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Fantasia para os tempos em dissolução

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Paulo Moreira
Paulo Moreira
Economista aposentado do BNDES

“Camarada, por estes calores do Estio que embotam a ponta da sagacidade, repousemos do áspero estudo da Realidade humana… Partamos para os campos do Sonho, vaguear por essas azuladas colinas românticas onde se ergue a torre abandonada do Sobrenatural, e musgos frescos recobrem as ruínas do Idealismo… Façamos fantasia!.”
(O Mandarim, Eça de Queiroz)

O quanto o manto da fantasia permite discutir o Mundo sem os vieses de nossa torcida, de nossas paixões (políticas)? O quanto nossas fantasias são necessária (e literalmente a) reflexão do mundo ao redor, lunático esplendor do que não podemos apreciar diretamente, voz de Metatron?

Há dois textos que gosto bastante, ambos com uma certa idade, tratando da fantasia (enquanto estilo literário) e sua relação com o mundo real. Num deles, no final dos 90, David Graeber discutiu Buffy, a Caça-Vampiros. Rebelde Sem Deus é um artigo curto e interessante. “Today’s rebellious youth, rather, are reduced to struggling desperately to keep hell from entirely engulfing the earth. Such, I suppose, is the fate of a generation that has been robbed of its fundamental right to dream of a better world.”, como diz ele na conclusão, faz um belo paralelo ao Sem Logo de Naomi Klein, ao Realismo Capitalista de Mark Fischer, obras que viriam depois. A boa poesia, a boa literatura, o bom ensaio, têm por vezes a propriedade de ser proféticos. Buffy foi uma fantástica série fantástica, e embora eu já velho para o que era o target demográfico na época, impossível não acompanhar a partir do momento em que tomei consciência de sua existência.

O outro também curto artigo, do China Miéville, discute monstros. “I think what’s going on here is that there’s something about modernity and capitalism that you simply can’t think about it in “realistic” ways. Instead it keeps coming back as the “return of the repressed” — you can’t conceive of it except in monstrous form.” Novamente caímos nos problemas que seriam depois formulados como realismo capitalista. Miéville, numa entrevista mais recente, fez um alerta sobre a tentativa de se instrumentalizar politicamente a ficção científica como forma de expressar a utopia. O futuro é uma construção da vontade de Tempo, “senhor tão bonito quanto as barbas do teu filho”, que nos ensinou que ele se faz da nossa ação, mas não na forma da nossa intenção.

A fantasia não expressa o futuro. A fantasia expressa o presente e seus fantasmas, os monstros antevistos do outro lado da porta do armário do quarto. Tome, querida leitora, os filmes da série Jogos Vorazes. A oposição entre Capitólio, o centro glamuroso da nação onde política e mídia confluem; e os Distritos, empobrecidos, oprimidos, de onde vêm os que irão se matar até que só reste um. Vejo Jogos Vorazes como uma alegoria dos fly-over states americanos, o interior destruído pela globalização enquanto Wall Street e Hollywood/Vale do Silício comandam um mundo simbólico superposto ao mundo produtivo.

Uma série absolutamente icônica dos 90 foi Arquivo X. Sob a máscara de estar tratando de uma invasão alienígena, Arquivo X pode ser entendido com as angústias de um agente do estado nacional (o policial federal Fox Mulder) enfrentando uma conspiração global, enfrentando a influência alienígena (palavra que antes dos discos voadores era meramente sinônimo de estrangeiro) profundamente enraizada. Antes da margem da direita americana – aquela que hoje é um estorvo para o aparato ideológico das grandes corporações que controlam essa potência ex-unipolar e o Ocidente que a segue – eleger o Fórum Econômico Mundial como a encarnação maior de seus demônios, Fox Mulder e “fight the future” já faziam esse combate a um progresso tido como inevitável, controlado por forças de um estado profundo, obscuro, em pacto com os alienígenas. Arquivo X foi a série de conspiração por excelência. Mas os fantasmas de que ela tratou no fundo se materializaram depois, assim como a percepção dos mortos por desesperança descritos por Case e Deaton aconteceu anos depois de Jogos Vorazes ser escrito e filmado.

E isso foi uma introdução longa para o que vai ser uma provocação não tão longa. Esta semana saiu de cartaz da Amazon Prime uma série que foi uma das mais icônicas da década passada: Mr Robot: Sociedade Hacker. Para quem não viu, o protagonista é um personagem aparentemente dentro do espectro autista, mas com problemas maiores do que sua neurodiversidade. Mas assim como em Mulder e o desaparecimento de sua irmã, os motivos e dramas pessoais do protagonista não são a conspiração, a causa criadora daquele universo. Mr Robot constrói um mundo que é secretamente dominado por uma conspiração envolvendo o Deep State tecnológico chinês e o aparato corporativo-financeiro americano. As crises de 2008 para cá são reinventadas como resultados dessas manipulações sobre um mundo controlado a partir do digital, medos como o do apocalipse evitado do bug do ano 2000 exponenciados. Mr Robot é uma grande alegoria do que é a globalização de fato de 2008 para cá, BlackRock de um lado, a China do outro, sendo a China a responsável por ser o motor de fato do mundo produtivo, a variação na demanda. A tomada da África pela China, a desvinculação da moeda do espaço do estado nacional, tudo isso rola ali dentro da série. Se em algum lugar a Chimérica do Nial Ferguson virou ficção e bicho-papão, foi ali. Enquanto meia década atrás o próprio Ferguson enxergava o que é o ir e vir de uma relação reinterpretada entre essas duas torres que controlam a economia mundial, tanto Arquivo X quanto Mr Robot traziam dimensões de biopolítica: o vírus, o controle da informação, a centralização do capital/poder em entidades invisíveis.

Mas claro, trata-se séries de TV americana. Trata-se de uma caricatura do mundo atual, sequer uma metáfora do mundo atual. Neste sentido, o máximo que se permite é a grande conspiração dos que controlam a riqueza, na ilusão que esta é uma coisa e não uma relação que se estabelece numa sociedade. A economia sofre dessa ilusão, discursa e controla o mundo que se ela de fato existisse, como r>g sendo a realidade. Por vezes, “ó leitor, criatura improvisada por Deus, obra má de má argila, meu semelhante e meu irmão”, as pessoas agem como se os cofres de Tio Patinhas e Patacôncio existissem, como na realidade física de um apartamento em Salvador, ou na ficção de um tesouro em cripto de um vilão morto, que esses cofres fossem a Bastilha a ser expugnada para igualdade e felicidade das pessoas.

Resumindo: a fantasia não é a ciência. À fantasia, por vezes, é dado o direito de escapar da Verdade tal como marcialmente decretada, e, portanto, permitir-se revelar verdades de forma alegórica, inconveniente, de forma que não precisemos dar maior repercussão a ela. Como aos bobos medievais, como ao meu amado Dom Bibas.

Tendo chance, quando reaparecer em algum lugar, vejam.

E você, caro leitor, o que pensa sobre isso? Comente aqui. 

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