
Passávamos os dias como combatentes às vésperas de uma grande batalha naqueles primeiros meses.
Brizola conquistara o governo fluminense superando grandes obstáculos, desde atentados à sua vida até a fraude da Proconsult, uma tentativa desesperada de impedir sua chegada ao governo fluminense.

“Agora esse governo começou!”, lembro bem da exultação do Brito ao voltarmos da apresentação do projeto dos Cieps, com a presença de Brizola, Darcy Ribeiro e Oscar Niemayer, no Salão Verde do Palácio Guanabara.
Uma revolução havia sido colocada em marcha.
Estava claro para todos nós.
Brizola não tinha condições políticas de retomar, naquele momento, como nunca mais teve, a reforma agrária e as outras reformas de base preconizadas por ele e por Jango antes de 64, numa retomada do sonho trabalhista de construção de uma civilização justa e soberana no Hemisfério Sul.
No entanto, ele acreditava como ninguém no poder transformador da educação.
Órfão de pai, que morreu emboscado ao retornar da última revolução farroupilha, em 1922, ano do seu nascimento, Brizola e seus irmãos foram alfabetizados pela mãe em Carazinho, interior do Rio Grande do Sul.
Calçou os primeiros sapatos e usou a primeira escova de dentes aos 12 anos, na casa de um reverendo metodista, cuja família o adotou.
Pode, então, estudar até formar-se em engenheiro.
Fora salvo pela educação.
Quando governador do Rio Grande do Sul (1958-1962), construiu nada menos do que 6.300 escolas.
“Nenhum município sem escola”, era o lema.
Mas a realidade do Rio de Janeiro nos anos 80 era bem diferente.
Ao retornarem do exílio, após 15 anos, Brizola e Darcy se depararam com a obra macabra da ditadura: o inchaço das grandes cidades, o aprofundamento das desigualdades sociais, a favelização, a desestruturação das familias e o surgimento do crime organizado, que separavam, como bem sabemos hoje, nossos jovens de seu futuro.
Aquelas escolinhas alfabetizadoras e formadoras de mão-de-obra técnica e rural do Rio Grande do Sul não resolveriam o problema do Rio de Janeiro pós-golpe.
A solução: uma escola integral em turno único, ofertando educação, cultura e cidadania; mantendo os jovens durante todo o dia longe das ruas e da sedução do crime organizado; dando alimentação, assistência médica, esportes, cultura e muito mais.
Tudo isso, porém, tinha um custo e exigiria a ruptura de um velho padrão da política brasileira – de que os recursos públicos sejam colocados à disposição das elites e não do povo.
A quebra desse princípio e a defesa da soberania brasileira levaram o presidente Getúlio Vargas ao desespero e suicídio; o presidente João Goulart à morte no exílio; o governador Leonel Brizola a uma perseguição implacável; a presidente Dilma, já neste século, à deposição; e o presidente Lula à cadeia injusta, culpados, todos eles, por fazerem transferência direta dos recursos públicos para o povo e não para as elites.

Logo após o lançamento do programa dos Cieps, Brizola ainda tentou estoicamente obter o apoio do então presidente das Organizações Globo, Roberto Marinho.
Sabia o quanto ele seria capaz de influenciar, para o bem ou para o mal.
Apresentou-lhe pessoalmente o projeto e nos relatou depois:
“Ele olhou, olhou, olhou e não disse uma palavra.
Em uma segunda oportunidade em que nos encontramos, eu cobrei: ‘Então, doutor Roberto, o que achou do nosso projeto’.
Então ele disse: ‘Olha, governador, se o senhor quer construir escolas, está muito bem.
Mas não precisa disso tudo.
Faça umas escolinhas… Pode até fazê-las bonitinhas, tipo uns chalezinhos…’.
” Depois disso não houve mais diálogo entre eles.
Os Cieps começaram a brotar do chão com a arquitetura inconfundível de Oscar Niemeyer.
Eu fazia sobrevoos de helicóptero para vistoriar e fotografar o andamento das obras e, vistas do alto, indisfarçáveis, pareciam pragas que irrompiam da terra árida dos subúrbios e das cidades da Baixada Fluminense.
Era a praga rogada pelo povo esquecido que, enfim, tomava sua forma visível e ameaçadora, pois apontava para uma nova ordem.
Ao longo dos seus dois governos no Rio de Janeiro, uma das maiores satisfações de Leonel Brizola era exibir, orgulhoso, aos visitantes, o seu projeto futurista para o Brasil.
Ele levou diversas personalidades internacionais – algumas que acabaram depois batizando com seus nomes unidades de Cieps, como Nelson Mandela –, incluindo companheiros da Internacional Socialista, como Mário Soares, François Mitterrand e Felipe Gonzáles, para conhecer de perto o que seria um dos principais caminhos rumo ao “socialismo moreno”.
“As gerações formadas pelos Cieps farão por este país aquilo que nós não pudemos ou não tivemos a coragem de fazer”, afirmava Brizola. Esta, e só esta, é a razão do ódio e do horror que essas escolas incutem até hoje nas elites.
Eles ainda estão aí.
Descaracterizados, desconstruídos, desativados, degradados, a maioria deles.
Mas cada um desses 508 Cieps ainda traz consigo a semente da grande revolução sonhada por Brizola e Darcy.
São quinhentas “toras guarda-fogo”, feitas de concreto armado, para citar uma imagem dos pampas gaúchos com que Brizola gostava de ilustrar o Trabalhismo de Vargas e o futuro do nosso povo:
“Às vezes a fogueira do gaúcho parece ter-se apagado ao longo da noite, sob o efeito do sereno e da geada, mas existe sempre uma tora guarda-fogo que esconde a sua centelha interior.
Pela manhã, ao se levantar, basta ao gaúcho assoprá-la para a chama ressurgir com força e vigor.”
Quarenta anos depois de iniciada, a revolução dos Cieps continua em marcha.
O ódio destilado por Roberto Marinho – como demonstrado na recente pesquisa de André Lemos, autor do livro Globo versus Ciep: o embate! – e por todos aqueles que, desde setores elitistas da esquerda carioca até os vassalos da Globo no governo fluminense, como Moreira Franco e Marcello Alencar, boicotaram o programa até o seu desmantelamento, não foi capaz de apagar a centelha deixada por Brizola e Darcy.
“Há muita gente que acha que isto é gasto.
Gasto é construir presídios para tirar os jovens do narcotráfico.
Educação é investimento.
Nós estamos nos rendendo ao Brizola e ao Darcy e à escola de tempo integral.
As crianças têm o direito de escola de tempo integral, com acesso à cultura, à música, à arte.
Esse país não tem volta, nós vamos apostar na educação de tempo integral para que as famílias fiquem tranquilas que os filhos estão seguros aprendendo não apenas que o Cabral descobriu o Brasil, mas aprendendo cultura, música e coisas da vida real”, disse Lula.