“don’t believe the hype, it’s a sequel”
(Chuck D)
Manhã de segunda, uma amiga me pede um áudio com minha opinião sobre a manifestação na Paulista no domingo. Domingo… com uma mediocremente épica final (com direito a prorrogação) da Copa da Liga Inglesa, e um jogo do Madrid contra o Sevilha decidido com um espetacular gol de Luka Modric, nenhum tempo dediquei a acompanhar mais um encontro de nosso ex-presidente com seu público.
Na saudade que me bate toda vez que entro num táxi numa manhã e não ouço a voz do Boechat, apelidei o evento de Carnarrôla. Afinal, tratou-se de uma micaretagem capitaneada por Malafaia (além do Capitão, astro principal), com direito a muitas bandeiras que não a brasileira remetendo à lembrança de Vampeta.
Mas é sobre aquelas três senhorinhas zangadas, que viralizaram com a bandeira de Israel somada ao seu verde e amarelo, que pretendo fazer uma reflexão. Não porque me divirta com o nível tea party da indigência cultural/informacional daquelas zangadas senhoras de classe média (por classe média aqui entendo aquela pessoa que se sente mais segura quando vê um policial). Não porque queira usar elas de gancho para discutir a fake news dos estupros do Hamas, sobre cujo tratamento pelo New York Times houve umas revelações esta semana. Ou porque ache que a observação do Alberto Almeida sobre perda de importância dos evangélicos procede.
O que me incomoda é outra coisa: a distância entre hoje e o passado. Isso é ficha que me caiu um pouco antes do jogo do meu Botafogo (Tiquinho e Junior Santos em grande atuação, nos papéis de Harry Kane e Son!), lendo um artigo que um inteligente e querido amigo antipetista acabara de me mandar. “O que aconteceu com Lula?”, uma bobagem escrita por um professor de relações internacionais da FGV para a Foreign Affairs, onde o autor comete todo tipo de clichê pró-Ocidente que se puder pensar. Do tipo Venezuela má! má! má! e Lula deveria buscar diálogo com essa pessoa tão próxima que é Milei (não sei se vacina contra covid, mas para alguém tão ligado ao seu falecido cão, com certeza eu tomaria uma antirrábica se Milei me mordesse).
O que este artigo e as horrorosas senhorinhas (uma montagem de Macbeth com as bruxas caracterizadas daquela forma, Michele de Lady Macbeth, Jair… não, Shakespeare não merece) têm em comum? Eu diria que, como na ilusão em Matrix, eles estão presos a um momento, a uma negação de um desdobrar traumático da história.
Amiga leitora, é bem provável que você tenha visto O Feitiço do Tempo mais de uma vez. O tempo como algo centrado em você, que vai se repetindo, como que num jogo, até você fazer a aventura perfeita. Fail better reescrito por um Nietzche sob antidepressivos. Uma versão com uma paradinha interessante do mesmo tipo de trama – repetir um dia de forma cada vez melhor – é No Limite do Amanhã, um belo filme de ação/ficção científica de Tom Cruise. Ali as repetições envolvem um preço. O tempo se repete, mas não infinitamente.
Mas uma versão que adoro é a do último episódio de Phineas e Ferb, um desenho animado muito legal. Ali, o interessante é que as repetições do tempo vão ficando cada vez mais curtas, como se os telômeros daquele momento estivessem sendo destruídos, e a própria tessitura do tempo deixasse de existir se alguma coisa não fosse feita e interrompida a repetição daquele dia.
Para as senhorinhas, a história começa em 15/16, nas manifestações de verde e amarelo pelo impeachment da Presidenta Dilma. Estar ali na Paulista é enxaguar e repetir, início desse processo de restauração de ordem. No princípio era o Caos, e por meio desses rituais em verde, amarelo e bandeira de Israel (vá lá, umas dos EUA também), o demônio do lulopetismo é expulso e preso. Claro, Bolsonaro ali pregava anistia para ele e outras tantas senhoras e senhores “patrióticos” que praticaram Turismo de Baderna (como brilhantemente definiu Jacqueline Muniz). Acho que não precisa de pantone para entender que golpistas de fato trajam outro tom de verde. Ou preto, no caso do choque da PM que não latiu.
Ao redor de 200 mil pessoas, arredondando os números da imprensa, é muita gente. Mas com evangélicos e governador de estado reunidos… digamos que esse volume do evento estava precificado e em nada surpreendeu (diria que nem mesmo as bobagens e a pusilanimidade de Jair).
2016 e 2018, no entanto, são eventos traumáticos para um outro conjunto de pessoas. Na felicidade de que finalmente conseguiram se livrar do PT, uma certa facção da intelligentsia nacional logo se deparou com dois choques: a eleição de Trump (e o Brexit um pouco antes) e a eleição de Bolsonaro. No cumprimento de minha agenda pactada com meu gerente (que envolvia ir a todos eventos abertos que aconteciam do Banco), uma das coisas mais absurdas que testemunhei era a esperança de que, no apagar das luzes, nosso atual ministro dispararia nas pesquisas e chegaria no segundo turno para bater Bolsonaro ou aquele que estivesse no lugar do Lula. Geraldo não veio, obviamente. Veio o mundo feio daqueles deputados que votaram o impeachment, o dos patriotas evangélicos da Paulista. Esses não foram instantes, assombrações que sumiram com a névoa: esses foram a realidade à direita e ao Centrão de nosso espectro político.
Agora, passado esse momento, essas pessoas vivem a ilusão que fizeram finalmente sua “ponte com o futuro” sobre o golpe que coonestaram, e retornam às suas críticas ao Governo Lula como se estivéssemos em 2015. Um exemplo disso é a professora Lourdes Sola, com quem bati boca numa palestra. Em 2016, pouco antes de Trump, bem antes de Bolsonaro, o inútil planejamento estratégico da Roland Berger acontecendo no Banco. Minha opinião na época foi que ela estava algumas décadas atrasada. Em 2023, na primeira oportunidade, vejo-a de volta numa crítica ao problema do Lula fazendo política externa sem ser sob o mando do eixo “democrático” ocidental. Lula deveria estar do lado da Ucrânia e não flertando com essas autocracias dos BRICS.
Tanto o caso dela, como o caso recente desse artigo do Matias Spektor, são um retorno ao mundo que antecedeu a eleição de Hillary… que não aconteceu. Agenda verde, democracias, o tal do mundo baseado em regras.
Atente, leitora, que o Ocidente passa por um processo de destruição política, onde na Europa o Campo se rebela contra a agenda ambiental; e nos EUA o processo descontrolado de imigração começa a minar o welfare de cidades como Nova Iorque e Chicago. Ou a democracia, como essas pessoas acreditam, fica em suspenso; ou essas pessoas feias, com outras agendas, vencem. O que, para essas elites, quer dizer que não é mais democracia.
Mas o artigo do Spektor avança num argumento mais absurdo ainda: de que um dos problemas principais do Brasil é o crime organizado (possível, reconheço) e que só através de uma intensificação de nossas relações com a Europa nós conseguiremos resolver isso. Acho que ele não leu o artigo da Bloomberg no final do ano passado explicando como a Venezuela reduziu drasticamente seus índices de assassinato (os criminosos, ao que parece, foram para um país ao norte). Aliás, faltam os indígenas no texto. Vai ver ele os considera como parte da floresta.
2024 e 2025 serão anos de pavorosas brigas políticas em todo Ocidente. Se há uma coisa que o Governo Lula tem que fazer é se manter longe delas. O mundo em que se podia contar com os EUA e a Europa para se estabelecer algum tipo de ordem não mais existe nem retornará em breve. Mas se do ponto de vista de política externa essa ficha me parece bem entendida, do ponto de vista de política econômica ela ainda não caiu. Mas essa história envolve outros tempos. Uma hora chego a eles.
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