Original em: https://www.afbndes.org.br/vinculo/opiniao/vai-no-cabare-por-paulo-moreira-franco/
Faz meses (quem sabe mais) que ando com uma comichão para escrever algumas coisas antipáticas, ranzinzas, coisas como essa que vem adiante.
Antipáticas em relação às pessoas em geral; antipática em relação a você, leitora; antipático me olhando no espelho da minha classe; antipática em relação aos que moram no espelho retrovisor.
Até fevereiro deste ano eu acharia uma barbaridade a punição de 14 anos sobre a senhora que pichou uma estátua com batom no badernaço do aniversário de Elvis, um excesso monstruoso de nosso Judiciário.
Não que hoje tenha passado a acreditar que ali houve uma tentativa de golpe, longe disso.
Ou que ache que o tamanho da pena se adequaria ao crime específico.
Mas hoje acho que há uma importante lição sendo dada a baderneiros do futuro, um ato exemplar do Judiciário por suas vias tortas.
Foram os atentados contra Teslas que começaram pouco depois da posse de Trump que me fizeram ver que o problema daquela não-pobre coitada é outro.
Há uma definição de classe média do Graeber, que lembro de ter colocado no VÍNCULO mais de uma vez, de que se você vê um policial e se sente mais seguro, você é de classe média.
Fácil de exemplificar: os otários de verde e amarelo tirando selfies com PMs nas manifestações contra Dilma, por exemplo.
No caso americano, os liberals que se julgam no poder de praticar pequenos vandalismos por motivação política e isso vai ficar por isso mesmo, até porque eles são acumuladores de virtudes.
A classe média acha que a lei nunca irá atrás dela.
Em Lisboa havia um Tesla frequentemente estacionado em frente ao prédio do meu primo. E toda vez que passávamos ao lado dele o carro acendia umas luzinhas notando nossa presença.
Em cada Tesla há um daqueles postes que o pessoal de Internet das Coisas alardeava uma década atrás, uma solução para problemas de segurança pública, trânsito etc.
Vandalizar um Tesla é a garantia de que você será filmado nesse ato.
Que depois da primeira semana de venturosos revoltados as pessoas não soubessem disso, essas pessoas devem ser reenquadradas da condição de rebelde para a condição de otário.
E ao otário só se permite ser a parte passiva de um negócio, diz a sabedoria popular.
Repare um black bloc, amiga.
Eles não se vestem daquela maneira pois se inspiram no visual dos ninjas.
Eles o fazem para minimizar a capacidade de serem reconhecidos pela polícia.
Se quer praticar uma ilegalidade ou uma violência, não facilita as forças da ordem.
Não posa para redes sociais.
Ah, mas se você acha que não está fazendo nada demais?
Que, tipo assim, todo mundo ali está fazendo isso e… e o fato de que a maioria dos foliões mijando em postes não foi detido, multado, seja lá o que for, não quer dizer que esse ato se torna legal ou bacana.
Capisce?
Mas voltando ao black bloc, este é um “profissional” no uso da violência política.
Não é um amador como você, leitora, como a não-pobre coitada do batom, como os riscadores de Tesla.
Esses (e nós), somos otários (não confundir com os “trouxas” de Harry Potter, se bem que se parar para pensar não é distante disso).
Há um importante papel do otário na política, não vamos nos desmerecer.
Nós somos número, nós somos fé.
Não nos contam, não contamos, mas nós somos contados.
Em 84 eu estava lá na manifestação das diretas, luta vitoriosa pois conquistamos… a eleição indireta de Tancredo num grande pacto de elites, um governo Sarney de 5 anos e o direito a uma nova Constituição bacana, que acabou sendo escrita pelo Centrão.
Tá, em algum momento no metrô em que me dirigi com amigos para a manifestação me caiu a ficha que aquelas pessoas arrumadinhas indo para a manifestação no nosso vagão não eram o início de uma revolução.
Nem que daria para contar com elas sequer para votar em favor de uma mudança de fato.
Nos caras pintadas que ajudaram na derrubada de Collor I was already too old for that shit.
E Collor caiu, mais por achar que resolveria de forma mágica seus problemas do que pela luta política dos estudantes.
E se conseguiu… Fernando II, eleito por dois mandatos, seu neoliberalismo de privatização e desindustrialização.
Em 2013 as pessoas foram à rua por, por, por… tempos estranhos esses que vieram no pós-occupy, tempos muito estranhos (eles estão acabando, mas isso é outra história.
Aliás, é a retomada da História).
O pessoal de 13 com sua luta difusa por sabe-se lá o que conquistou a legitimação para as manifestações de 16, quando se conseguiu derrubar Dilma… para descobrirem os não-pobres coxinhas que o Congresso votando o impeachment era uma obra de terror by Lombroso; e que não vinha um tucano encantado montado num unicórnio, mas Temer, algo assombroso.
E após Temer conquistou-nos Jair.
Portanto, em qualquer coisa que não seja para fazer número numa manifestação, acreditar de coração que aquilo vai mudar o mundo, “otário não se mete”.
Aceita, amiga, que o seu, o meu, o papel da grande maioria das pessoas é o de figurante da História.
Da conquista de algo que não é o que você sonha, mas de um possível que por vezes você abominaria.
Você por vezes se sentirá enganada, e sim, você foi enganada.
Enganada entre outras coisas por você mesma em seu idealismo, enganada pelos que conversam na mesa e fazem a política enquanto conversa sem otários.
Se você não fez esse papel ainda, torça para um dia ter a didática felicidade de fazê-lo.
Seja parte de uma grande manifestação que irá transformar o país, a cidade, o Mundo.
Falando em ser enganado, alguém se lembra do neto de Bob Fields?
Ainda no assunto de quem senta à mesa, uma pequena observação benedense: ninguém notou qual a sigla do plano que substituiu o PECS?
NPCS gritantemente convida a ser chamado de NPCs.
Se você não conhece, amiga, NPC é uma das formas favoritas da direita (descendente do) 4chan chamar as afetadas pessoas da esquerda contemporânea: Non Playing Character.
Aqueles personagens num jogo que você não pode assumir, que estão ali sem ter de fato vontade própria, meros figurantes.
Chamar os novos funcionários de NPCs de fato é uma (aparentemente) involuntária (e acurada) piada neorreacionária.
Que ela tenha acontecido pode ser sintoma tanto de sincera falta de imaginação quanto de excesso de perspicácia de algum sacana.
Minha experiência com coisas como Joaquim Levy sugere o primeiro caso.
E com licença que a música me chama pra pista.
……………………………………………………………………….