Tenho observado um comportamento cada vez mais recorrente que se assemelha a uma espécie de empobrecimento espiritual.
Percebo que muitas pessoas agem exclusivamente em benefício próprio ou de um grupo fechado, operando dentro de uma lógica ética quase tribal, sustentada por uma racionalidade instrumental rudimentar.
O outro só importa na medida em que é funcional à realização de projetos egóicos.
Essa lógica revela não apenas uma miopia ética, mas uma profunda incapacidade de se reconhecer como parte da fraternidade humana.
Erich Fromm (1900–1980), chamaria isso de mutilação da alma, uma amputação moral que converte o sujeito em simples engrenagem do próprio narcisismo.
Erich Fromm, psicanalista e filósofo humanista, dedicou boa parte de sua obra a denunciar os mecanismos pelos quais o sujeito moderno se alienou de si mesmo, dos outros e do sentido mais profundo da existência.
Subjugado pela lógica do ter dissociado do ser, o indivíduo contemporâneo passou a medir sua realização pela acumulação material e pela capacidade de exercer controle sobre a vida daqueles que o cercam.
Em sua obra Ter ou Ser?, Fromm argumenta que esse modelo de vida, centrado na posse e no poder, conduz inevitavelmente à perda do enraizamento ético e espiritual.
A miséria espiritual se instala quando a existência humana é reduzida a ciclos de dominação social e à busca incessante por vantagens pessoais.
Sob essa lógica, os vínculos se tornam frágeis, permeados por interesses oportunistas, e a presença do outro deixa de ser acolhida como alteridade legítima, passando a ser percebida como ameaça, obstáculo ou mero instrumento de uso, sujeito ao descarte conforme as conveniências.
Assim, o indivíduo, em sua bolha relacional, torna-se paradoxalmente solitário em meio à multidão.
A fraternidade é substituída por relações marcadas pela tensão e pela necessidade permanente de provas de confiança, convertidas em tributo exigido para justificar o pertencimento ao círculo fechado.
Com base nesses entendimentos, Fromm sustenta que somente ao reencontrar uma ética do ser pautada pela presença genuína e pelo reconhecimento mútuo, é possível restaurar a integridade psíquica e moral do sujeito.
Mais do que uma escolha moral, trata-se de uma exigência vital para a sobrevivência do humano em sua plenitude.
Nessa direção, a cura para a pobreza espiritual não reside no acúmulo de posses nem na centralização em redes de poder, mas na redescoberta do outro como extensão fraterna de si mesmo.
Essa reconexão, embora exigente, constitui condição essencial para a regeneração individual e coletiva.
Caminhando em paralelo aos entendimentos de Erich Fromm, e no mesmo sentido do diagnóstico sobre a miséria interior como forma de empobrecimento do ser, a Teoria da Dádiva oferece uma saída radical: o desapego.
Amparados por essa abordagem, os sociólogos Jacques Godbout e Alain Caillé, em O Espírito da Dádiva, argumentam que, mesmo em sociedades modernas marcadas pelo individualismo e pelo desejo de domínio social, a lógica da dádiva persiste.
Ela resiste nos gestos que escapam ao cálculo da obtenção de vantagens, nas amizades verdadeiras, no cuidado espontâneo e no interesse genuíno pelo bem comum, em nítido contraponto à busca por privilégios.
Godbout e Caillé sustentam que a dádiva é um princípio organizador alternativo à dominação.
Não carrega consigo qualquer forma de coerção, nem explícita nem velada.
É generosidade com compromisso ético, permanência sem exigência de contrapartidas.
Em tempos de pobreza espiritual, em que o outro é frequentemente reduzido a obstáculo ou ferramenta a serviço de objetivos exclusivos, a dádiva reacende a possibilidade de um novo pacto entre os humanos, um pacto fundado não na utilidade, mas na reciprocidade viva, sensível e coletiva.
Com a memória afetiva dos aprendizados extraídos das obras desses nobres autores, percebo que a travessia da pobreza espiritual à experiência da dádiva é uma caminhada para toda a vida, mas possível.
Exige decolonizar o desejo, recusar conscientemente as lógicas instrumentais que infestam as relações humanas geração após geração, bem como reabilitar a fraternidade como potência do encontro, da escuta e do cuidado.
Ao reaprendermos a dar sem esperar retorno, ao reabilitarmos o desapego e a presença verdadeira do cuidado generoso, será possível reconstruir o que foi perdido.
Viver com a dignidade de existir para além de si.
Ainda há tempo.
Há esperança nas dádivas possíveis do cotidiano, em um gesto de confiança, em um olhar sincero em resposta a outro olhar perdido, em uma palavra que não se economiza por conveniência.
Que essas sementes dadivosas encontrem abrigo fértil, para que brotem e nos transformem juntamente com o solo árido que se tornou a vida.
Pois é na germinação dessas ações generosas que pode florescer um futuro mais digno para todos nós.
Assim seja.