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O liberalismo como tragédia, o liberalismo como farsa e o liberalismo como galhofa

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Em uma passagem Karl Marx afirmava que os fatos e personagens históricos ocorrem, por assim dizer, duas vezes, “a primeira como tragédia, a segunda como farsa.” Deveria acrescentar que podem ocorrer uma terceira vez como galhofa. Por essa lógica, não era difícil esperar nada diferente de um ultra liberal, tido por si mesmo como anarco capitalista, como Javier Milei e toda essa gama de novos direitistas. Assim como Augusto Pinochet entende perfeitamente que somente é possível adotar a política neoliberal com uma tremenda repressão das liberdades individuais. Milton Friedman havia apoiado a sangrenta ditadura chilena. Mesmo Friederich Hayek, esse sim o pai do neoliberalismo, argumentava que era possível a conveniência de regimes autoritários em seu pensamento. Isso porque os neoliberais convictos, e liberais desavisados, não assumem, ou não entendem, o óbvio: o liberalismo moderno é uma defesa da atuação das grandes corporações e não do indivíduo!

Em sua obra clássica, Adam Smith que escreve sua “Riqueza das Nações” em 1776, mostrava as vantagens da divisão do trabalho para a produção em comparação com a produção artesanal. Nos seus “Princípios de Economia Política e Tributação” de 1817, David Ricardo mostra que a tributação era um empecilho ao investimento e, portanto, ao desenvolvimento econômico. Na mesma obra advoga que a renda da terra também limitava a expansão limitava os lucros, limitando a expansão econômica. Ou seja, o liberalismo nasce como uma crítica às corporações de ofício, à tributação e à organização de terras feudal.

Nesse sentido a doutrina liberal clássica representou uma insurgência do capital burguês europeu contra os Estados absolutistas caracterizados por cortes nepotistas e perdulárias, pela produção artesanal e pela organização feudal. Tratava-se de uma defesa aberta do processo industrial na produção de mercadorias. O sustento da classe aristocrática representava um ônus no pagamento de impostos com a qual a burguesia nascente, que migrava par ao capital industrial, não queria mais arcar. Essa luta para a derrubada dos empecilhos fiscais à livre iniciativa não se deu sem que os reinados impusessem tremenda censura às ideias contrárias a sua existência. A defesa das liberdades individuais, nesse contexto, se dá subordinada à defesa da liberdade econômica. Mesmo assim, representou apenas uma luta paralela para que os defensores do liberalismo tivessem o direito de argumentar sobre a livre iniciativa.

A Revolução Inglesa que durou boa parte da segunda metade do Século XVII e a Revolução Francesa do final do Século XVIII substituíram as monarquias autoritárias por regimes republicanos ou, quando monárquicos como no caso da Inglaterra, capitalistas em sua essência. Nos Estados Unidos a independência em 1776 também ao terminar com a colonização inglesa, alçou ao poder uma nova burguesia. Vitoriosa, a burguesias europeia e americana passaram a buscar mercados para sua indústria em outros continentes.

As rebeliões de libertação colonial por toda a América, deram origem a países que já nascem sob ideais republicanos, ainda que tenham resultado em países frágeis. Esses países representavam por um lado fonte de matérias primas baratas ao mesmo tempo que seus trabalhadores configuravam-se como mercado consumidor de produtos industrializados. Mesmo os regimes baseados na produção escravista, como no caso brasileiro, que havia se tornado independente em 1822, teve que ser refundado entre 1888 e 1889, para um regime republicano em que houvesse a expansão do mercado consumidor.

Do ponto de vista econômico, o liberalismo havia obtido resultados bastante consistentes. Mas ainda em meados do Século XIX, Karl Marx em “O Capital”, de 1867, pontuava que o regime capitalista não deixava de ser uma exploração do indivíduo trabalhador, não mais pelo Estado absolutista, mas pelos capitalistas, outros indivíduos, mas esses donos dos meios de produção privados. Em 1886, operários nos Estados Unidos deram início a uma onda de manifestações por direitos, com o fechamento de cinco mil fábricas, e que terminaram com a cidade de Chicago em estado de sítio.

O capitalismo já desenvolvido dos Estados Unidos impedia uma revolução que fosse às bases do sistema de produção. A Revolução da União Soviética, fundada em 1917, que não tinha esse desenvolvimento prévio e, baseada na doutrina marxista, passou diretamente à socialização dos meios de produção industriais. A forma para fazer este tipo de construção social foi a atribuição ao Estado destes meios. Para um país que vivia em um regime feudal de intensa repressão por parte da Igreja Ortodoxa e do Império czarista, a revolução, no bojo da Iª Guerra Mundial, foi um imenso avanço para as forças produtivas.

Nesse momento, a expansão capitalista já havia deixado de ser uma disputa da livre iniciativa individual para se tornar uma corrida por mercados por parte de grandes conglomerados econômicos. Ao longo século XIX os lucros de conglomerados industriais migram para os mercados financeiros como alternativa para acelerar os investimentos. Os Estados de países industriais passam a caracterizar-se pela busca por insumos baratos e novos mercados para seus capitais nacionais. A Iª Guerra Mundial, fruto desta expansão imperialista, derrubou os últimos grandes impérios absolutistas, além do russo, o alemão, o austro-húngaro e o otomano. Este último dando lugar aos diversos países do Oriente Médio.

A defesa da livre iniciativa liberal levou à financeirização das atividades econômicas. A década de 1920 viu a especulação ampliar-se até o ponto em que a Bolsa de Nova Iorque quebrou, dando início à Grande Depressão em 1929. A recorrência ao liberalismo e à ausência de Estado não deu respostas à crise que se manteve por alguns anos. O ano de 1933 foi o ápice da Grande Depressão e começou a gerar elementos para a concepção de novas ideias econômicas. Em 1936 John Keynes lança sua “Teoria Geral do Emprego do Juro e da Moeda” com as bases para a recuperação econômica capitalista através da intervenção estatal.

Naquele momento os ideais keynesianos permitiram uma recuperação econômica nos países capitalistas centrais. Na Europa, os perdedores da Iª Guerra Mundial utilizaram essas concepções para a reconstrução dos estados fascista italiano e nazista alemão. Esses regimes representavam um capitalismo dirigido pelo Estado mas orientado para uma oligarquia de capitalistas. Na Itália, o fascista Benito Mussolini ascende ao poder em 1922 esmagando greves operárias. Dessa forma conquistou um grande apoio entre proprietários de terra e industriais. Os exemplos alemães podem ser verificados pelo desenvolvimento de marcas como Volks, BMW e Hugo Boss. O incentivo à expansão capitalista deixava de ser uma defesa das liberdades individuais para tornar-se o exato oposto, gerando regimes fascistas altamente autoritários.

A IIª Guerra Mundial caracterizou-se pela aliança inusitada entre os capitalistas imperialistas e os comunistas com o objetivo da derrota definitiva dos países fascistas do Eixo em 1946. Como fruto da campanha na Guerra, a influência do regime comunista soviético expandiu-se até as fronteiras da Alemanha. Então, imediatamente após o final do conflito instalou-se a Guerra Fria que caracterizou-se pela disputa das áreas de influência do imperialismo capitalista ocidental e do comunismo soviético na Ásia e leste europeu. Em 1949 a China, outro gigante asiático, também faz sua revolução comunista. Nesse contexto, o capitalismo imperialista percebeu que deveria reconstruir os países europeus, destruídos no contexto da Guerra, para impedir a deflagração de novas revoluções.

É importante reparar que a recorrência ao intervencionismo estatal para o desenvolvimento econômico aparece, não como uma filosofia de retorno aos regimes absolutistas do final da idade média, mas como uma necessidade frente à expansão da influência comunista. Na verdade, a reconstrução dos países europeus ocidentais representou a construção de novos mercados para a expansão capitalista, liderada quase incontestavelmente pelos Estados Unidos. Além disso, a gestão industrial comunista permitiu o país sair de uma economia feudal em 1917 para rivalizar, em 1946, com potências industriais cuja implantação do capitalismo se deu séculos antes. O regime comunista também se mostrou altamente repressivo em relação aos direitos individuais. Nessa digressão três conclusões importantes podem ser retiradas: 1) o intervencionismo estatal nos países capitalistas não era uma comunização dos meios de produção, 2) foi a implantação do regime industrial e não necessariamente o capitalismo que permitiu o desenvolvimento das forças produtivas, 3) a comunização ou estatização dos meios de produção também não representa uma defesa dos direitos individuais.

Os anos de Guerra fria seguiram-se com novos fatos relevantes. A Revolução cubana de 1959 acendeu uma imensa luz vermelha nos Estados Unidos. Seguiu-se a esse fato o incentivo à ascensão de diversas ditaduras de caráter militar na América Latina. Entre 1964 e 1973 instalaram-se ditaduras no Brasil (1964), Bolívia (1964), Argentina (1966 e 1976), Chile (1973) e Uruguai (1973). A gestão estabelecida por esses governos também ficou marcada pela utilização do Estado para a pavimentar a expansão capitalista. Em alguns casos nacionalistas, mas sempre subordinadas à liderança do capitalismo dos Estados unidos. Além disso, trataram-se novamente de governos altamente repressivos em relação às liberdades individuais. Ou seja, são faces da mesma moeda os interesses que promoveram o “wellfare state” europeu, o “American way of life” nos Estados Unidos e as ditaduras violentas na América Latina.

A expansão capitalista, que deixou temporariamente de ser liberal, deu-se até os anos do choque do petróleo (1971 e 1979). Naquele momento, a insurgência de conflitos no Oriente Médio exauriu a capacidade de produção de energia barata para a continuidade da prosperidade capitalista. A solução dos Estados Unidos foi dar um calote nos credores europeus acabando com o padrão ouro no caso da crise de 1971 e o choque dos juros de Paul Volcker em 1979. Havia a necessidade de frear o ritmo de crescimento das economias capitalista e a base teórica para esta arrumação é o neoliberalismo. O objetivo é garantir o acesso aos recursos escassos pelas grandes corporações. Não se trata de defender a livre iniciativa individual, mas a livre iniciativa dos grandes conglomerados econômicos, pela desregulação financeira ou pelo desmantelamento das regras de exploração ambiental e laboral.

Contar essa história toda é importante para perceber que a tragédia do liberalismo criou um sistema que veio a tornar-se tão autoritário quanto ao que substituiu. Mesmo assim, permitiu o desenvolvimento das forças produtivas e o desenvolvimento econômica através da implantação da indústria em larga escala. O neoliberalismo nasce, de fato, como farsa pois tratou-se de uma estratégia para limitar o desenvolvimento econômico e não expandi-lo. Também não é uma rebeldia contra o poder estabelecido de cortes absolutistas, mas uma reafirmação desse poder.

Nesse contexto encaixa-se esse novo ultra liberalismo. É o mesmo liberalismo que entre as liberdades individuais e a liberdade econômica sempre ficou com a última. É uma forma de sofismar uma questão inarredável pois são os Estados que estão subordinados às corporações capitalistas e não o contrário. Ser contra o Estado nesse contexto é ser a favor do poder e não contra. É a história se repetindo como galhofa achar que fantoches menores como Jair Bolsonaro, Donald Trump, Boris Johnson, Javier Milei e essas outras figuras de direita defendem algo que não seja o poder estabelecido.

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