Carta:
Por Roberto d’Araújo
Ao ler que “preços baixos de energia geram corrida por contratos de longo prazo”, imagina-se que o já privilegiado mercado livre quer garantir por mais tempo essa vantajosa situação. Mas, ao analisar os dados, percebe-se que os contratos de “longo prazo” não ultrapassam dois anos e, na realidade, se reduziram. No texto sobre a conta de luz do brasileiro, lê-se a seguinte frase: “As distribuidoras estão comprando energia a R$ 270/MWh e estão vendendo a sobreoferta a R$ 69/MWh.” Quem está comprando a R$ 69? Quem vai pagar a diferença? Parece que apenas a segunda pergunta tem resposta.
Confira texto publicado na íntegra.
Por Sales, Müller e Hochstetler
Entre 2025 e 2031 os contratos de concessão de 20 das 53 grandes distribuidoras de eletricidade que atendem a cerca de 60% do mercado nacional terão seus prazos vencidos. As concessionárias que tiverem a intenção de prorrogar seus
contratos precisam se manifestar com 36 meses de antecedência em relação ao fim da concessão. Ciente da relevância eurgência do tema, o Ministério de Minas e Energia (MME) abriu em 22 de junho a Consulta Pública 152/2023 para que a sociedade manifeste suas contribuições sobre o tema até o dia 24 de julho.
A responsabilidade envolvida neste processo é gigante. Afinal, quanto mais cedo forem definidas as diretrizes para a prorrogação dos contratos, mais cedo se reduz a incerteza jurídica que pode prejudicar a continuidade dos investimentos bilionários que precisam ser feitos de forma constante nas redes de distribuição para manter a adequada prestação de um serviço público essencial à população.
Grande parte das diretrizes concebidas pelo MME sobre o assunto – documentadas na Nota Técnica 14 que embasa a Consulta Pública 152 – são sensatas e endereçam as expectativas dos especialistas e empresários que trabalham a partir de
uma visão de longo prazo e sustentável para o setor elétrico.
Uma das premissas mais acertadas é a opção pela prorrogação das concessões com o objetivo de reduzir tanto os custos de transação quanto os riscos de comprometimento da continuidade do serviço envolvidos em um processo licitatório.
Destaca-se também a previsão de separação contábil das atividades de distribuição das outras atividades que podem vir a ser prestados por terceiros. Mas é preciso ressaltar alguns pontos que comprometem a coerência da política de concessões
elétricas.
O primeiro ponto problemático da Nota Técnica 14 do MME é a chamada “captura do excedente econômico”, e tal reação se justifica pela sua incoerência regulatória e econômica. De forma resumida, o MME propõe a realização de uma
“investigação” para avaliar a existência de um “eventual excedente econômico” a ser capturado no processo de prorrogação das concessões.
A constatação desse excedente seria feita por meio de um indicador que faria a comparação entre os retorno efetivamente obtidos e os custos do capital próprio regulatório determinado pela Aneel. Além dos problemas técnicos envolvidos em um indicador que é, por natureza, muito volátil, o conceito de ‘captura do excedente econômico’ implica intervenção no regime regulatório adotado pela Aneel, violando a delimitação das competências das instituições que a própria Nota Técnica do MME defende: com o MME formulando as diretrizes para as políticas públicas e a Aneel
implementando as soluções regulatórias.
Na prática, a captura de excedente econômico desvirtuaria o regime regulatório vigente, substituindo o regime de ‘preço teto’ (Price Cap, conceito amplamente documentado na literatura) por um regime de ‘compartilhamento do lucro’ (Profit Sharing ou Sliding-Scale Regulation).
Além disso, configura uma expropriação ex-post dos resultados das empresas que não só prejudica as empresas que investiram e pautaram suas ações com base no regime regulatório previamente estabelecido, mas também prejudica os consumidores que arcarão com os maiores custos de captação de recursos no
futuro dado a elevação do risco setorial que tal intervenção provocaria neste setor capital intensivo.
Portanto, não faz sentido uma “investigação acerca da existência de excedente econômico” e muito menos a adoção de mecanismos para “captura de excedente econômico”. Um segundo ponto equivocado da Nota Técnica 14 do MME é a intenção de se capturar os “benefícios fiscais” para custear “contrapartidas sociais” como condicionante para a prorrogação das concessões de distribuição. Entende-se que tais benefícios se referem aos incentivos fiscais concedidos para concessionárias que operam na área da Sudam e Sudene.
Esta é uma questão de fundo constitucional e legal – conforme já se manifestaram ministros do Supremo Tribunal Federal – sobre a qual não cabe ao Ministério de Minas e Energia ou à Aneel decidir.
O terceiro ponto de atenção é a proposta do MME para a estipulação de diretrizes visando a promover maior homogeneidade dos indicadores de qualidade do serviço de distribuição de eletricidade entre as diversas concessionárias do país. Esta diretriz precisa ser revista por desconsiderar: (a) a diversidade de preferências dos consumidores, já que
alguns consumidores podem preferir pagar mais para obter maior qualidade de serviço, enquanto outros podem priorizar a modicidade tarifária, mesmo com qualidade do serviço inferior à requerida pelos primeiros; e (b) a diversidade de custos da provisão de qualidade de uma área geoelétrica para outra.
Um quarto ponto relevante é o problema de furtos e fraudes de eletricidade, que reduzem as receitas das distribuidoras e elevam as tarifas dos consumidores. Este é um fenômeno socioeconômico complexo que é endêmico em algumas áreas de
concessão em que o Estado é ausente e já é insustentável em áreas com restrições de atuação da concessionária.
As diretrizes propostas pelo MME na Nota Técnica 14/2023 buscam sabiamente mitigar o problema com medidas especiais voltadas à promover investimentos na eficientização do consumo nestas áreas e promover uma melhor alocação dos riscos
associados.
Um quinto ponto seria de prever a possibilidade de adoção de uma regulação tarifária prospectiva, baseada em planos de investimentos que permitisse a majoração da tarifa ao longo do ciclo tarifário condicionada à efetiva realização dos investimentos programados.
Os passos iniciais para a prorrogação das concessões de distribuidoras de eletricidade dados pelo Ministério de Minas e Energia caminham na direção correta. Cabe agora uma postura de abertura para ouvir as contribuições da sociedade na consulta pública sobre o tema e acolher os ajustes e aprimoramentos necessários para a pavimentação de um futuro sustentável para a distribuição de eletricidade, setor fundamental para o bem-estar da população e para a competitividade econômica do país.
Claudio Sales, Eduardo Müller Monteiro e Richard Hochstetler são do Instituto Acende Brasil
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