A Caxemira, região montanhosa encravada entre Índia, Paquistão e China, é frequentemente tratada como um conflito regional de raízes coloniais e rivalidades nacionais.
No entanto, à medida que o cenário global se reconfigura com a ascensão do BRICS+, torna-se cada vez mais claro que a instabilidade persistente na região não é apenas consequência de disputas bilaterais, mas também parte de um jogo maior: a contenção estratégica das potências emergentes.
O BRICS+, expansão do grupo original Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, reúne hoje países com vastos recursos naturais, grandes populações, crescente capacidade industrial e ambição de reformar as instituições internacionais:
- Trata-se de uma aliança que desafia diretamente o domínio dos Estados Unidos e de seus aliados sobre a governança global;
- Seja no comércio, nas finanças ou na política internacional.
Nesse contexto, a Índia ocupa uma posição central:
- É a maior democracia do mundo;
- Potência tecnológica;
- Mercado consumidor em expansão e ator-chave na transição energética.
O papel da Índia no BRICS+ é insubstituível:
- Equilibrando a influência chinesa;
- Aproximando-se da África e da Ásia Ocidental;
- E fortalecendo a legitimidade democrática do grupo.
Por isso mesmo, a manutenção do conflito na Caxemira cumpre uma função geopolítica instrumental e impede que a Índia se consolide como articuladora de um novo eixo multipolar:
- A cada escalada com o Paquistão — por vezes alimentada por provocações de grupos insurgentes com redes transnacionais nebulosas — a Índia precisa redirecionar recursos militares e diplomáticos para a defesa nacional;
- E essa militarização limita seu envolvimento pleno em agendas cooperativas e regionais, como a Nova Rota da Seda, a Parceria de Energia BRICS, ou o avanço de moedas alternativas ao dólar.
Além disso, o conflito cria uma cisma entre Índia e China, dois dos principais motores do BRICS+, cuja rivalidade fronteiriça, potencializada por disputas territoriais como as de Aksai Chin e o vale de Galwan, é frequentemente exacerbada em momentos estratégicos — como reuniões do G20, cúpulas do BRICS ou iniciativas de cooperação Sul-Sul.
Ou seja, a instrumentalização geopolítica do conflito na Caxemira pode dificultar que essas duas potências asiáticas construam confiança mútua, e, dessa forma, sabotar a construção de um núcleo asiático sólido dentro do BRICS+.
Não se trata de sugerir que o conflito seja artificial ou inteiramente manipulado por potências externas. Afinal de contas, suas raízes coloniais e religiosas são profundas. Mas negar sua utilidade geopolítica para aqueles que desejam frear a emergência de uma nova ordem global seria ingenuidade.
A presença contínua dos EUA na Ásia do Sul, os acordos bilaterais de defesa entre Washington e Nova Délhi (como o BECA e o LEMOA), e o constante apoio militar ao Paquistão — ora velado, ora direto — mostram que as grandes potências não estão alheias ao que se passa na região:
- A Guerra na Caxemira, portanto, cumpre um papel duplo, desgastando internamente a Índia, com polarizações religiosas e repressões militares — que abalam sua imagem democrática;
- E, por outro lado, fragilizando externamente o BRICS+, impedindo que seus dois maiores membros asiáticos se alinhem plenamente.
Enfim, a guerra na Caxemira também faz parte de uma estratégia de contenção indireta, mas eficaz, contra uma aliança que busca refundar os princípios de soberania, multipolaridade e justiça econômica no mundo.
Reconhecer esse movimento é essencial para que o BRICS+ avance com realismo.
Portanto, se quiser consolidar-se como alternativa viável à ordem neoliberal centrada no Ocidente, o bloco precisará desenvolver mecanismos internos de resolução de conflitos, fortalecer sua diplomacia paralela e construir pontes que resistam às forças de divisão externas.
Manter a Índia em estado de alerta permanente é uma maneira indireta de minar o BRICS+ por dentro:
- Enquanto os estampidos das bombas ecoam nos vales da Caxemira, os alicerces de uma ordem multipolar seguem sendo minados;
- Não apenas por mísseis, mas por estratégias silenciosas de divisão.
A paz na Caxemira, da mesma forma que na Guerra Ucrânia X Rússia, não representa apenas uma vitória humanitária e regional — mas também um passo decisivo na construção de um novo equilíbrio global multipolar.