André Luiz Furtado, professor de Matemática da UERJ, em artigo publicado no Jornal GGN, em 16/08/24, escreveu uma peça muito interessante de ciência política a respeito do que realmente importa a respeito da Venezuela.
O artigo do professor é quase uma elegia às palavras de Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas – “o correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.”
O professor mostrou tê-la, e neste sentido o texto é quase que um tributo ao que tanto falta hoje em dia. Eis o artigo:
VENEZUELA: ENTRE A DEMOCRACIA E O IMPERIALISMO
“Começo com a obviedade de que há uma insuperável incompatibilidade entre democracia e imperialismo. Chega a ser uma contradição em termos.
A partir dessa obviedade, avancemos com suas consequências. A mais imediata é a conclusão inexorável de que é impossível, de maneira acertada, sensata, lúcida, realista ou lógica, defender, em nome da democracia, que se dê poder ao imperialismo. Isso de forma abstrata e geral. Como uma lei.
Agora uma aplicação concreta dessa lei: é equivocado, insensato, ininteligível, irrealista e ilógico que se defenda, em nome da democracia, que se entregue o poder à extrema direita vassala do imperialismo na Venezuela.”
Pode-se defender que a extrema direita venezuelana assuma o poder, mas as verdadeiras razões para tal nada tem a ver com democracia. Os imperialistas têm as suas. Mas em nome da democracia não se pode, ao menos não com honestidade intelectual, defender que Edmundo González assuma a presidência da Venezuela. Ou não estamos de acordo com a validade da premissa de que democracia e imperialismo são incompatíveis.
Nesse momento surge naturalmente a incômoda questão: mas e se esses vassalos entreguistas da oposição venezuelana ganharam a eleição? Essa pergunta é uma formulação particular da seguinte questão geral, que não se aplica somente à Venezuela: o que fazer se as eleições populares, que são elementos basilares da democracia, levarem ao poder grupos que destruirão a democracia? É uma pergunta espinhosa, mas é necessário enfrentá-la, pois o mundo real a impõe (essa questão é semelhante ao paradoxo de Popper, sobre a tolerância com os intolerantes).
É sobre isso que deveriam todos os verdadeira e honestamente interessados na questão venezuelana, estar debatendo. Todo o resto são pequenas quimeras, palavreado inútil ou diversionista. Mas qual a solução para o dilema? Nos aponta o professor furtado o seguinte:
Para resolver esse dilema é preciso iniciar notando que essa questão só é desagradável para quem de fato defende a democracia. Ela é uma dura questão porque confronta eleição popular, um dos principais pilares da democracia, com a própria democracia.
Mas, eu repito o óbvio: essa questão só é desagradável para quem de fato defende a democracia. Essa questão não é um problema para quem está contra a democracia, como está o imperialismo, por sua própria natureza. Para eles as eleições podem (e são!) usadas como armas contra a democracia.
Corroer por dentro de maneira sub reptícia um dos pilares da democracia venezuelana (a saber, suas eleições presidenciais) é uma eficiente e segura maneira de corromper a totalidade da democracia popular venezuelana, Uma democracia que impede que o sistema imperialista enfie seus tentáculos nas riquezas naturais venezuelanas e domine sua política (o que é fundamental para seus interesses geopolíticos).
E como se dá o ataque do império contra a democracia venezuelana através das eleições presidenciais venezuelanas? O ataque não é a propaganda de descrédito das eleições e as acusações de supostas fraudes eleitorais comandadas por Maduro. Ou melhor, é também, mas esse é um ataque lateral, é só uma espécie de tempero do prato principal e serve como cortina de fumaça para o que é o verdadeiro ataque às eleições.
O verdadeiro ataque contra a democracia venezuelana por meio da eleição presidencial venezuelana é o bloqueio econômico ilegal e as sanções coercitivas unilaterais que lançam a Venezuela numa grave crise econômica e que leva a população venezuelana à pobreza, à escassez, à desesperança. Sim, pois essas terríveis mazelas fazem com que parte dos eleitores passe a rechaçar o governo por identificar nele o principal responsável pelas suas dificuldades econômicas. Esse é o objetivo do bloqueio e das sanções.
E isso não sou eu que digo, mas os próprios impositores de bloqueios e sanções. Segue abaixo um trecho de um memorando de 1960, do Departamento de Estado dos Estados Unidos, tornado público em 1991, que trata sobre o iminente bloqueio contra Cuba:
“[…] O único meio previsível de alienar o apoio interno [ao governo cubano] é através do desencanto e do descontentamento baseados na insatisfação econômica e nas dificuldades […] faça as maiores incursões na negação de dinheiro e fornecimentos a Cuba, para diminuir a situação monetária e salários reais, para provocar a fome, o desespero e a derrubada do governo.”
Somente o cinismo mais extremo pode permitir que os mesmos que lançam mão de métodos tão imorais e ilegais como levar a miséria a um país para jogar a população contra o governo, venham falar de lisura de eleições e respeito à democracia. Aos que cobram a lisura do processo eleitoral venezuelano sem apresentar qualquer prova de violações, eu pergunto: que lisura há quando se leva a fome a um país para que o povo desse país se volte contra seu governo? Que respeito à democracia pode haver nisso?