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Não à PEC 65/2023: o Banco Central é uma Instituição típica de Estado, não uma empresa

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A competente jornalista Maria Clara do Prado escreveu na sua coluna de quinta-feira, dia 07 de março (veja AQUI), no Valor Econômico uma série de críticas pertinentes e preocupantes sobre a PEC 65/2023 cujo objetivo é dar autonomia financeira para o Banco Central do Brasil, o qual deixaria de fazer parte do governo em sentido amplo para ser uma empresa pública. A justificativa apresentada pelo presidente do Banco Central é que isso permitiria melhorar os salários dos funcionários da instituição que estariam muito defasados com relação aos que podem ser obtidos no sistema financeiro privado. No entanto o centro da proposta, como apontado no artigo da colunista do Valor, consiste “no uso de receitas de senhoriagem para o financiamento de suas despesas (do BC). Entende-se aqui por senhoriagem o custo de oportunidade do setor privado em deter moeda comparativamente a outros ativos que rendem juros. A apuração é realizada aplicando-se uma medida de taxa de juros nominal sobre o valor da base monetária”

Como a própria colunista apontou, trata-se de uma redação confusa, para dizer o mínimo. A definição está INCORRETA. Para entender isso é necessário retomar alguns conceitos básicos de economia monetária. Para começar: o que é moeda? A moeda é definida como a unidade de conta do sistema de contratos (a vista e a termo) e o instrumento utilizado para a liquidação dos mesmos no seu vencimento. A moeda não surge, portanto, como a propriedade emergente da interação dinâmica entre os agentes econômicos privados (como Paulo Guedes afirmou recentemente em mais um das suas vídeo entrevistas nas quais destila toda sua ignorância de história econômica e economia monetária) mas é uma criação do Estado. Como disse Keynes no seu Tratado sobre a Moeda (1930), o qual antecedeu a Teoria Geral (1936), é o Estado que define qual o padrão que será utilizado como unidade de conta nos contratos, o instrumento que será utilizado para liquidar os mesmos no seu vencimento e, não menos importante, o Estado é a garantia de que os contratos não podem ser descumpridos. Em outras palavras, a moeda é uma criatura do Estado (Lerner, 1947).

A moeda é criada pelo Estado por intermédio do Banco Central, ao menos desde o momento em que as economias capitalistas abandonaram o sistema de moeda-mercadoria, no qual o instrumento utilizado para a liquidação de contratos eram moedas de ouro e prata cunhadas pelo Estado, em prol do sistema de moeda fiduciária, no qual o meio de pagamento é constituído de notas de papel cujo valor intrínseco é zero. A senhoriagem nada mais é da que a diferença entre o valor de face das notas de papel (digamos uma nota de 200 reais) e o custo de produção da mesma pela Casa da Moeda (alguns míseros centavos). Essa diferença entre o valor de face e o custo de produção das cédulas é apropriada pelo Estado pois o mesmo dispõe do monopólio legal de emissão de moeda.

Ao contrário do senso-comum, a moeda não é criada pela Casa da Moeda, a qual é apenas uma indústria gráfica, responsável entre outras coisas por emitir os passaportes de cidadãos brasileiros que viajam para o exterior. A moeda é criada quando o Banco Central adquire ativos, seja moeda estrangeira para aumentar as reservas internacionais, seja títulos públicos que estão na carteira dos bancos comerciais. A compra desses ativos é, por assim dizer, financiada com um crédito na conta de reservas bancárias que os bancos comerciais tem no Banco Central (Ver Carvalho et al, 2000, capítulos 1 e 6).

Aliás, os bancos comerciais só podem fazer pagamentos entre si por intermédio da transferência de reservas das suas contas no Banco Central, eles não podem pagar com os passivos que eles mesmo criam, que são os depósitos a vista (Lavoie, 2022, capítulo 4). Para deixar mais claro, se ao final do dia o Banco X tem uma posição líquida negativa (diferença entre depósitos e saques) com o banco Y então o Banco X terá que transferir para o Banco Y o valor correspondente da sua conta de reservas no Banco Central. Ao final de cada dia o Sistema Especial de Liquidação e Custódia do BC calcula a posição líquida de cada banco e exige que as posições sejam zeradas. Caso algum banco tenha uma posição líquida negativa superior ao montante de suas reservas no Banco Central, então deverá tomar emprestado reservas com outros bancos comerciais ou com o proprio Banco Central. Esse é o chamado mercado interbancário onde os bancos tomam reservas emprestadas entre si ou com o Banco Central. A taxa de juros desses empréstimos é a Selic, cujo valor é periodicamente fixado pelo Conselho de Política Monetária do Banco Central. Como o Banco Central atua como market-maker no mercado interbancário fixando o valor da taxa de juros dos empréstimos entre bancos, segue-se que ele deve estar disposto a ofertar todas as reservas que os bancos demandarem a taxa Selic. A quantidade de moeda torna-se então uma variável endógena, ou seja, ela é o resultado, ao invés da causa, do crescimento da renda nominal. Friedman e o monetarismo estão mortos.

Até o presente momento não falamos sobre as cédulas de papel. O leitor deve ter observado que as transações ocorridas no mercado interbancário são puramente digitais, ou melhor, apenas um registro contábil de débitos e créditos, no qual o Banco Central desempenha um duplo papel de casa de compensações e de emprestador de última instância.

Apesar da evolução das operações de pagamento digital (cartão de débito e PIX) muitos pagamentos ainda são feitos em cédulas de papel. Isso significa que, todos os dias, o sistema bancário recebe depósitos em papel moeda e o público realiza retiradas de papel moeda de suas contas de depósitos a vista. Para que esse sistema possa funcionar diariamente os bancos precisam ter em caixa cédulas de papel que, na verdade, são uma parte das reservas que eles possuem no banco central. Assim quando a demanda por cédulas de papel aumenta o Banco Central ordena a Casa da Moeda para imprimir mais cédulas de papel, as quais são distribuídas ao sistema bancário conforme a necessidade de cada instituição bancária.

Feitos esses esclarecimentos conceituais, voltemos a análise da PEC. O texto da PEC confunde receita de senhoriagem com os juros que o Banco Central recebe sobre os títulos públicos que ele comprou com a emissão de base monetária. A senhoriagem refere-se, como vimos, a diferença entre o valor de face das cédulas de papel e seu custo de produção. Dada a ampliação dos pagamentos por meio digital a quantidade de cédulas de papel em circulação está caindo, de maneira que essa receita é desprezível. A receita que importa é a receita com a carteira de títulos públicos possuída pelo Banco Central, e é aqui que mora o detalhe escabroso da proposta da PEC.

O Banco Central do Brasil é proibido por lei a emitir títulos para financiar suas operações normais de política monetária. Caso o Banco Central esgote toda a sua carteira de títulos com operações compromissadas então o Tesouro Nacional será obrigado a fazer um aporte de capital no Banco Central na forma de títulos públicos, aumentando o capital próprio do banco no lado do passivo, e a carteira livre do Banco Central no lado do ativo. Isso não ocorre, contudo, quando o Banco Central dispõe na sua carteira de títulos livres, ou seja, títulos que não estão sendo utilizados nas operações compromissadas, as quais consistem na venda de títulos públicos que estão na carteira do banco central com um compromisso de recompra em alguma data futura (a qual varia de 1 a 28 dias). Nessas operações o Banco Central irá recomprar os títulos que vendeu a um preço que é aproximadamente igual ao valor da Selic durante o prazo da operação. Tudo se passa como se o sistema bancário estive fazendo um empréstimo de curto-prazo para o Banco Central, pagando a Selic proporcional ao período do empréstimo.

Via de regra esse tipo de operação gera um resultado líquido zero para o Banco Central porque ele vai pagar para os bancos comerciais a mesma taxa de juros que recebe do Tesouro Nacional. O lucro auferido pelo Banco Central vem de duas fontes. A primeira é dos juros recebidos pela sua carteira livre. Tratam-se de títulos públicos na posse do Banco Central que não estão sendo utilizados nas operações compromissadas. Se a carteira livre for de, digamos, 300 bilhões de reais e a Selic média ao longo de 2024 for de 10% então o Banco Central se apropria de uma receita de 30 bilhões de reais. A segunda fonte é o ganho de capital que o Banco Central aufere pela valorização das reservas internacionais em termos da moeda corrente do país. No governo Bolsonaro o real se desvalorizou cerca de 30% com respeito ao dólar. Como as reservas internacionais do Brasil são de aproximadamente 350 bilhões de dólares, temos uma receita de 105 bilhões de dólares, ou seja, algo como 525 bilhões de reais ao câmbio de hoje.

Pois bem, o leitor já deve ter percebido a cretinice a proposta de emenda constitucional. Essas receitas do Banco Central derivam-se exclusivamente de seu papel como Instituição de Estado, responsável pela administração do sistema de meios de pagamento, criação de moeda e custodiante das reservas internacionais do Brasil. A PEC quer tornar uma instituição típica de Estado numa empresa pública para distribuir os seus, por assim dizer, lucros para os funcionários do Banco Central. Acontece que esse dinheiro pertence ao Estado Brasileiro e como tal tem sido devolvido, até recentemente, ao Tesouro Nacional para o abatimento da dívida pública. Sem esse instrumento, o Brasil vai criar a sua versão do Euro, ou seja, teremos uma moeda sem um Estado para garantir a confiabilidade na mesma. Receio que o resultado disso será o enriquecimento de alguns, com prejuízo para o restante da sociedade brasileira, pois será necessária um aumento da carga tributária para substituir essa receita que o Banco Central, até recentemente, transferia a cada seis meses para o Tesouro Nacional (no governo Bolsonaro foi criada uma conta de resultados no Banco Central no qual os superávits de um ano são usados para financiar eventuais déficits em outros anos, de maneira a evitar que o Tesouro Nacional tenha que fazer um aporte de capital para o Banco Central na forma de títulos públicos toda a vez que o Banco Central tem prejuízo).

Eu não discordo de que os salários dos funcionários do Banco Central estejam defasados, aliás o funcionalismo público federal acumula uma perda de mais de 30%, boa parte da mesma gerada no governo Bolsonaro que não corrigiu os salários dos servidores públicos pela inflação passada (a famosa granada do Guedes no bolso dos servidores públicos). Mas isso não se resolve com essa PEC, mas com a reestruturação do plano de carreira e de salários dos servidores do Banco Central. Coisa que alías não precisa de uma PEC para ser implementada, basta um projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional.

Em suma, essa PEC soa como “algo podre no reino na Dinamarca”.

 

José Luís Oreiro, originalmente no Brasil 247

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