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As origens do republicanismo antipopular e os impasses do presente

Por Rodrigo Medeiros, Luiz Henrique Faria e Rafael Buback Teixeira

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O Brasil iniciou a sua campanha de vacinação de forma tumultuada e, de acordo com a imprensa, após 51 países terem iniciado suas campanhas domésticas. Contendas políticas, negacionismo e falhas no planejamento logístico são aspectos notórios do imbróglio que se tornou o processo de vacinação. Existem, ademais, informações públicas de que há escassez de insumos provenientes da China ameaçando, gravemente, a fabricação de vacinas do Butantan e da Fiocruz. O ato político e midiático do início da vacinação em São Paulo, no dia 17 de janeiro, repercutiu federativamente e mostrou, mais uma vez, a frágil situação da gestão federativa da crise e os problemas na nossa institucionalidade republicana.

A desarticulação federativa no combate à pandemia e as disputas políticas que miram 2022 são claras. Tais tipos de fatos não causam surpresas quando tomamos um pouco de tempo para analisar a história de nossa República, que foi constituída a partir de um golpe militar, seguido de uma ditadura, após a abolição da escravidão. A República Velha (1889-1930), darwinista e que alguns buscam reeditar no Brasil desde 2016 por vias de um reformismo regressivo, ainda que inconscientemente, foi um tempo de coronelismo político, clientelismo, patrimonialismo e fraudes eleitorais.

As questões sociais, que eram tratadas como casos de polícia, e as reações governamentais ao contágio da gripe espanhola, em 1918, ainda têm muito a nos dizer em termos de negacionismo e de incapacidade política no trato das necessidades populares, quando estas entram em conflito com os interesses hegemônicos. No livro “A era do saneamento”, editado pela Hucitec, em 1998, o pesquisador Gilberto Hochman argumentou que na Primeira República “houve uma crescente identificação dos problemas de saúde como um dos principais elos de interdependência da sociedade brasileira”. O Brasil se assemelhava a um grande hospital de trabalhadores doentes e, portanto, improdutivos para o desenvolvimento do país. A atuação do movimento sanitarista foi crucial para a expansão racional da intervenção estatal no campo da saúde coletiva, algo que contrariava o darwinismo social da “república dos fazendeiros”.

Segundo Hochman, ao longo da Primeira República, “na realização de seus interesses, as oligarquias, em especial as vinculadas à cafeicultura, recorreram à autoridade pública para regular atividades econômicas em face da alternativa do mercado”. Socialização de prejuízos e concentração de rendas e riquezas. Tal opção pelo intervencionismo estatal, prioritariamente em favor de grupos hegemônicos, contribuiu para a construção das bases de um poder público inspirado na ideologia do darwinismo social. O neoliberalismo tem raízes históricas profundas no Brasil.

Nos tornamos um país urbano, parcialmente industrializado, na segunda metade do século XX. Ainda assim, as questões regionais, suas desigualdades históricas e estruturais, além do domínio que os grupos oligárquicos exercem sobre as populações, merecem reflexão. Restam poucas dúvidas de que o Brasil perdeu oportunidades históricas importantes em termos de processo civilizatório, por não ter realizado uma reforma agrária no período de instituição da República e por não ter realizado uma reforma tributária progressiva sobre rendas e patrimônios após a Segunda Guerra Mundial. No Brasil, a distribuição das rendas e de riquezas foi um entrave ao desenvolvimento econômico, à industrialização. Somente foram aceitas, pelas elites econômicas e políticas, reformas de caráter regressivo em termos de direitos sociais. Quando se buscou promover ou quando houve a promulgação de legislação social, de proteção ao trabalho, por exemplo, as falas hegemônicas de que o país quebraria se manifestaram, assim como os conservadores do Clube da Lavoura buscaram desqualificar a campanha abolicionista na segunda metade do século XIX. Nesse sentido, é possível dizer que a democracia brasileira, de baixa intensidade, ficou aprisionada em um processo de construção cronicamente interrompido.

Do ponto de vista histórico e estrutural, consideramos uma leitura de alta relevância o livro “Da monarquia à oligarquia”, editado pela Alameda, escrito pelo cientista político e professor Christian Lynch. Logo na introdução do livro, Lynch deixa o falecido político liberal Joaquim Nabuco “falar” a partir de seus escritos. Nabuco “denunciava o republicanismo como uma campanha orquestrada pelas elites insatisfeitas com o abolicionismo monárquico para instaurar um regime oligárquico no Brasil”. O republicanismo de então, para Nabuco, era a contrarrevolução social.

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Joaquim Nabuco argumentava, naqueles tempos, que “as oligarquias republicanas, em toda a América, têm demonstrado ser um terrível impedimento à aparição política e social do povo”. Em relação ao Brasil, a Primeira República “não passaria de um colégio oligárquico autoritário e reacionário, que fecharia as portas para toda e qualquer possibilidade de pluralismo político”. A dissidência oligárquica de 1930 não mudou estruturalmente o quadro descrito por Nabuco, ainda que seja preciso reconhecer que a Era Vargas promoveu transformações relevantes, inclusive uma legislação social para o trabalhador urbano. A modernização conservadora brasileira é um tema bem descrito em diversos livros publicados e ela repercutiu na industrialização inconclusa brasileira, no fato de termos permanecido presos à armadilha da renda média.

O livro de Christian Lynch, por sua vez, busca compreender as razões do quadro de inefetividade institucional, ou seja, da disjunção entre a forma institucional e as práticas políticas no Brasil. Não convém esquecermos, como nos lembra o cientista político, que a referência teórica do republicanismo liberal brasileiro era a obra de Herbert Spencer. Para Spencer, descreveu Lynch, “a pobreza era fruto da incapacidade moral dos menos capazes, que deveriam ser deixados à própria sorte. A condenação moral de qualquer legislação social progressista e socializante, sob o argumento de desperdício do dinheiro dos contribuintes, não é nova entre nós.

Ainda segundo Lynch, Spencer dirigia duras críticas contra “o viés socializante que a transição para a democracia adquiria nos países centrais, advertindo para o perigo que, para a liberdade e a civilização, representava um Estado atuante no plano social e interventor no plano econômico”. Os argumentos ideológicos darwinistas, de outros tempos, não são tão diferentes dos argumentos neoliberais do presente. Para quem defende as disfuncionais concentrações de rendas e riquezas no Brasil, incluindo a preservação de instituições extrativas de valor da sociedade, trata-se de música para os ouvidos. O problema é que, ao seguirmos por esse caminho, dificilmente construiremos a grande nação que ainda poderemos ser.

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“Sobre o autoritarismo brasileiro”, editado pela Companhia das Letras e escrito pela professora Lilia Moritz Schwarcz, é outro importante livro que nos ajuda a compreender os dramas e o peso do passado sobre o presente. Publicado em 2019, o livro resgata reflexões de intérpretes do Brasil. Merece destaque o conjunto de reflexões sobre o legado da escravidão e a violência endêmica nacional. De acordo com Schwarcz, apoiando-se na obra do sociólogo Florestan Fernandes, “o maior legado do sistema escravocrata, aqui vigente por mais de três séculos, não seria uma mestiçagem a unificar a nação, mas antes a consolidação de uma profunda e entranhada desigualdade social”.

A professora afirmou que a escravidão “só poderia originar uma sociedade violenta e consolidar uma desigualdade estrutural no país”. Não convém esquecermos que o Brasil foi o último país a abolir a escravidão nas Américas. O fato de termos sido uma colônia de exploração e do nosso território ter sido dividido em grandes propriedades monocultoras, que concentravam o poder do mando e da violência, explica parte dos nossos dramas presentes. Segundo ponderou Schwarcz, “a despeito de o Brasil ser, cada vez mais, um país urbano, aqui persiste teimosamente uma mentalidade e lógica dos latifúndios, cujos senhores viraram os coronéis da Primeira República, parte dos quais ainda se encastelam em seus estados, como caciques políticos eleitorais”.

Rodrigo Medeiros, Luiz Henrique Faria e Rafael Buback Teixeira são professores do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes)

 

Esse artigo foi retirado da publicação feita no site “Jornal GGN”, do dia 21 de janeiro de 2021.

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