Os templos sempre representaram para mim um lugar de recolhimento respeitoso e de acolhimento comunitário, no qual a religação com o divino é o objetivo central, tanto individual quanto coletivo.
Silêncios, cantos, palavras e gestos ali devem apontar para algo maior que eu, uma presença sagrada que me desafia, consola e transforma, tornando minha jornada no mundo um testemunho vivo da fé que professo.
Mas, com o tempo, comecei a perceber outra coisa.
Não em todos os lugares sagrados, é claro, mas em alguns espaços onde o que deveria ser profissão de fé se converteu em espetáculo.
Vi altares se transformarem em palcos, pregadores em figuras estelares que precisavam brilhar, e dons espirituais, especialmente o falar em línguas, sendo tratados não como meios de edificação, mas como marcas de exaltação egóica.
Como se o sagrado tivesse sido capturado por uma lógica de autopromoção pessoal, ganho material e até mesmo dominação política.
A glossolalia, o dom de falar em línguas, nesse contexto, parece menos um sinal de comunhão e mais um instrumento de distinção personalista.
Quando me deparo com situações vexatórias desse tipo, torna-se inevitável lembrar do relato de Pentecostes, no qual os discípulos, cheios do Espírito Santo, “começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito lhes concedia que falassem” (Atos, 2:4).
A narrativa destaca que as pessoas ao redor, vindas de diferentes nações, ficaram admiradas ao perceber que cada um os ouvia falar em sua própria língua (Atos, 2:8).
O milagre, portanto, não estava na obscuridade da fala, mas na clareza da escuta, na ponte que se estabelecia entre os diferentes.
A glossolalia, naquele contexto, não era enigmática nem excludente, mas acessível, acolhedora e profundamente comunicativa.
O apóstolo Paulo também se debruçou sobre esse tema ao escrever aos coríntios, alertando contra a prática desordenada e descontextualizada dos dons espirituais.
“Se toda a igreja se reunir […] e todos falarem em línguas, e entrarem indoutos ou incrédulos, não dirão porventura que estais loucos?” (1 Coríntios, 14:23).
Paulo não questiona a autenticidade do dom, mas adverte quanto ao seu uso sem discernimento, que mais escandaliza do que edifica.
Para ele, os dons devem estar a serviço da comunidade, nunca se tornarem instrumentos de vaidade nem sinais de suposta superioridade espiritual de quem os manifesta.
Outra fonte que ampara meu entendimento sobre essa questão é o teólogo Paul Tillich.
Em sua obra Teologia Sistemática (1991), ele aprofunda essa reflexão ao alertar para a distorção dos símbolos religiosos e a idolatria da experiência.
Tillich chama a atenção para o risco de experiências extáticas se tornarem fins em si mesmas quando desvinculadas da verdade cristocêntrica da fé.
Quando o sagrado é transformado em espetáculo, argumenta ele, perde-se a profundidade teológica da revelação.
O que sobra é uma espiritualidade centrada no sujeito, em que a performance ocupa o lugar do encontro genuíno com o transcendente.
Ainda sobre os fins distorcidos da glossolalia, acredito haver um desdobramento ainda mais deletério: quando o falar em línguas é associado à promessa de bênçãos materiais, condicionadas à submissão ao líder religioso ou à entrega financeira ao ministério.
Nesse cenário, a fé se converte em barganha e a espiritualidade em moeda simbólica.
Paulo advertiu os coríntios: “Temo que, assim como a serpente enganou Eva com a sua astúcia, assim também sejam corrompidos os vossos sentidos” (2 Coríntios, 11:3).
Sua preocupação é nítida: a manipulação da fé em nome de interesses escusos compromete a integridade do evangelho e ameaça a liberdade espiritual dos fiéis, substituindo a confiança em Cristo por vínculos de dependência e controle.
Lembro que Jesus também não foi omisso diante de práticas religiosas que mascaravam intenções egoístas.
Citando Isaías, afirmou: “Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim” (Mateus, 15:8).
Sua crítica não se limitava à formalidade do culto, mas apontava para o abismo entre o gesto exterior e a sinceridade interior.
Ao expulsar os vendilhões do templo, denunciou a corrupção do sagrado: “A minha casa será chamada casa de oração, mas vós a tendes convertido em covil de ladrões” (Mateus, 21:13).
Sua indignação não era contra a presença de pessoas, mas contra o uso mercantil e manipulador daquilo que deveria ser espaço de graça e reconciliação.
Por fim, é preciso reconhecer que há também a instrumentalização do sagrado com fins de dominação política.
No campo da chamada Teologia da Dominação, proliferam interpretações religiosas distorcidas que buscam legitimar estruturas de poder autoritárias, hierárquicas ou opressivas, muitas vezes sustentadas pela alegação de representar a própria vontade divina.
Nesse contexto, a exibição carismática de dons espirituais, sobretudo em ambientes midiáticos e religiosos, tem sido frequentemente utilizada como suposta comprovação de autoridade moral e validação sobrenatural para respaldar discursos de poder, ideologias excludentes e projetos políticos autoritários.
Líderes religiosos passam, então, a ocupar o lugar de intérpretes exclusivos da vontade de Deus no espaço público, promovendo uma fusão perigosa entre espiritualidade e sua instrumentalização para o domínio político.
Assim, o dom que deveria servir à comunhão e ao discernimento torna-se um aparato simbólico para justificar alianças partidárias, intolerâncias e imposições.
No entanto, o próprio Cristo advertiu: “Daí a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mateus, 22:21).
Sua resposta, ao mesmo tempo firme e precisa, traça os limites entre fé e poder terreno, entre consciência espiritual e interesses do Estado.
Quando esses limites são violados, o evangelho é distorcido e reduzido a ferramenta de dominação mundana, esvaziando sua força libertadora e subvertendo seu sentido original.
Volto, então, à minha imagem inicial.
Os templos ainda podem ser lugares de recolhimento e reconexão com o mistério e com o transcendente.
Mas, para que assim permaneçam, é necessário discernir entre o dom que comunica vida e sua caricatura, que confunde, segrega e oprime.
A fé genuína é aquela que liberta, edifica e serve, não a que aliena, hierarquiza ou explora.
“Deus não é Deus de confusão, senão de paz” (1 Coríntios, 14:33).
Onde houver autopromoção espiritual, dominação velada ou ganância disfarçada de milagre, ali não está o Espírito, mas a apropriação do sagrado por desejos da carne que nada têm a ver com o evangelho de Jesus Cristo.