Neste 11 de maio do Ano da Graça de 2025 de Nosso Senhor Jesus Cristo, Dia das Mães, é dia propício (que os demais dias também o são) de ter saudade da minha mãezinha, Maria Janira, bela mulher guerreira, mãe amorosa. No próximo 14 de novembro ela faria 100 anos.
Gaúcha que nasceu em Lages, Santa Catarina. Explico. 1925, Lagoa Vermelha, Rio Grande do Sul. Um grupo de gaúchos, maragatos de lenço vermelho das famílias Vargas e Gomes, percorrem a cavalo e carroças o Caminho do Viamão para Santa Catarina. Para alcançar o território do estado vizinho terão que atravessar o Rio Pelotas. Uma travessia perigosa, que exige conhecimento do leito do rio. Precisarão contar com a orientação de batedores ribeirinhos, que com seus cavalos seguem à frente dos tropeiros mostrando o caminho exato em que o rio é menos fundo e perigoso.
No grupo de viajantes, uma cena se destaca. Uma jovem leva um bebê no ventre. A jovem era a minha avó, Cecilia Vargas Gomes, vó Ciloca. O bebê viria a ser Maria Janira Gomes, minha mãe, em sua viagem inaugural neste Vale de Lágrimas. A cena é inquietante. Por que levar numa viagem tão longa e desconfortável uma mulher grávida?
A resposta está na História do Rio Grande do Sul e na história dos Gomes, açorianos da Ilha de São Jorge que aportaram no Porto de Rio Grande em 1730 e desde então estiveram mergulhados nas lutas políticas por terra, trabalho e pão no tormentoso rincão riograndense. Para nós, os descendentes dos primeiros Gomes, a história do Rio Grande e da nossa família estão entrelaçadas. O último capítulo da longa marcha dos meus antepassados no Rio Grande se deu na Revolução de 1923, a última guerra gaúcha entre feudos e caudilhos, encerrando a marcha sangrenta iniciada em 1835, com Farrapos, e seguida pela Revolução Federalista, 1893 a 1895, em que os inimigos se impunham mutuamente a degola, tradição macabra que se estendeu até a revolução de 1923.
Sair do Rio Grande do Sul, torrão que nutriu e expandiu os Gomes por dois séculos não há de ter sido uma decisão qualquer, mas uma viragem definitiva na vida familiar, a busca de uma vida nova, numa terra nova, que aquela estava banhada de muito sangue derramado por lutas ferozes. A derradeira foi a Revolução de 1923, parte do movimento tenentista e do movimento operário que sacudiu os alicerces da República Velha e abriu caminho para Segunda República, inaugurada pela Revolução de 30, a nossa verdadeira Independência, que abriu as portas do Brasil moderno industrial, urbano.
O meu bisavô Arthur, Dindinho, e o meu avô, Alfredo, compunham as forças maragatas (lenço vermelho) revoltosas, lideradas por Assis Brasil, que não aceitaram a reeleição de Borges de Medeiros, ximango (lenço branco), para mais um mandato como o presidente do Estado, até 1928. Borges governava o estado por dois mandatos, iniciados em 1913. As coisas iam mal no Estado, desagradando a elite estancieira e o movimento estudantil e operário. Borges era do PRR – Partido Republicano Riograndense, fundado por Júlio de Castilhos, intelectual de escol, líder de inspiração positivista, escrevera sozinho a Constituição de 1891 e governou o Estado de 1893 a 1898, período no qual, com o auxílio de Floriano, o Marechal de Ferro, conteve a Revolução Federalista, de corte descentralizador e parlamentarista, liderada por Gaspar Silveira Martins.
Contra Borges o movimento de oposição convocou ninguém menos que o gigante Assis Brasil, um dos fundadores do PRR, pelo qual foi deputado estadual e nacional constituinte (escreveu a Constituição de 1891) e que dentre outros grandes feitos da monumental biografia está o de haver trabalhado junto ao Barão do Rio Branco na resolução dos limites com a Bolívia, que resultou no Tratado de Petrópolis, em 17 de novembro de 1903, pelo qual o Brasil adquiriu o território do atual estado do Acre. Depois de fundar o Partido Republicano Democrático, Assis Brasil havia se retirado da vida política e se refugiado na sua estância de Pedras Altas. As eleições foram realizadas em clima de repressão e violência.
O resultado eleitoral é contestado, ambos os candidatos se declaram vencedores, e a luta armada se torna inevitável. Urnas eleitorais são disputadas a bala. Certamente esta experiência terá sido decisiva para que Assis Brasil aceitasse o convite de Getúlio para compor o governo revolucionário de 30, como ministro da Agricultura, tendo imposto como condição, que o Brasil modernizasse e racionalizasse o seu sistema eleitoral. Escreveu “Democracia representativa: do voto e do modo de votar” e em 1932, foi o idealizador do Código Eleitoral, no qual consta a primeira menção a uma máquina de votar. Fiel ao seu pensamento de que “a vida dos bons e justos é feita mais de renúncias do que de conquistas”, renunciou ao ministério em protesto contra o empastelamento do Diário Carioca por agentes políticos tenentistas. Foi em homenagem a este homem que o meu tio Darcy recebera o sobrenome Brasil (Gomes Brasil, dando surgimento a um ramo novo nós frondosa árvore familiar dos Gomes, os Brasil).
Voltemos ao chão quente da revolta. A luta armada foi curta e os revoltosos não conseguiram os seus objetivos. A Revolução durou 300 dias e findou com o pacto “Paz de Pedras Altas” em 14 de dezembro de 1923. Janeiro de 1923. Passo Fundo e Palmeira das Missões são atacadas pelos combatentes dos caudilhos maragatos Mena Barreto e Leonel Rocha, ao lado do qual lutou o pai de Brizola, José. (José Brizola foi executado pelos borgistas depois de preso). O líder legendário inspirou o menino Lelo, apelido de Brizola, que brandia a sua espada de pau contra ximangos imaginários dizendo-se ser Leonel Rocha. Houve resistência e não houve vitória.
O grande motivo da derrota fora a não intervenção federal que oligarquia revoltosa liderada agrupada na Aliança Libertadora liderada por Assis Brasil esperava que o presidente Arthur Bernardes decretasse, uma vez que Borges apoiou o seu adversário Nilo Peçanha nas eleições. Bernardes não o fez e, ao contrário, aproximou-se de Borges. Frustrada a intervenção federal, os ânimos dos revoltosos esfriaram-se.
Os maragatos passaram a depender exclusivamente das ações armadas do caudilho Zeca Netto. Experimentado diplomata, Assis Brasil propôs uma negociação para pôr fim ao conflito. O revolucionário guerrilheiro “General de Guerra Zeca Netto” não aceitava negociar com Borges e, na vitalidade dos seus 72 anos, a 9 dias do armistício de 7 de novembro lançou um ataque surpresa a Pelotas ao alvorecer do dia 29 de outubro. Manteve a cidade sob o seu domínio por seis horas e teve que se retirar.
Enfim, o acordo foi firmado tendo funcionado como negociadores pelo poder central o general Fernando Setembrino de Carvalho e o senador potiguar João de Lira Tavares, em representação do Congresso Nacional. Pelo acordo, foi dado posse a Borges para o mandato até 1928, alterou-se a constituição estadual para eliminar a reeleição e a indicação pelo presidente do estado dos intendentes municipais e do vice-presidente.
A Revolução de 1923 pôs fim ao período de guerras fraticidas gaúchas. Mas o clima seguiu tenso. Em 1924 irrompeu a sublevação tenentista, com foco em São Paulo e no Rio Grande do Sul, liderada pelo capitão Luiz Carlos Prestes, ao qual se incorporaram maragatos revoltosos de 1923 insatisfeitos com o Pacto de Pedras Altas. Assis Brasil exilou-se no Uruguai. Os Gomes Vargas resolveram então sair do Rio Grande em busca de paz para trabalhar e prosperar. Deixaram atrás de si um Rio Grande prestes a unir-se. Não chegaram a ver o sucessor de Borges de Medeiros assumir o poder e pacificar de vez o Rio Grande, Getúlio Vargas.
Voltemos ao sacolejante ventre da jovem Cecília no qual Maria Janira viajava. Ultrapassado o rio Pelotas, abriu-se o céu anil de Santa Catarina, mas Cecilia não pôde continuar a marcha. Antes de seguir viagem para os Campos do Irani, destino perseguido pela gauchada em migração forçada, os parentes construíram uma casa de moradia e comércio para que Alfredo Gomes e Cecília ali se instalassem e recebessem Maria Janira. Foi a primeira morada da minha família fora do Rio Grande. Na pequena casa ficaram os meus avós gaúchos, Alfredo e Cilóca, e os gauchinhos Eri, filha mais velha do casal, e Darcy (Janira seria a primeira catarinense. Depois vieram Dário (o tio revolucionário, inspiração do meu saudoso irmão Carlinhos, também revolucionário e inteligente como ele, mas essa já é uma outra história), Francisca Alda, Zilma, Hilda Terezinha (nascida como presente para Janira quando ela inteirou 11 anos), Alfredo Dalmir, Ivone e o caçula Dirceu. Todos Gomes, menos Darci, batizado Gomes Brasil, em homenagem a Assis Brasil, o líder da Revolução de 1923, como você já sabe.
(Um breve interregno teológico. Conta-se que chegados no Céu e feitos os trâmites de logística, acomodação e ambientação, as irmãs Hilda, Alda e Zilma, ao reencontrarem Janira, teriam “perguntado” em coro (com as vozes bem altas, como falavam entre si os Gomes!):
– Janira, onde é que tu nasceste?
– Nasci em Lages.
– Mas, Janira, é para lá de Lage ou é para cadelage?
E as gargalhadas dos Gomes retumbaram pelo Céu, destacando-se de todos os demais a gargalhada- trovão do tio Darcy, levando os anjos a esconderem os seus rostos ruborizados em incontidos risos marotos. Em seguida, os irmãos se atracaram novamente numa interminável canastra madrugada (e Céu) adentro, canastra que sempre fora mero cenário e pretexto para brigarem, rirem e fazerem o que mais lhes estás louca com assim apetecia: pilhéria!)
Voltemos aos acontecimentos acontecidos abaixo do Céu, no céu anil catarinense. Janira desembarcou do ventre viajante e sacolejante de Cilóca em Lages. Os demais membros do clã dos Vargas Gomes seguiriam ao seu destino, os promissores catarinenses Campos do Irani, mais precisamente o povoado de Coração, onde aguardariam a chegada da nascente e ainda tenro núcleo familiar do (nosso) patriarca Alfredo Gomes, o que ocorreu no ano seguinte, 1926.
Chegados os meus avós à catarinense Coração para juntarem-se aos parentes já instalados, lá passaram de imediato a fazer o que sempre souberam fazer os Vargas e os Gomes. Trabalhar e progredir. Quando possível, em paz. Nunca brigaram por valentia vã e despropositada. Os Vargas e os Gomes eram gente de paz. Mas não eram de se matar com a unha. Nas tempestuosas pelejas gaúchas fizeram o que precisava ser feito quando o tempo e o lugar de ser feito o que precisava ser feito se apresentava. É a eterna luta do povo por terra, trabalho e pão. É a necessidade (a rainha das virtudes). Um judeu alemão, um tal de Karl Marx deu outro nome para a coisa, mas, em resumo, é isso.
No Coração (eles não diziam “em Coração”, diziam “no Coração”), hotel, comércio, agricultura, educação. Numa palavra, Ordem e Progresso. No Coração, Eri e Janira receberam suas primeiras letras de Miguelina Vargas (Tia Mocinha), irmã de Cilóca, e, ainda jovenzinhas, transmitiram-nas às crianças que vieram depois delas no Coração. Depois, em Catanduvas, Eri e Janira foram as primeiras professoras da comunidade. Os Gomes foram professores. Além de Eri e Janira, também Darcy, Alda e Zilma. Depois netas e netos de Alfredo e Ciloca seguiram a tradição, conduzindo nos primeiros estudos gerações de catanduvenses .
Catanduvas! Ali a vocação política de Alfredo Gomes germinou e frutificou. Alfredo cavalgou pela região em busca de votos para a emancipação política do município. Alfredo, o intelectual getulista, leitor voraz, comerciante por necessidade e político por talento, fez da vida daquela nascente comunidade a sua própria vida, da qual chegou ser a autoridade máxima, Intendente. Alfredo, que Catanduvas sempre honrava com a honra de carregar o Pavilhão Nacional nos esmerados desfiles de 7 de Setembro (eu menino pude assistir!). Alfredo, descrito em livro pelo líder político Nelson Pedrini como o companheiro mais leal que encontrou em toda a sua vida.
Alfredo Gomes, a quem a comunidade de Catanduvas concedeu, post mortem, a mais adequada e justa homenagem que se pode dar a um líder político ilustrado, probo e obsessivo pelo dever de abrir oportunidades de crescimento para todos pelo estudo (como faria Brizola quando governador do Rio Grande, mais adiante, com as Brizoletas, mais de 1000 escolas rurais que ele semeou nos em rincões esquecidos daquele pago). Homenagem maior ao meu avô não poderia ser conferida: dar a uma escola o seu nome. Lá está, em Catanduvas, o Grupo Escolar Alfredo Gomes, um ponto de luz na construção do Brasil, deste amado Brasil por cuja grandeza os Vargas e os Gomes movimentaram céus e terras nas sangrentas pelejas nas bravias planuras gaúchas e depois em paz no chão catarinense. “Em 1986 foi criado o “Grupo Escolar Alfredo Gomes”, homenagem a um grande homem com experiência e vivência política, exemplo de humanismo e dedicação, o Sr. Alfredo Gomes.” (https://www.catanduvasonline.com.br/noticias/noticias_ver.php?id=8281)
O Caminho de Janira. De Catanduvas para Joaçaba, de Joaçaba para Curitiba. Em Curitiba, no bairro operário do Capão Raso, deu as primeiras letras para mim e os filhos das famílias operárias vizinhas, em banquinhos de madeira construídos pelo meu pai Antônio, carpinteiro iletrado, nos quais o Brasil começou para mim (https://paraiso-brasil.org/2025/05/01/os-banquinhos-de-madeira-do-comeco-do-brasil/). Foi Visitadora Sanitária, nobre função pública que hoje se denomina Agente Comunitário de Saúde, e de tanto caminhar para atender às famílias necessitadas desenvolveu um esporão do calcâneo, do qual foi operada. Após a cirurgia, como já não podia caminhar longas distâncias, passou a atender num posto de saúde.
O Caminho de Janira. De viagem em viagem, de bravura em bravura, sempre arrostando as dificuldades e triunfando sobre os obstáculos com a força do trabalho e do amor, com o poder da palavra e do silêncio, Janira chegou à sua viagem definitiva nesta encarnação aos 93 anos, em 7 de janeiro de 2019.
Foi mais ou menos assim. Já cansada e impaciente de ficar por aqui, a obstinada Maria Janira achou um jeitinho para ser convocada ao Céu. 7 de janeiro. Depois de ter acompanhado os Três Reis Magos sob a luz da Estrela do Oriente na viagem a Belém em visita e reconhecimento ao Menino Deus, viagem finda no dia anterior, Janira aproveitou a oportunidade e, no aconchego da manjedoura, com aquela sua mansidão teimosa chamou Maria de lado e cochichou ao seu ouvido. Pediu à Virgem Imaculada que intercedesse junto a Jesus para que ela pudesse, enfim, subir a Escada que conduz à sua Morada na Casa do Pai. A Virgem Mãe ouviu em silêncio a súplica, mas não parecia convencida. Janira então, teimosa, abriu mansamente o coração de Maria em torrente de compaixão com um argumento definitivo e irrecusável para uma mãe, especialmente para a Mãe de todos nós. Disse Maria Janira a Maria Santíssima que estava com saudade de um filho querido, Carlos Alfredo Gomes, o Carlinhos. Queria ver se tudo estava bem com ele. Se não lhe estaria faltando alguma coisa no Céu. Se estava dormindo agasalhado, se colocava meias de lã, porque nunca se sabe como são as madrugadas (vai que o Céu é como Curitiba e o tempo vira de uma hora para outra!)
Maria então assentiu na intercessão e o Pai chamou Janira de volta.
E Janira fez, enfim, sua passagem, após uma vida em testemunho da Esperança de que na obediência à Lei do Amor venceremos a Morte. Janira venceu-a e deixou marcado o Caminho para os filhos, netos, bisnetos, irmãos, primos, sobrinhos, amigos, todos seus admiradores. admiradores do Caminho de Janira.
Para nós, que ainda estamos por aqui, tudo, tudo ficou mais triste sem ela, é verdade. Mas, em Graça, Conformação e Luz, nos assoma à consciência que ela se foi, mas, como nos jogos que se fazia antigamente (e algumas famílias ainda fazem) para as crianças na Páscoa, Janira deixou as pistas e os segredos para encontrarmos a Fonte da Vida, assim como ela a encontrou.
Depois dela está um pouco mais fácil o Caminho. É seguir o Caminho de Janira, como ela seguiu o de Alfredo Gomes e Cecília Vargas Gomes, do Vô Alfredo e da Vó Cilóca, que seguiram o caminho dos navegadores açorianos que aportaram no porto de Rio Grande em 1730 para construir o Brasil (a Roma Tropical de todas as gentes, profetizada por Darcy Ribeiro), construção que segue diuturna hoje e sempre pelo trabalho dos descendentes dos descendentes no labor de honrar o legado dos antepassados.
Legado que é a forma que tomou em nós, os Vargas Gomes de hoje, o misticismo da nossa raça do qual nos recorda e nos comete Fernando Pessoa:
“ Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: Navegar é preciso, viver não é preciso.
Quero para mim o espírito desta frase, transformada a forma para a casar com o que sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade: ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho na essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a Pátria e contribuir para a evolução da Humanidade.
É a forma que em mim tornou o misticismo da nossa Raça.”
Maria Janira Gomes, a valente e bela guerreira, nossa amorosa mãe (do Guilherme, do Carlinhos e minha), é um vigoroso elo, forte e luminoso, do misticismo da nossa Raça.
Um beijo, mãezinha, daqui de baixo para a senhora aí no Alto.
(Samuel Gomes dos Santos)