
Original em: https://www.afbndes.org.br/vinculo/opiniao/herois-e-viloes-por-paulo-moreira-franco/
“Heroes and villains
Just see what you’ve done”
(Van Dyke Parks)
E de uma hora para outra a crise pela qual a Califórnia passa ganha outro significado.
Se algo é símbolo de uma Califórnia ensolarada, de pura alegria e positividade, isso foram os Beach Boys.
E nesta quinta não tem mais Brian Wilson.
Por um breve momento, antes de surtar na tentativa de bater o Sgt. Pepper’s dos Beatles, naquela que talvez tenha sido a mais importante corrida armamentista da música pop, Brian Wilson foi responsável por duas obras primas de absoluta perfeição.
A primeira, Pet Sounds, é um dos mais extraordinários LPs já feitos, especialmente se você o ouvir no contexto da música da época.
Há algumas pessoas, como Sir Paul McCartney, que consideram “God Only Knows” como a melhor música já feita. Ele está longe de estar errado.
É uma música de uma sofisticação harmônica ímpar para o pop da época… e de sempre.
(Pequena digressão pessoal: há um cover do meu adorado David Bowie dessa música num de seus discos medíocres dos 80. Curiosamente, Bowie tem covers sofríveis de duas músicas que creio estarem no meu top 500: “God Only Knows” e “Pablo Picasso”, do Modern Lovers.
Para alguém capaz de cometer versões sublimes, como a de “Wild is the Wind” ou a de “My Death”, a mediocridade geral de um disco contamina mesmo o sublime que uma música possa ser antes de arranjada e gravada.)
“Good Vibrations” é a outra peça musicalmente revolucionária, certamente um dos maiores singles da história.
E depois disso, Ícaro caiu de seu voo, e Smile só terminou de ser criado quase quatro décadas depois.
Há um belo filme sobre Brian Wilson, que saiu aqui com o impreciso título de “The Beach Boys: Uma História de Sucesso”.
Vi num FestRio, no mesmo FestRio onde vi Straight Outta Compton: A História do N.W.A., outro filme sobre música e Califórnia.
Outro filme muito bom.
Outro filme sobre um disco fundamental, Straight Outta Compton, um dos discos mais seminais de Rap.
Pessoalmente, acho que, ao contrário de Beatles e Beach Boys, há trabalhos posteriores de membros individuais do NWA que superam esse coletivo: o trabalho solo de Dr. Dre e suas produções para outros músicos, como Snoopy, Tupac e Eminem.
E não esqueçamos do headphone.
Mas já, já explico porque falo desse filme.
Dois dias antes da morte de Brian Wilson, morreu Sly Stone (curiosamente, ambos com 82 anos, os dois tinham menos de um ano de diferença).
Sly and The Family Stone é outra banda californiana ensolarada dos 60, conquanto no início dos 70 a realidade é outra, e eles cometeram um disco também sublime, disco que é raiz para muito do pop contemporâneo. There’s a Riot Goin’ On, no próprio título, já retrata essa outra realidade que não é de sorrisos e pranchas de surf, mas um mundo de violência e luta.
Curiosamente, a matéria do G1 menciona o disco mas não menciona a “Family affair”, o hit desse disco.
Será por conta da semelhança gritante desta com um trabalho dos Tribalistas?
Mas voltando, a música (não só negra) sai do basicamente ensolarado caminho dos sessenta para situações mais sombrias.
Ela passa a refletir esses levantes/desordens.
Ela passa a refletir, nesse caso, a transformação dessa Califórnia sob o governo de Ronald Reagan.
Mas voltemos a Compton, de onde sai o NWA, de onde sai Ice Cube que irá atuar em “Os Donos da Rua”. Compton, num certo sentido, reflete certas transformações demográficas da Califórnia.
De um lugar de classe média negra, onde no censo de 1980 quase três quartos da população era negra, Compton no censo de 2020 era uma “cidade” (dentro do município de Los Angeles) onde setenta por cento da população era latina e apenas um quarto, negra.
“Os Donos da Rua” trata, numa cena muito didática, do problema de gentrificação.
Se repararem na cena, os “invasores” são os coreanos, e boa parte dos atos de violência nos riots de 1992, que começam com a absolvição de policiais que foram filmados agredindo Rodney King, um cidadão negro, foi dirigida contra imigrantes coreanos e outros asiáticos.
A confusão atual começou com a Immigration and Customs Enforcement (ICE) dando uma batida em alguns lugares onde haveria imigrantes ilegais.
O governo da Califórnia e a prefeitura de Los Angeles têm por política não cumprir as leis federais relacionadas à imigração.
Você pode julgar isso como algo humanitário.
Mas é fato que imigrantes são contados no censo e, portanto, entram no cálculo de cadeiras para o Congresso e, por tabela, votos no Colégio Eleitoral que elege o presidente.
Há, portanto, ao menos essa questão política significativa envolvida.
E está muito claro que parte da violência é conduzida por “profissionais” da violência política (militantes anarquistas de diferentes estados, por exemplo), ao contrário da revolta racial local de 1992.
Claro que numa mídia que só agora, por exemplo, reconhece a senilidade de Biden, qualquer ação tomada pelo governo Trump será tida como o ato supremo de tirania. Em 1992, a mesma guarda nacional e os mesmos fuzileiros foram enviados para conter os riots.
Mas agora o governador não pediu ajuda. Isso torna assim tão diferente?
Ou existe uma irresponsabilidade do governador, como houve aqui a do governador de Brasília no 8 de janeiro?
Devo já ter escrito isso em algum momento (meio que aqui e aqui), mas o inimigo principal do trumpismo é interno, seja nas fronteiras nacionais americanas, seja no espaço do Ocidente.
Isso não impede que alguma escalada militar lhe venha a ser forçada: Ucrânia, Israel, Reino Unido, países bálticos… há uma série de atores desesperados para causar uma guerra regional onde os americanos serão chamados a intervir.
Mas essa não parece ser a meta do governo Trump.
Em meio a essa confusão, dia dos namorados, ouçamos o Pet Sounds:
Wouldn’t it be nice if we were older?
Then we wouldn’t have to wait so long
And wouldn’t it be nice to live together
In the kind of world where we belong?