (RINTERPAP).

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“A neurose é o preço que pagamos pela nossa civilização.” (Sigmund Freud, “O mal-estar na civilização”. 1930.)

Tenho acompanhado com atenção muitos grupos de discussão e construção política.

Faço isso não apenas por interesse acadêmico, mas também porque sinto que compreender esses movimentos da sociedade é hoje uma tarefa cidadã inalienável.

Vivemos tempos de polarização intensa e, mesmo sem qualquer pretensão de “psicanalisar” quem quer que seja, observo traços psicanalíticos comparecerem nos discursos e nas práticas que emergem.

Não tenho vivência na psicanálise clínica, é bem verdade, mas como interessado no tema, a cada novo debate, a cada nova argumentação pública, a cada réplica, percebo como nossas neuroses podem moldar a maneira como nos posicionamos diante da coletividade.

Nesse sentido, minhas leituras sobre as neuroses me fazem reconhecer traços histéricos, obsessivos ou fóbicos contornando as formas como organizamos e declaramos nossas posições políticas.

A neurose histérica, na psicanálise, é uma forma de neurose marcada por uma relação intensa e conflituosa com o desejo.

O histérico não sabe exatamente o que quer, mas sabe que o que existe nunca é suficiente.

Sua fala busca incessantemente provocar o Outro, buscando respostas, reconhecimento, admiração. No campo político, não é raro encontrar grupos ou movimentos que se alimentam dessa lógica.

Os histéricos vivem em constante denúncia, questionam toda liderança, desconfiam de toda conquista, sustentam uma indignação perene que parece mais vital do que qualquer transformação concreta.

No fundo, o desejo histérico na política não está em resolver o conflito, mas em mantê-lo vivo.

Assim, a mudança real, se viesse a se concretizar, ironicamente representaria um mal maior do que a própria injustiça denunciada.

Por sua vez, a neurose obsessiva se caracteriza pela necessidade de ordem.

O obsessivo é aquele que necessita de regras e estruturas para sobreviver ao caos interno que o ameaça.

Apega-se a normas, tradições e procedimentos, buscando neles um abrigo contra a incerteza que atravessa a existência.

Em tempos de crise, essa necessidade transborda para o campo político, manifestando-se em movimentos que clamam por “lei e ordem” e que se ancoram em fantasias de um tempo idealizado, como se fosse um período estável e harmonioso.

Para o obsessivo, a maior ameaça não reside na injustiça, mas no caos. Sua angústia não brota tanto da dor alheia quanto do medo de que o mundo perca suas fronteiras de segurança.

A política obsessiva empenha-se em congelar a história, em barrar toda transformação, defendendo estruturas que podem não corresponder à fluidez das realidades vividas.

Já a neurose fóbica oferece uma chave perturbadora para compreender o ódio e o medo difusos que circulam por nossa sociedade.

O fóbico precisa deslocar sua angústia interna para um objeto externo.

Não podendo lidar diretamente com a ansiedade que o atravessa, ele a projeta em figuras específicas: o imigrante, o pobre, o diferente, o “inimigo interno”.

Dessa maneira, a complexidade do mundo se torna mais suportável para o fóbico.

Não se trata mais de lidar com a incerteza da existência, mas apenas de combater aquele que foi eleito como portador de todo o mal.

A política fóbica é aquela que se organiza em torno da identificação de bodes expiatórios, fomentando campanhas de medo, justificando práticas de exclusão e violência sob o pretexto da autoproteção.

Importante dizer que essas três tipificações neuróticas não são excludentes entre si no âmbito individual.

Uma mesma pessoa pode apresentar traços das três formas de neurose, embora, em geral, alguma delas costume se manifestar com maior relevo.

Além disso, nenhum dos três tipos pertence exclusivamente à esquerda ou à direita, aos progressistas ou aos conservadores.

Esses traços podem perpassar todos os campos ideológicos, pois são maneiras inconscientes pelas quais os sujeitos tentam lidar com a angústia fundamental de existir.

A política, nesse sentido, torna-se também um possível palco de sintomas, uma cena em que nossas feridas simbólicas se expressam, não raro, de maneira amplificada.

Se a psicanálise tem algo a contribuir neste cenário, é a necessidade de humildade diante dos próprios sintomas.

Antes de apontarmos com indignação para as neuroses alheias, seria mais digno voltarmo-nos primeiro para as nossas.

Antes de acusarmos o outro de irracionalidade ou fanatismo, convém interrogar o que, em nós mesmos, precisa tanto de uma indignação interminável, de uma certeza absoluta, de um inimigo claramente visível.

Reconhecer que nossas neuroses habitam também a polis é o primeiro passo para a construção de uma política mais lúcida.

Não se trata de fingir ignorância quanto à existência da angústia, do conflito ou da diferença, mas de aceitá-los como parte da condição humana e de trabalhar para que não sejam capturados por impulsos que se autorreproduzem em um eterno ciclo de repetição.

Quem sabe, ao aceitarmos resignadamente nossa incompletude consciencial, possamos enfim inaugurar uma política menos reativa, menos ressentida, mais aberta à alteridade e ao diálogo.

Talvez aí resida um ponto de partida possível para romper a repetição estéril de nossos sintomas neuróticos e, de fato, buscar a vida social em sua forma mais plena.

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